Segunda-feira, 17 de maio de 2010 - 05h05
No final do século XIX, nordestinos atraídos pelo advento da borracha, chegam a Cachoeira de Samuel onde os seringalistas, montavam seus barracões com a intenção de armazenar as pelas de borracha e ao mesmo tempo, contratar mão de obra para trabalhar na extração do látex, nos seringais localizados no chamado Vale do Rio Jamari. A afluência dos nordestinos foi tanta, que Samuel chegou a ser considerada o maior lugarejo da região. Ali existiu a Vila de Samuel com comercio de venda de tudo quanto era produto de primeira necessidades, além de vestuário para todos os gostos. “Em Samuel encostavam grandes navios que entravam no Jamari por São Carlos”.
O rio Jamari é um rio da Bacia Amazônica, afluente do rio Madeira. Na sua margem direita e no munícipio de Candeias do Jamari. Ali existia a cachoeira chamada Samuel, onde foi construído a barragem da Hidrelétrica de Samuel, com potência instalada de 216,0 Mw. Por não possuir bacia acentuada, o rio Jamari recebeu em seu leito um dique de 45 km de extensão de cada margem para formar o lago da hidrelétrica. A usina começou a ser construída no ano de 1982. O plano era para a usina terminar de ser construída em quatro anos mas, devido à falta de verbas, esta só foi concluída catorze anos depois.
Segundo o MAB - Movimento dos Atingidos por Barragens, a obra foi responsável pela criação de grandes bolsões de miséria na periferia de Porto Velho ao ter ignorado direitos e negado assistência a cerca de 650 famílias de atingidos.
Nossa entrevistada saiu da Vila de Samuel para Porto Velho muito antes (década de 1950), do inicio da construção da hidrelétrica de Samuel. “Não sofremos com a chegada da usina, pois já estávamos morando em Porto Velho.
As histórias que ouvimos de dona Maria da Conceição são as vividas nos seringais do Vale do Jamari, principalmente em Ariquemes e depois na própria Vila de Samuel onde durante o verão muitos moradores de Porto Velho iam se bronzear nas prais do rio Jamari que ficavam nas proximidades da Cachoeira de Samuel.
E N T R E V I S T A
Zk - Onde a senhora nasceu?
Conceição – Nasci num lugar chamado Santa Cruz na cabeceira do rio Jamari que na época pertencia ao estado do Mato Grosso.
Zk – O que a sua família fazia em Santa Cruz?
Conceição – Meu pai era arrendatário, trabalhava com gente num seringal arrendado dos Arruda. Acontedce que meu pai se separou da minha mãe e ela veio embora para Ariquemes e eu vim junto com ela. Depois resolvi voltar a morar com meu pai. Nessas alturas eu já morava na Cachoeira de Samuel e depois meu pai veio morar em Porto Velho e eu o acompanhei
Zk – A senhora casou na cachoeira de Samuel?
Conceição – Não! Casei em Ariquemes num lugar chamado Papagaio. Era o seguinte: Ariquemes naquela época era dividida.
Zk – Como era essa divisão?
Conceição – Passava um igarapé no meio. Do lado de cá ficava a localidade de Ariquemes que era dos índios e do outro lado era a localidade de Papagaio que era dos Arruda. Foi justamente na localidade de Papagaio que me casei com o Heraldo (já falecido), um embarcadiço.
Zk – Como funcionava o serviço de navegação no alto rio Jamari?
Conceição – Pelo menos a lancha que o Heraldo trabalhava, fazia viagem de Cachoeira de Samuel até a cabeceira do rio Jamari. Na ida ou na subida o batelão ia carregado de gêneros alimentícios como, feijão, arroz, charque, açúcar essas coisas, além de querosene e todo material que era usado na produção da seringa, como faca de cortar seringa, poronga (suporte de lamparina de querosene usado na cabeça dos seringueiros para iluminar o caminho à noite no seringal) e outros mantimentos. Na descida o batelão era carregado com a borracha produzida nos seringais e outros produtos além de pessoas que aproveitavam para vir fazer comemora em Cachoeira de Samuel.
Zk – E Samuel tinha comercio grande?
Conceição – Pelo menos enquanto vivi na Cachoeira e naquela redondeza, a Cachoeira de Samuel era uma localidade que tinha tudo que a gente precisava. Dizia os mais velhos da época, que Cachoeira de Samuel foi considerada uma das maiores cidades da região, pois era lá que ficava o principal porto da região do Vale do Jamari e nesse porto, atracavam navios considerados de grande porte onde pegavam borracha para levar até São Carlos outro entreposto de mercadoria muito importante para os seringalistas.
Zk – Voltando a Ariquemes do lado de cá. Os índios eram brabos?
Conceição – Os índios que existiam por lá era tudo manso. Tinha um senhor chamado João Sobral que tomava conta de uma localidade chamada “Colônia” onde moravam alguns índios mansos.
Zk – Naquele tempo a comunicação era apenas pelo rio Jamari?
Conceição – Tinha a linha telegráfica do Rondon. Em Ariquemes tinha uma estação chamada “Linha Telegráfica” aonde chegavam os telegramas e de onde a gente enviava telegrama.
Zk – Como é que vocês faziam para se comunicar com os seringais que ficavam perto do de vices como o Nova Vida?
Conceição – Tinha uns homens que chamavam de Guarda Fio e esses homens faziam a manutenção da linha telegráfica. Como acontecia de cair muita árvore em cima da linha a comunicação via telegrafo ficava interrompida e por isso os Guardas Fio ganhavam para manter a linha desobstruída.
Zk – Como foi que a senhora foi parar em Cachoeira de Samuel e por quê?
Conceição – Acontece que me separei do companheiro que vivia comigo e me mudei para a casa do mui pai que na época morava em Cachoeira de Samuel tomando conta de um depósito de mercadorias de propriedade dos Arruda.
Zk – O que era comercializado em Samuel?
Conceição – Muita borracha, castanha, caucho e outros produtos, inclusive carne de caça.
Zk – Como funcionava o sistema de embarque e desembarque de mercadoria no porto de Cachoeira de Samuel?
Conceição – Existia o Porto de Cima. E o Porto de Baixo. No porto de cima desembarcavam os produtos que vinha dos seringais, como castanha e borracha. Como diz a denominação o Porto ficava do lado de cima da cachoeira. Ao chegar nesse porto, a carga dos batelões eram descarregadas através de um serviço de guincho no estilo ao que existia no Plano Inclinado de Porto Velho e então eram embarcadas nos navios que atracavam no porto de baixo que vinha de Manaus ou de Belém.
Zk – O que realmente existia na Cachoeira de Samuel no seu tempo?
Conceição – Apesar de já estar um pouco defasada na época que fui morar lá, ainda tinha muita coisa interessante. Cachoeira de Samuel era uma vila onde existia comercio de venda de praticamente tudo que existia na cidade. Eram o chamavam de Armazém ou empório e até taberna onde se comprava do querosene para lamparina, a roupa de frio.
Zk – A corredeira da cachoeira de Samuel era perigosa?
Conceição – Era perigosa até demais, ninguém se atrevia a descer a cachoeira, a gente tinha um ditado quando nos referíamos ao perigo que era enfrentar a corredeira de Samuel: “Por essa cachoeira não passa nem calango ensebado”. Por isso montaram o guincho.
Zk – Como era esse guincho?
Conceição – Era um carro de madeira puxado ou sustentado por um cabo de aço. Esse carro transportava a mercadoria que vinha do alto Jamari, ou seja, de Ariquemes e região para o porto que ficava do lado de baixo da cachoeira ou saída para a boca do Jamari em São Carlos
Zk – Na vila de Samuel tinha clube ou casa de festa?
Conceição – Tinha muita festa, principalmente quando chegava navio no porto aí se fazia festa para ganhar o dinheiro dos embarcadiços. Era muito bom!
Zk – O trafego de navios acontecia durante o ano todo?
Conceição – O movimento dos navios era mais freqüente do tempo do inverno ou no tempo da cheia. No verão era muito difícil navegar pelo rio Jamari por causa dos bancos de areia que se formavam e então acontecia da embarcação ficar encalhada e era aquele trabalho para desencalhar um navio daqueles.
Zk – O que comia na Vila de Cachoeira de Samuel?
Conceição – Muito peixe. Aliais o Jamari sempre foi um rio bom de peixe e naquele tempo não era diferente, tinha muita caça também. Quando o negócio ficava escasso mesmo, a gente apelava pro famoso Jabá (Charque) que era vendido em manta nas tabernas da Vila. O café era comprado em grão e torrado em casa.
Zk – Tem uma técnica para se torrar o café em casa?
Conceição – A gente pegava uma lata de 20 litros de querosene ou de banha, cortava no meio e fazia o caco de torrar café. Depois colocava o cadê em grão ascendia o fogão de lenha e colocava aquele caco com os grãos de café e ficava mexendo com uma espécie de pá (colher de pau) pequena ficava mexendo pra lá e pra cá até o café ficar todo pretinho, quando ele ficava assim pretinho tinha que continuar mexendo pra lá e pra cá até dar o ponto. Quando a gente via que o café estava no ponto deixava esfriar e então ia pilar. Não tinha moinho não era na base da mão de pilão mesmo. Depois de pilado se pegava uma peneira e peneirava aquele café pilado. Sobrava a parte grossa que não passava na peneira e a gente tinha que pilar de novo.
Zk – Como era chamado o café que se fazia após acabar o processo de torrar, pilar e peneirar?
Conceição – Era comum se chamar a vizinhança para tomar esse café> Hei fulano vem tomar um DONZELO!
Zk – Qual o tempero mais usado na confecção das comidas em Cachoeira de Samuel?
Conceição – Não tem nem como negar. Praticamente todos os pratos levavam o leite de castanha. Paca, Tatu, Veado, Porco do Mato, Peixe Salgado, Peixe no Sal Preso, Nambu, Jacu, Mutum, tudo no leite Ca castanha fica bom.
Zk – Como é que se prepara um prato no leite da castanha?
Conceição – Naquele tempo era um pouco difícil se extrair o leite da castanha. Primeiro tinha que descascar, depois ralar e então espremer. Geralmente a gente pegava aquele bagaço ralado, botava água e espremia num pano bem limpo. Era o leite da castanha.
Zk – E para temperar a comida?
Conceição – Vamos dizer que você esteja preparando um veado. Depois de temperar com os temperos tradicionais como pimenta do reino alho etc. Põe pra cozinhar. Quando estiver quase mole se coloca leite da castanha e deixa ferver. Tá pronto o prato de veado ao leite de castanha se tiver um jerimum fica melhor.
Zk – Já que estamos falando em prato típico. E Cuzcuz como se fazia antigamente?
Conceição – O Cuzcuz era feito com o milho meio “zarolho”.
Zk – E como é que a gente sabe que o milho está zarolho?
Conceição – Zarolho é quando o milho está querendo secar. Pega a espiga rala tira aquela massa. Quando o milho tá seco tem que molhar. Coloca num prato ou numa tampa de panela, forma aquela montainha furo no meio, pega um guardanapo limpo, põe na boca da panela que já deve estar com água fervendo, depois de uns 15 minutos está pronto o cuzcuz. Não tem segredo nenhum. Aí você coloca manteiga ou leite de castanha ou de coco e come.
Zk – Como é que se tira a goma pra fazer tapioca?
Conceição – Você tem que ralar a macaxeira crua depois coloca um pouco de água, côa numa bacia e deixa sentar. Quando a goma senta se tira o tucupi que ficou por cima e o que ficou embaixo é goma que depois de seca deve ser esfarelada e colocada pra secar e então tá no ponto de fazer tapioca.
Zk – Vamos voltar a Cachoeira de Samuel. A senhora morou lá até quando
Conceição – Não lembro bem o ano mas, foi até o inicio dos anos 1050. Meu pai já estava morando em Porto Velho e foi me buscar. Aqui em Porto Velho ele morava na Joaquim Nabuco com a Carlos Gomes, depois fomos para a hoje Nações Unidas> ali tanto ele se arrumou até que voltou para o seringal e voltou muito doente e morreu.
Zk – Como era o nome dele?
Conceição – Procópio Araujo dos Santos.
Zk – A senhora colocou muito rapaz pra dançar?
Conceição – Não fui namoradeira não! Gostava de dançar, mas, pra tá com fulano pra colá e sicrano pra cá não.
Zk – Em Porto Velho a senhora ia dançar aonde?
Conceição – Primeiramente tinha o Clube Sete de Setembro, depois veio o Danúbio Azul Bailante Clube e muitos outros que não lembro o nome agora.
Zk – Quantos filhos?
Conceição – Tem o Manoel o mais velho, a Maria de Nazaré a mais velha das mulheres, tem a Marizete, a Célia e a Maria Aparecida.
Zk – Para encerrar. A senhora é de quando?
Conceição – Sou de janeiro de 1924. Estou com 86 anos de idade. Não me sinto bem de saúde, mas, ainda faço os trabalhos de casa. A saúde tá dando pro gasto.
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