Maria Ana Pereira da Silva
Historias de uma seringueira
Nos preparativos para o carnaval de 2009, precisamente no mês de janeiro, como presidente da Federação das Escolas de Samba de Rondônia, fui visitar o barracão onde estavam sendo confeccionadas as fantasias da escola de samba Armário Grande. Foi justamente numa dessas visitas que encontrei dona Ana uma senhora muito simpática, que após alguns segundos de prosa, fiquei sabendo que era rondoniense nata, uma vez que nasceu em Jacy Paraná, precisamente no seringal “Rio Branco” de propriedade da empresa amazonense I.B. Sabba e Cia Ltda. “Meu pai veio do rio Juruá pra Manaus e lá conseguiu emprego na I.B. Sabba”. Durante nossa conversa o que mais me chamou a atenção, foi quando perguntei sobre um cidadão que vivia caçando índio, justamente no território onde a família de dona Ana morava em Jacy Paraná, ela me disse que inclusive conheceu a mulher do cidadão em apreço, que foi morta pelos índios Araras. “Os índios não só mataram a mulher dele, mas comeram parte de seu corpo e deixaram apenas um toquinho”, além disso, prosseguiu dona Ana, “os Araras levaram uma filha do casal”. Para se vingar de tamanha atrocidade o seringalista passou a caçar os índios. Não os Araras mas, índio de qualquer tribo. “Ele dizia que só assustava, mas o povo falava que ele matava”.
Além dessa historia tenebrosa, você vai ficar sabendo como se preparava uma tartaruga. “Meus filhos nunca saborearam dessa bóia de tartaruga, tão gostosa”. Costureira de mão cheia, dona Ana é mãe do João Big presidente da quadrilha JUABP. "Enquanto existir essa quadrilha estarei colaborando na confecção das indumentárias”. Vamos saber mais sobre essa seringueira nata nascida e criado no seringal Rio Branco em Jacy Paraná – Rondônia!
E N T R E V I S T A
Zk – A senhora me disse que é da região de Jacy Paraná. De qual localidade ou colocação?
Ana - Nasci no seringal Rio Branco. Meu pai trabalhava para a empresa I.B. Sabba.
Zk – De Jacy Paraná até o seringal Rio Branco quanto tempo durava a viagem?
Ana – De subida, se não me engano, eram nove dias de viagem. Acontece que para chegar ao seringal Rio Branco a gente primeiro passava por São Domingos, não era fácil a vida do seringueiro naquele tempo e acho que até hoje.
Zk – Fale sobre o seu pai?
Ana – O Nome dele era Carlos Roque Pereira. Ele era do Rio Juruá e quando veio pra cá morava em Manaus onde conseguiu emprego na I.B. Sabba. No mês de julho de 1940 ele veio para o seringal Rio Branco em Jacy Paraná. Não vá confundir o seringal Rio Branco que fica no Distrito de Jacy Paraná no estado de Rondônia com o Rio Branco do Acre. O rio Branco em questão é um afluente do Rio Jacy Paraná, local onde pelo menos, naquela época servia de morada para algumas tribos de índios como os Karitianas e Araras os mais perigosos porque comiam gente.
Zk – Quer dizer então que a senhora nasceu no seringal no meio de índios e muitas feras. Fale sobre sua infância?
Ana – A infância da menina seringueira era o seguinte: A gente ajudava nosso pai. Eu pelo menos ajudava a limpar as tijelas onde era colhido o leite da seringa, juntar sernambi.
Zk – Na estrada?
Ana – Claro que a gente ia para a estrada de seringa, cortar, colocar tigela.
Zk – A que horas da madrugada vocês saiam pra cortar, não era perigoso?
Ana – Tinha bicho, mas não bulia com a gente, foi a melhor época que passei na minha vida. Meu pai saia 1 hora da madrugada para 7 horas da manhã estar em casa tomando café. As estradas tinham entre cinqüenta e cento e poucas seringueiras. Quando dava dez/onze horas ele saia pra colher o leite, três horas da tarde, ele já estava de volta.
Zk – Como era o processo da defumação da seringa?
Ana – Era assim: A gente cavava aquele buraco no chão que chamava de “tanque” e fazia aquela fornalha, cobre com coco babaçu e ela faz a fumaça que vai defumar o leite da seringa. Tem a balança que é um pau que fica de um lado pro outro do defumador. Antes de começar a defumar, você põe o leite pra coalhar, depois corta esse coalho numa largura aproximada de três dedos, enrola naquele pau da balança e então começa a defumar, jogando o leite em cima. Todo dia você vai defumando e assim a borracha vai crescendo.
Zk – Tinha um limite de peso para a pela de borracha?
Ana – Bem, as pelas que meu pai produzia como ele era considerado bom seringueiro, pesavam acima de 120 quilos, na realidade o ideal era 150 quilos. Até porque a venda era na base do quilo e quanto mais peso melhor o preço.
Zk - Qual a diferença entre o sernambi e a borracha propriamente dita?
Ana – Por exemplo, o sernambi era uma borracha fofa porque a gente pegava direto do cavador para defumar, quero dizer, não tinha aquela parte do leite coalhado, por isso a gente chamava de borracha fofa. Tinha também o sernambi rama que era aquela borracha que era colhida direto na seringueira, aquela sobra de leite que escorria pela árvore, a gente ia juntando aquilo e formava mais um produto da seringueira.
Zk – A senhora sabe a classificação da borracha?
Ana – Tem a borracha fina, entre fina, sernambi rama e o sernambi virgem.
Zk – Como era produzida a bola de seringa, aquela que quando criança a gente jogava futebol. E os sapatos chamados de sapato de seringa?
Ana – O Meu pai fazia assim, pegava uma garrafa passava barro ou qualquer coisa que não grudasse e então ia defumando o leite. Depois botava pra secar, quando já estava seco ele tirava daquela garrafa e soprava dando o formado de bola do tamanho que quisesse. Já o sapato de seringa era deferente, ele fazia uma forma do pé da gente e depois ia defumando. Meu pai também fazia sandália. O processo era deferente do aplicado na confecção do sapato. Nesse caso o leite era aplicado num pano. Só o solado era borracha. Esse tecido que hoje é cantado em verso e prosa meu pai já fazia naquele tempo.
Zk – Quantos irmãos vocês eram ou são?
Ana – Bem! Da minha mãe dona Raimunda Pereira de Souza com o meu pai Carlos Roque sou filha única. Agora por parte de pai tinha mais cinco agora só tem quatro.
Zk – Vocês viveram o tempo todo no seringal Rio Branco?
Ana – Em 1950 minha mãe veio pra beira da estrada de ferro Madeira Mamoré porque meu pai foi pra Manaus e de lá foi designado pela empresa I.B Sabba para trabalhar no Rio Abunã.
Zk – Sempre que a gente entrevista pessoas que trabalharam em seringal naquele tempo, ouvimos que seringueiro não tirava saldo. É verdade?
Ana – Isso pode até ter acontecido, porém, com a gente não foi assim, talvez porque meu pai trabalhava para uma empresa que era a I.B Sabba. Acontece que assim como os seringalistas a I.B. Sabba aviava seus fregueses e esse aviamento tinha que ser pago. Se eu compro mercadoria tenho que pagar, assim quando chegava o tempo da pesagem da borracha que é quando o rio ta cheio, o patrão descontava o que o seringueiro havia comprado no barracão, o saldo em dinheiro, era passado para o seringueiro. Pelo menos no nosso caso, o patrão não matava para ficar com o saldo. A minha família todo ano tinha saldo, tanto que a gente ia passar as festas de final de ano em Manaus.
Zk – Como era a vida na colocação independente do seringal?
Ana – Geralmente meu pai comprava mercadoria por quinzena, trinta dias e até por seis meses. A carne era de caça, peixe e aves. Meu pai fazia farinha, tínhamos plantação de banana e muitas outras frutas assim como verduras como cheiro verde, chicória, couve e outras.
Zk – Quantos anos a senhora tinha quando veio morar em Porto Velho?
Ana – Estava com 17 anos de idade. Na realidade eu morava com minha avó em São Domingos. Minha mãe já morava na beira da estrada de ferro, mas eu morava no seringal com minha avó. Meu pai veio deixar minha avó aqui em Porto Velho para tratamento e eu vim com ela. Aqui ela morreu e eu fiquei aqui. Era o ano de 1960.
Zk – A senhora estudou até que série?
Ana – Estudei até a quarta série no colégio Jesus Bularmarque onde depois passei a trabalhar. To com seis anos de aposentadoria.
Zk – A senhora não conseguiu nada em relação a soldado da Borracha?
Ana – Antes d’eu me empregar, tinha todos os documentos que era para receber os benefícios como soldado da borracha, porém, teve um imprevisto que com todos os documentos pronto não sei pra onde foram os documentos do meu pai e eu desisti. Até hoje tenho os documentos dado pelo patrão do meu pai, assinados. O que desapareceu foi o documento da conta corrente e a formazinha onde constava a marca do meu pai que era “35”.
Zk – Vamos falar sobre os dias de hoje. A modista, costureira Dona Ana que confecciona roupa de quadrilha, escola de samba e até paletó?
Ana – Desde o seringal quando eu era menina, aprendi o oficio de costura. Minha avó era quem costurava para os seringueiros e minha mãe também era costureira. Era na máquina de mão e eu aprendi com elas. Do paletó a qualquer tipo de roupa eu faço tudo e duas das minhas meninas, seguem a tradição da família.
Zk - Quantos filhos?
Ana – De doze, apenas nove estão vivos. Cinco homens e quatro mulheres.
Zk – E o trabalho na confecção de roupas de quadrilha e escola de samba?
Ana – Comecei costurando para as quadrilhas pequenas, depois meu filho João o Big passou a ser presidente da JUABP e então passei a fazer com minhas filhas as roupas da quadrilha grande. Hoje em dia, enquanto existir a JUABP estarei contribuindo.
Zk – Aliás, como surgiu a quadrilha JUABP?
Ana – Eram uns meninos que tinham outra quadrilha e não deixavam criança brincar e na igreja Bom Pastor, aqueles meninos que estavam no catecismo começaram a brincar, aí meu filho João com outro rapaz que não lembro o nome agora, foi botou esse nome de JUABP que quer dizer Juventude da Igreja Bom Pastor. Em 2000 o BIG assumiu a direção geral da quadrilha, hoje esta com dez anos. O João é um grande estilista apesar de nunca ter feito curso sobre o assunto. Hoje ele cria fantasia também para escola de samba e a gente costura. Aqui é tudo em família.
Zk – Qual a roupa mais complicada para fazer, das escolas de samba ou das quadrilhas?
Ana – O carnaval tem uma parte que é mais fácil já a roupa da quadrilha, é muito pesada porque é toda no babado.
Zk – Quando começa o trabalho de confecção das roupas da JUABP para o Flor do Maracujá deste ano de 2010?
Ana - Em abril meu filho inaugura o ateliê e então começamos a trabalhar nas indumentárias da nossa querida JUABP.
Zk – A senhora disse que veio morar em Porto Velho com 17 anos. A senhora era festeira?
Ana – Minha família toda gosta de festa. No seringal não perdia um forrobodó e aqui em Porto Velho meus clubes preferidos era o Danúbio Azul e o Imperial.
Zk – E na cozinha. Como a senhora falou que no seringal a carne era de caça. Eu pergunto e tartaruga?
Ana - Meus filhos nunca comeram dessa bóia tão gostosa que é feita de tartaruga, tracajá e capitari. Tartaruga boa tem que ser preparada na Mujica que é a tartaruga cozinhada no próprio casco e depois de cozida, põe pra assar. Rapa ela todinha e faz aquele sarapatel. Não tem coisa melhor. Já na caça, pra mim, a melhor é o Tatu no leite da castanha. Para você fazer idéia, eu vim conhecer feijão quando vim morar em Porto Velho já com 17 anos. Era só carne de caça, peixe, embiara (mutum, jacu e todo bicho de pena), tartaruga, arroz, farinha etc.
Zk – Vamos contar algumas histórias sobre os índios que viviam na região de Jacy Paraná?
Ana – Bom, conheci os Karitianas, Capivari e Araras. Esses últimos comiam gente. Teve até um sobrinho da minha avó que foi perseguido pelos índios Araras.
Zk – A senhora conhece o caso que aconteceu praquelas bandas que os índios mataram uma mulher e levaram a filha enquanto o marido dela estava pra Porto Velho?
Ana – Conheci ele, o filho Moacir, a mulher dele que os índios mataram e comeram e a filha que os índios levaram.
Zk – É verdade que o pai do Moacir ficou tão revoltado quando retornou de Porto Velho e soube que os índios haviam matado a mulher dele e raptado sua filha e então passou a caçador de índio. Ele matava mesmo os índios?
Ana – Ele dizia que só assustava os índios, mas, todo mundo falava que ele fazia era matar, tanto que chegou um tempo, que quando os índios sentiam que ele estava no pedaço fugiam dali. Agora eu mesma não posso afirmar nada disso porque nunca vi um índio morto por ele.
Zk – E vocês eram incomodados pelos índios?
Ana – Ali no rio Mutum tinha índio da entrada até o rio Jacu. Lá o papai chegava de tarde e eles estavam pela beirada do rio. As vezes a gente sentia que eles estavam espiando a gente nas estradas de seringa mas, nunca buliram com a gente não. Já no seringal São Domingos teve um pessoal que matou um veado quando estavam tirando o couro do animal os índios Karitianas chegaram e flecharam um deles na polpa da bunda (os karitianas não matavam o homem branco eles só assustavam), os caçadores quando viram o colega flechado, saíram em disparada com o flechado junto. Depois de algum tempo voltaram e só encontraram o sangue do veado, quer dizer, os índios só queriam a caça.
Zk – Para encerrar?
Ana – Chamo a atenção de todos para a apresentação da quadrilha JUABP no Flor do Maracujá deste ano. Vamos arrasar.