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Gente de Opinião

Silvio Santos

FRANCISCA VIEIRA LEMOS


A farinhada em
Nova Esperança

Semana passada a jovem Márcia e uma sua colega de colégio nos procurou na redação do Diário pra saber sobre a história do bairro Liberdade, infelizmente não podemos ajudar as duas estudantes já que ainda não temos em nosso arquivo a história do bairro que surgiu quando o 5º BEC achou por bem derrubar o morro do alto do Bode e a acabar com a o aglomerado de casas existentes na Baixa da União, local onde hoje fica o campilódromo, a feira do agricultor e os prédios do TRE, Justiça Federal e outros. Durante nossa conversa a Márcia falou que morava justamente na rua Abunã no bairro da Liberdade e que sua avó que está com 94 anos de idade também mora lá. Como não tinha os dados que as estudante queriam, recomendei que elas fossem até o IBGE que fica perto do prédio do jornal e que se elas conseguissem material pra fazer o trabalho encomendado pelo professor Marcos Teixeira que me trouxesse publicaríamos com todo prazer no Diário da Amazônia, isso tudo aconteceu na tarde de segunda feira dia 6. Quando as meninas já estavam a caminho do IBGE lembrei que a Márcia tinha dito que sua avó estava com 94 anos, sai correndo atrás delas e perguntei: Sua vó ta lúcida, ela sabe de muitas histórias? A resposta foi positiva e então marquei a entrevista para o dia seguinte, ou seja, terça feira às dez horas da manhã. Cheguei na residência da Márcia com meia hora de atraso e já encontrei dona Francisca toda pronta, me esperando sentada no sofá. "Poxa vida pensei que o senhor não vinha mais"; Assim começamos nossa conversa. Foram mais de três horas ouvindo as experiência vividas por essa beradeira de Nova Esperança cuja doença mais grave que teve nesses 94 anos de existência, foi gripe. "Graças a Deus gozo de muita saúde". Dona Francisca nos transmite muita tranqüilidade. Quando já estávamos conversando por mais de hora, observamos que o gravador estava desligado e ela, com toda paciência, concordou em repetir tudo que já havia nos contado. Após a conversa agradável, fomos agraciados com um bolo gostoso preparado pela Márcia ou foi pela mãe dela. O fotografo J. Gomes e o motorista Chiquinho adoraram participar da conversa com a dona Francisca

E N T R E V I S T A

Zk – A senhora nasceu aonde e em que ano?

Francisca – Nasci em 1913 na localidade de Nova Esperança no baixo Madeira. Na realidade, eu nasci no lugar chamado Caraparu na beira do rio e de lá foi que fui para Nova Esperança onde me criei e casei.

Zk – E quem era o dono de Nova Esperança?

Francisca – Nova Esperança era o lugar do meu avô Joaquim Vieira, meu sogro era o Domingos Lemos.

Zk – A senhora casou e ficou morando em Nova Esperança ou foi morar em outra localidade?

Francisca – De Nova Esperança nós fomos para a Ilha de Assunção e de lá para São Vicente de onde viemos para Porto Velho.

Zk – Vieram morar em Porto Velho em que ano?

Francisca – Isso foi em 1970.

Zk – A senhora me contou que ao chegar em Porto Velho foi morar no bairro Liberdade, aliás, no mesmo local onde mora até hoje. Como era o bairro Liberdade quando vocês vieram morar aqui?

Francisca – Não tinha nada, nem rua aberta, essa rua que hoje a gente chama de Abunã e onde nós moramos, era só um caminho, carro não entrava, não tinha luz elétrica, a gente usava luz de estearina (vela) eu então lamparina, não tinha nenhum comercio por perto.

Zk – E onde vocês faziam compras?

Francisca – A gente saia daqui para fazer compra na feira e a feira, era onde hoje é o Mercado Central lá na beira do Rio Madeira por ali na rua Farquar perto do prédio do relógio.

Zk – A senhora também afirma que é católica. Quando a senhora chegou no bairro Liberdade qual a igreja mais perto?

Francisca – Naquele tempo assistir uma missa, era um sacrifício, a igreja mais perto da nossa casa, era a Catedral. Veja só, Nós moramos na rua Abunã com a Guanabara e tinha mais, não tinha rua aberta era um matagal só, não era mata alta, mas tinha muito capim e lama nas ruas. Se hoje já é longe, imagine naquele tempo, que não entrava carro de jeito nenhum na nossa rua.

Zk – Já que entramos no assunto. Vamos voltar ao beiradão à Nova Esperança. Sabemos que nas localidades ao longo do Rio Madeira as festas religiosas acontecem. O povo de Nova Esperança festejava qual santo?

Francisca – Lá o meu avô festejava São Sebastião. Era uma festa muito bonita que começava no dia 10 de janeiro e só terminava no dia do Santo, 20 de janeiro. Durante dez dias ninguém trabalhava na roça, nem fazia borracha e nem tirava castanha ou fazia outro serviço, a não ser se fosse para fazer alguma coisa para a festa, tipo bolo de macaxeira com castanha e outras comidas. Vinha gente até de Manaus que meu avô mandava convidar.

Zk – Vamos dizer assim, e o forró era à base de que?

Francisca – Era na base do pau e corda como se dizia naquele tempo, violão, cavaquinho e harmônica, ainda não existia a sanfona era só a harmônica. Quando tinha Padre ele trazia o piano.

Zk – Por falar em Padre. Qual era o que mais freqüentava a festa de São Sebastião?

Francisca – Lembro do Padre Chiquinho. Ele me ensinou a fazer muitas coisas, me ensinou a fazer sopa. Eu pensava que sabia fazer sopa, mas que nada, quando vi o Padre Chiquinho preparando uma sopa, fiquei bestinha com os temperos que ele usava.

Zk – E quais eram esses temperos?

Francisca – Ele colocava maxixe, tomate, jerimum o olho do jerimum, couve e tajoba ele cozinhava muito bem e me ensinou muitos segredos da cozinha.

Zk – É verdade que o Padre Chiquinho fazia milagre:

Francisca – Eu vi falar que ele fazia muito milagre, ele passava muita tranqüilidade pra gente. Pro senhor ter idéia, meu avô sempre mandava buscar o Padre Chiquinho e ele ficava morando lá em casa e nos dias que ficava por lá, todo mundo queria se confessar com ele acho que até herege (crente) botava fé no Padre Chiquinho.

Zk – Quantos filhos os seus pais tiveram?

Francisca – Foram treze filho, oito mulheres e cinco homens.

Zk – E a senhora teve quantos filhos?

Francisca – Pois eu também tive treze filhos. Dez mulheres e três homens, desses, onze ainda estão vivo, tudo casado.

Zk – Quantos netos a senhora tem hoje?

Francisca – Já perdi as contas, sei que são mais de cinqüenta netos, já tenho bisneto. Quer dizer os netos já têm netos e me deram bisnetos, acho que já tenho tatara neto.

Zk – A senhora estudou até que série?

Francisca – Estudei até nenhuma série. Acontece que como em Nova Esperança não tinha grupo escolar, meu avô contratou um professor de nome Constantino para dar aula pra gente, foi com esse professor que aprendi a ler, escrever e contar. Depois de muito tempo, foi que apareceu uma escola do governo aí quem estudou lá foram meus filhos.

Zk – Estamos conversando faz horas e até agora não sei o nome do seu marido e nem se ele ainda é vivo?

Francisca – Meu marido, faz sete anos que morreu ele era mais velho que eu cinco anos, seu nome era Primo Feliciano Lemos.

Zk – Agora vamos falar de uma atividade que tudo quanto é beradeiro tem obrigação de saber. Estou me referindo a FARINHANDA. Fale pra gente o que se deve fazer para conseguir uma boa farinha?

Francisca – Quer dizer, que o senhor que se diz que é beradeiro de São Carlos, nunca viu trabalhar com farinha. O senhor nunca trabalhou com mandioca?

Zk – Não!

Francisca – (achando graça) A gente coloca a mandioca n'água, com três ou quatro dias, você tira, vai no roçado e tira o tanto de mandioca que você acha que vai servir pra fazer render mais a farinha, lava bem lavadinha e leva pro sevador, rela pra mandioca ficar fininha, fininha e depois leva pra prensa ou então no tipiti.

Zk – É daí que sai o tucupi também?

Francisca – O tucupi que você vai usar com pimenta não é desse assim não. O tucupi que preste pra gente temperar o tacacá e outros pratos inclusive pra fazer molho de pimenta é tirado da mandioca sevada, se misturar com a mandioca d'água não presta. Tem muitas qualidades de mandioca, mas, o tucupi gostoso é o da macaxeira, pra quem sabe fazer.

Zk – Qual é o segredo?

Francisca – Não é todo mundo que sabe fazer não!

Zk – A senhora tempera o seu tucupi com que?

Francisca – Eu tempero o meu tucupi com cebola, pimenta do reino, alho, cuminho, boto uma folinhas de chicória, folhas de alfavaca. Depois de juntar tudo isso bota pra cozinhar, depois de cozido você abafa e no outro dia você vai bota nas vasilhas. O molho de pimenta pode ser feito com qualquer tipo de pimenta. Eu gosto da malagueta e de umas redondinhas que chamam de cheiro.

Zk – Nós estamos falando de farinhada. Quantos dias dura uma farinhada?

Francisca – Eu não sei lhe explicar. Lá em casa eles torravam três fornadas num dia. Começava seis da manhã e terminava seis horas da tarde. A gente nunca fez farinhada à noite agora, tinha muita gente que quando chegava a alagação, varava a noite na farinhada pra não perder a colheita da mandioca.

Zk – A gente quando vai comprar farinha na feira o vendedor pergunta, d'água ou seca. Qual a diferença de uma pra outra?

Francisca – Tem a farinha d'água a chamada puba e tem a farinha d'água que é aquela que falei que a gente mistura a mandioca que ficou de molho com a mandioca seca. E tem a farinha seca que a gente "rela" a mandioca espreme no tipiti ou na prensa e bota pra enxugar e depois torra. Não é todo mundo que sabe fazer farinha não. Se a farinha d'água não ficar bem escaldada, não fica gostosa e seca também.

Zk – Como é que se faz para obter a farinha caroçuda e a sem caroço?

Francisca – Quem vai responder é meu filho Cesário.

Cesário – Quando ela já está escalda, já ta dentro do forno a gente peneira com a peneira, tira o caroço grosso e joga fora, tem gente que gosta dela mais grossa e então não peneira.

Zk – Dona Francisco falou sobre a farinha d'água. E a farinha seca como é faz?

Cesário – A seca a gente arranca a mandioca na roça, traz pro sevador, descasca, lava, rala e aí vai pro processo do tipiti pra tirar o tucupi e só depois é que se leva pra torrar no forno.

Zk – Por que, que umas saem amarela e outras brancas?

Cesário – Depende da qualidade da mandioca. Por exemplo, a farinha da macaxeira não amarela. A mandioca que faz a farinha amarela tem o nome de mandioca Orana. Existe um tipo de planta que a gente arranca e rala junto com a mandioca e dessa mistura sai uma farinha amarela. O Nome da planta não estou lembrado.

Francisca – É açafroa.

Zk – Cesário por que a gente não pode usar o tucupi que sai direto do tipiti ou da prensa?

Cesário – Acontece que o tucupi da mandioca é muito forte e por isso, pra ser usado tem que ser cozido. Para você ter idéia, quando a gente ta espremendo a mandioca, nenhum bicho doméstico, tipo porco, galinha, boi, cavalo e outros não podem ficar por perto para não beber aquele tucupi, se beber morre, o homem também se beber morre.

Zk – Vamos voltar ao tempo que a senhora chegou aqui nesse local do bairro Liberdade. Naquele tempo, mais lá pra frente tinha o batuque do Samburucu da Chica Macaxeira. A senhora chegou a freqüentar o Samburucu?

Francisca – Não! Eu tinha um filho, esse que morreu, que gostava de andar de noite, quando foi uma noite, ele disse que deram uma carreira nele. Nunca mais ele foi lá.

Zk – A senhora enquanto eleitora votava em quem?

Francisca – Cheguei a votar no Aluízio Ferreira e no Renato. Deixei de votar porque a vista ficou curta e eu não enxergava direito como até hoje e então tive que parar de votar.

Zk – A senhora tava dizendo que na Praia do Tamanduá que existe no baixo Madeira tinha muito bicho de casco, tartaruga e tracajá. Porque que esses bichos desapareceram de lá?

Francisca – Tem uma estória que acho que é lenda, bom! Dizem que a Praia do Tamanduá era local onde as tartarugas e tracajás subiam pra desovar, eram muito bichos de casco. Dizem também que o nome da Praia é porque existia uma pedra no formato de uma Tamanduá Bandeira.

Zk – E o que foi que houve com essa pedra?

Francisca – Dizem que veio um camarada e quebrou a cabeça do Tamanduá e desde então os bichos de casco foram embora. Hoje você não encontra nenhum bicho de casco desovando na Praia do Tamanduá. Acho que o sumiço dos bichos tem a ver com a estória do homem que quebrou a pedra que formava a cabeça do Tamanduá.

Zk – Dona Francisca! Independente da lenda, se a senhora não sabe, foi justamente da Praia do Tamanduá que levaram os bichos de casco para o Vale do Rio Guaporé. Hoje o Rio Guaporé lá p'ras bandas de Costa Marques é o maior celeiro de tartaruga e tracajá de Rondônia e um dos maiores do Brasil.

Francisca – É mesmo! Quer dizer que eles tiraram daqui e levaram pra lá; Tipo assim levaram a semente daqui.

Zk – Me diga aí o que devemos fazer pra chegar aos 94 anos de idade com o vigor que a senhora tem?

Francisca – Rapaz, ta muito difícil, porque a perversidade ta muito grande, hoje, criança não respeita pai nem mãe. Um dia desse assisti na televisão que o pai ia ser preso porque tinha "ralhado" com o filho e o filho deu parte dele, como é que pode uma coisa dessas, o pai não pode mais repreender o filho.

Zk – A senhora teve seu primeiro filho com quantos anos?

Francisca – Tava com 19 anos dentro dos vinte.

Zk – A senhora foi parteira?

Francisca – Fui! Veio uma mulher de Belém e me ensinou a trabalhar como parteira. Eu já pegava menino, aí essa mulher chegou e soube desse meu trabalho e mandou me chamar, aí eu fiquei com medo pensando que ela fosse investigar alguma coisa, mas não ela fez foi me ensinar a pegar menino direito. Quando fiquei ruim da vista parei.

Zk – A senhora lembra do último parto que a senhora fez?

Francisca – Vou lhe falar a verdade, eu peguei ainda duas crianças obriga pela natureza.

Zk – Como obrigada pela natureza?

Francisca – Porque enquanto o pai saiu pra pegar a parteira eu fiquei em companhia com a mãe e a criança coroou (começou a nascer) e eu tive que pegar, todos estão grande um é o Maciel e o outro foi o Martins.

Zk – Esse Maciel é o que pra senhora?

Francisca – É meu neto, filho do Cesário.

 

 

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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