Sexta-feira, 9 de agosto de 2013 - 12h37
Vinício Carrilho Martinez (Dr.)[1]
As Pontes dos séculos XVIII e XIX[2]são fortificações ou pontes-Estado. O Estado Moderno ao mesmo tempo em que atrai com força centrípeta, aproximando distâncias entre indivíduos e Estados, mantem-se seguro, a uma distância segura, calculada. Em todo caso, são pontes que transpuseram os obstáculos da modernidade. Ao mesmo tempo em que se aprofunda, em busca de um sentido que religue duas realidades, localidades separadas, indivíduos e individualidades distantes, a ponte se espraia em direção ao horizonte. Por isso, é uma típica ponte-Estado do século XVIII. Que segredos estariam guardados nos subterrâneos da Razão de Estado?
Abaixo, esta segunda ponte se apresenta pronta para a Guerra, mas também é a casa da política e da administração, religando-se o poder temporal com o poder religioso (como se vê na imagem da catedral no lado direito da foto).
Já os arcos desta terceira ponte, abaixo, revelam força e beleza, ou melhor, a beleza da força. Dá-nos a ideia de que o Estado é uma construção sublime, arquitetado para religar como poder mágico. É um Estado místico, religioso, quer seja como relegere, quando podemos reler as escrituras políticas, quer seja como religare, religando-se laços de solidariedade inerentes à Razão de Estado: o imposto é suportado porque religa as pessoas nos que têm de essencial; pagamos o Estado para que esteja do nosso lado. Este conjunto legitimaria a solidariedade imposta pelo Estado e, por isso, o Estado Laico precisa criar suas próprias crenças, a começar da crença na sua força irresistível, como ponte-Estado, entre Estado-soberano e seres domesticados pela política. O preço para pertencer à Polis é perder a autonomia e assim não transpor os arcos do triunfo político com consciência política. Pode-se participar da Polis, com consciência, mas desde que a consciência não seja tanta que leve à crítica ao Estado.
Especificamente, os Arcos do Triunfo foram construídos por Napoleão, em Paris, entre 1806 e 1836. A arquitetura do poder, entretanto, não seria uma homenagem ao general, mas sim o triunfo do próprio Estado, uma vez que o Estado Moderno surgiu com a derrocada de Napoleão Bonaparte. Por esta lógica, conclui Hegel, o Estado de Napoleão sintetizava a realização da razão (Châtelet. 1993). Em parte, esta superação pode ser vista na substituição dos exércitos de mercenários de Napoleão Bonaparte (os decembristas) por exércitos regulares e, obviamente, pelo soterramento da ideia de Imperialismo, simplesmente, porque o Estado Moderno requer soberania interna e externa.
O chamado lumpemproletariado teve papel decisivo na Revolução Francesa de 1789, como seguidores de Hobbes – uma gente decisiva e decidida a não-perder o acesso à história. Os netos e bisnetos desses sujeitos voltaram a ser invocados, como mercenários, por Napoleão Bonaparte (1769-1821). Chamados de decembristas, formavam fileiras com milhares de soldados-mercenários. Nas revoluções operárias de 1848, na Europa, o lumpem esteve aliado ao proletariado, bem como Comuna de Paris (1871), considerado o primeiro governo popular da história. É evidente que esta instabilidade ideológica não serviria aos esforços de dominação do Estado Moderno e também porque o Estado Moderno precisava se afirmar como base de um novo mundo de significados políticos: “A centralização do Estado, de que necessita a sociedade moderna, só surge das ruínas da máquina governamental burocrático-militar forjada em oposição ao feudalismo” (Marx, 1978, p. 122 – grifos nossos). Institucionalmente, o Estado Moderno precisava ser apresentado como “obra política bem acabada”, como um conjunto de institutos e instituições de apoio. Contudo, como projeto constitucional, o Estado Moderno se afirmaria na Revolução Francesa:
A liberdade, a igualdade, a justiça são os princípios necessários daquilo que não é depravado; todas as convenções repousam sobre elas como o mar sobre sua base e contra suas margens [...] na França não há poder, falando sensatamente; só as leis comandam, seus ministros impõem-se a obrigação de prestar contas uns aos outros e todos juntos à opinião, que é o espírito dos princípios [...] Os poderes devem ser moderados, as leis implacáveis, os princípios irreversíveis[3]. A opinião é a consequência e a depositária dos princípios. Em todas as coisas o princípio e o fim se tocam onde estão prestes a se dissolver. Há uma diferença entre o espírito público e a opinião: o primeiro é formado pelas relações de constituição ou da ordem, e a opinião é formada pelo espírito público (Saint-Just, 1989, p. 50, 51, 52).
Historicamente, no entanto, esta lógica política se construiu com Hobbes. O filósofo inglêsé um pensador do período clássico do Renascimento e, em certo sentido, é um homem do seu tempo – ao depositar, por exemplo, as esperanças de construir o poder com base na razão. (O Estado Moderno seria um projeto da razão). Se o homem é o lobo do homem, somente uma razão superior poderá alquebrar a inclinação para a ofensa do direito e esta razão (ou reta razão) é a soberania. Portanto, o contrato social deve seguir as orientações desta mesma razão como indicador da construção da paz social. Porém, o contrato social de Hobbes não se compadece em direito criminal e não pode ser abonado como justificativa do uso abusivo do poder:
A articulação do Estado, aliada aos imperativos metabólicos mais internos do capital, significa simultaneamente a transformação das forças centrífugas disruptivas num sistema irrestringível de unidades produtivas, sistema possuidor de uma estrutura de comando viável dentro dos tais microcosmos reprodutivos e também fora de suas fronteiras [...] Portanto, enquanto se puder manter tal dinâmica expansionista, não há necessidade do Leviatã hobbesiano [...] É assim que se redefine de maneira viável o significado do bellum omnium contra omnes hobbesiano no sistema do capital, presumindo-se que não haja limites para a expansão global [...] O Estado moderno – na qualidade de sistema de comando político abrangente do capital – é, ao mesmo tempo, o pré-requisito necessário da transformação das unidades inicialmente fragmentadas do capital em um sistema viável, e o quadro geral para a completa articulação e manutenção deste último como sistema global. Neste sentido fundamental, o Estado – em razão de seu papel constitutivo e permanentemente sustentador – deve ser entendido como parte integrante da própria base material do capital. Ele contribui de modo significativo não apenas para a formação e a consolidação de todas as grandes estruturas reprodutivas da sociedade, mas também para seu funcionamento ininterrupto (Mészáros, 2002, pp. 123-5 – grifos nossos).
O Estado Moderno precisa(va) atrair amigos (força centrípeta) e repelir inimigos (centrifugação). Nesse sentido, a tradição da própria Teoria Política identifica na violência o eixo da correlação entre os oponentes do Estado – uma relação facilmente justificável, se pensarmos que o Estado Moderno é fruto da razão. Neste sentido, a mesma ponte da política religa ou repele. Uma caracterização precisa é fornecida pelo Dicionário de Política (organizado por Norberto Bobbio) sobre o conceito de POLÍTICA, em seu 6 sub item, intitulado "A POLÍTICA COMO RELAÇÃO AMIGO-INIMIGO":
__ Entre as mais conhecidas e discutidas definições de Política, conta-se a de Carl Schmitt[4](retomada e desenvolvida por Julien Freund), segundo a qual a esfera da Política coincide com a da relação amigo-inimigo [...] Para dar maior força à sua definição, baseada numa oposição fundamental, amigo-inimigo, Schmitt a compara às definições de moral, de arte, etc, fundadas também em oposições fundamentais, como bom-mau, belo-feio, etc. [...] Logo se nota que o elemento distintivo está em que se trata de conflitos que, em última instância, só podem ser resolvidos pela força ou justificam, pelo menos, o uso da força pelos contendores para por fim à luta [...] são os conflitos em que, confrontados os contendores como inimigos, avita mea é a mors tua (1993, p. 959-60).
Esse traço de violência permanente na política se deve ao fato dos conflitos não serem resolvidos de forma definitiva, apresentando apenas momentos de tréguas passageiras, armistícios. Bobbio (em O futuro da democracia) é sintético: “A vida política se desenvolve através de conflitos jamais resolvidos em definitivo, e cuja resolução acontece mediante acordos momentâneos, tréguas e esses tratados de paz mais duradouros que são as constituições”[5](1986, p. 132). Mesmo os períodos de armistício, suspensão temporária do estado de guerra, não são suficientes para solucionar ou “eliminar” a violência reinante na política, sem que haja uma total eliminação das “reservas secretas” ou interesses exclusivos e particularizados, porque nesse estado apenas se prepara outra guerra. O Estado Moderno é uma arquitetura da razão e deveria ser visto como pacificador, mas, por pela razão simples de não servir a todos do mesmo modo e de modo suficiente, a relação com o poder estatal cria e recria adversidades e adversários. Na verdade o Estado como um todo é um produto do querer humano, ou seja, de sua razão aplicada à política e isto fortalece este “querer” que o Estado Moderno atuasse equilibradamente em relação a todos – o que não é possível.
Bibliografia
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro : Campus, 1992.
____ Direita e esquerda: razões e significados de uma distinção política. São Paulo : Editora Unesp, 1995.
____ Estudos sobre Hegel: direito, sociedade civil, Estado. São Paulo : Brasiliense : Editora Unesp, 1989.
____ Liberalismo e democracia. São Paulo : Brasiliense; 1990.
____ O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. Rio de janeiro : Paz e Terra, 1986.
CHÂTELET, F. & DUHAMEL, O. & PISIER, E. Dicionário das Obras Políticas. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 1993.
DELEUZE, Gilles & GUATARRI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. V. Rio de Janeiro: Editora 34, 2005.
MARTINEZ, Vinício C. O Cidadão de Silício. Editora da UNESP - Faculdade de Filosofia e Ciências : Marília- SP, 1997.
MARX, Karl. O 18 Brumário e cartas a Kugelmann. 4ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
MÉSZÁROS, István. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. Boitempo Editorial ; Editora da UNICAMP : São Paulo : Campinas, 2002.
SAINT-JUST. O espírito da revolução e da Constituição na França. São Paulo : Editora da UNESP, 1989.
[2]A análise das pontes do século XVIII é de Anne Querrien, socióloga e urbanista francesa, e é citada por Deleuze (2005).
[3]A liberdade, a igualdade, a justiça formam o tripé dos Direitos Humanos.
[4]Bobbio (em O futuro da democracia) ressalta que Carl Schmitt acabou se envolvendo em uma intensa polêmica antidemocrática (1986, p. 134) e continua na crítica (em Direita e esquerda), afirmando que Schmitt é um representante da “direita reacionária leiga” (1995, p. 77). Além do que, Bobbio critica no autor a “indébita violação ou contaminação de planos diversos, com as duplas verdadeiro-falso, belo-feio, etc.”, na comparação da dupla “amigo-inimigo” na definição de política (1995, p. 75).
[5]Como justificativa para essa interpretação da violência e dos conflitos na política, Bobbio traça um paralelo com o surgimento do Estado, em que lados antagônicos se opunham continuamente: “Este contraste entre a figuração e a realidade pode ser bem exemplificado pela não coincidência entre a ininterrupta continuidade do conflito secular, típico da idade moderna, que opõe camadas e monarca, parlamentos e coroa, e a doutrina do estado, baseada sobre o conceito de soberania, de unidade de poder, de primado do poder legislativo, e que vai sendo elaborada naquele mesmo período de tempo por obra dos escritores políticos e de direito público, de Bodin a Rousseau, de Hobbes a Hegel” (1986, p. 132).
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Vinício Carrilho Martinez (Dr.) Cientista Social e professor da UFSCar Márlon Pessanha Doutor em Ensino de CiênciasDocente da Universidade Federal de