Terça-feira, 30 de junho de 2015 - 11h06
A história da luta pelo direito coincide com as lutas políticas pela cidadania. Historicamente, seja luta política declarada seja luta pelo direito em instâncias mais convencionais, debater-se pelo direito sempre acarretou conquistas em liberdades e em garantias.
Tome-se o exemplo da Lei de Habeas Corpus, em 1679, e todas as outras requisições por mais direitos para servos, marginalizados e excluídos de toda forma. Por isso, toda luta pelo direito, além de ser uma luta política, é também uma luta de classes.
Lutam as classes, os grupos, as camadas, os estratos possuidores de direitos e os excluídos das formas mínimas de inclusão no processo político que origina, via de regra, os tais direitos requeridos e que estão na base da disputa política e social.
Contemporaneamente, tanto dentro quanto fora dos domínios estatais, povos e classes lutam por seus direitos e isto alimenta e alarga o leque de um já vigoroso conjunto complexo de direitos.
Como esses ganhos de direito são cumulativos e se espalham na consciência e nas práticas sociais, para além do seu local de partida, são entendidos como direitos humanos.
O que tornou o direito efetivo – além de mera requisição judicial ou de uma aposta na presunção de validade das Declarações de Direitos – é, justamente, a consciência política que ele congrega e alavanca. A conquista de um é, significativamente, a demanda de outros.
Afinal, nessa luta política pelo direito, racionalmente, é cada vez mais difícil argumentar que – isento da paridade, da isonomia e da equidade – o direito vale para alguns e para outros nem se constitui em presunção ou “expectativa de direito”.
Alguns direitos, pode-se dizer, ao se constituirem como conquistas de uns, imediatamente, mitigam privilégios de outros. O direito é o exato oposto dos privilégios, uma vez que o direito se baseia em regra geral, efeito erga omnes, e o privilégio é o reduto de uma casta que conta com as benesses de “leis privadas”.
O sufrágio universal, por exemplo, ao ampliar consideravelmente o direito de voto, aniquilou os privilégios de uma casta empoderada que nutria seus interesses quando se verificava o “voto censitário”, quer dizer, quando se restringia à simples fórmula política: um voto para cada cidadão rico.
No caso do Direito do Trabalho isso é ainda mais evidente. Se pensarmos nas férias, no 13º salário, na previdência e na aposentadoria, no fundo, em todo o espectro posicionado como miríade no artigo 7º da Constituição Federal de 1988, resta evidente que são recursos repatriados do capital do empregador. Em verdade mesmo, a positivação da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) reforçou a condição do trabalho livre no Brasil, já em 1943.
Pois bem, antes dessas medidas protetivas, poucos ou quase nenhum direito era assegurado – nem bem os impostos eram recolhidos adequadamente – e o lucro, obtido com o sobre-trabalho, formava o bolo do capital acumulado. Na lógica do capital, hoje não é diferente, pois o patrimônio e o capital acumulado são provindos da exploração da mais-valia da classe trabalhadora; a diferença está nos direitos trabalhistas conquistados.
Todavia, bem sabemos, o moderno sistema capitalista só prospera com trabalho livre, porque necessita de um mercado interno de consumo, produzindo-se assim trabalhadores livres que sejam, ao mesmo tempo, consumidores dos diversos recursos produzidos socialmente pelo conjunto dos trabalhadores.
Com os direitos atribuídos ao trabalhador, além de se elevar a arrecadação que fortalece o serviço público, o direito atribuído traz mais dividendos aos trabalhadores. De certa forma, com mais direitos, mais dinheiro. E este é igualmente o moto-contínuo do crescimento econômico e do desenvolvimento social.
Na prática, a Filosofia do Direito – notadamente o Direito do Trabalho – é uma filosofia do social, porque ao prospectar “novos” direitos, ou modificar a interpretação tradicional de direitos já consagrados, acaba por modificar a realidade e as formas de convivialidade entre os cidadãos e os produtores sociais.
Por isso, mais especificamente, a Filosofia do Direito do Trabalho alinha-se às demandas e às conquistas de direitos sociais. É preciso pensar que o Direito do Trabalho, por excelência, não é o direito de um trabalhador, mas de um conjunto, um segmento e, ainda mais extensivamente, de uma classe social de trabalhadores.
Assim como, também na prática, os direitos conquistados não se restringem ao indivíduo amparado – e basta-nos pensar que sua família é o elo mais próximo que mantém com a sociedade, além do próprio local de trabalho, e que será influenciada pelos “novos” direitos –, nessa configuração posterior, o direito acaba por promover alterações sociais amplas, com modificações culturais e políticas.
A isto a Sociologia Clássica convencionou denominar de mudanças societais. São mudanças globais (culturais, econômicas, subsequentemente, políticas) e, assim, podem ser diferenciadas das mudanças sociais observadas pelo senso comum.
Também são mudanças estruturais e, nesse quesito, a luta política pelo direito promove mudanças profundas, às vezes mais, às menos radicais, como se viu historicamente: a) na Desobediência Civil, nos EUA, na Índia, no caso de maior radicalidade; b) a própria CLT no segundo caso, com menos abalos sistêmicos, posto que era uma “mudança esperada” pelo modo de produção capitalista, e que já se modificara no mundo e que exigia uma adequação de mercado no Brasil.
Este conjunto, progressivamente atuante, mais vez mais extensivo e prospectivo, na forma de uma ampliação do “leque” dos direitos humanos, ainda podemos concluir, inicialmente, traz o inventário da história em que o direito assegurado a um povo, em seguida, pode/deve ser a demanda de outro.
Este fluxo de penetrações culturais e jurídicas é infindável, mas é exatamente esse movimento secular/milenar que movimenta e expande o processo civilizatório. Com o tempo, as formas de luta política convencionais – e que se utilizavam, por exemplo, da via armada (como visto entre os povos colonizados) – foram substituídas pela luta pelo direito.
O direito, em si, é uma fabricação racional, ainda que mediada pela luta política das classes sociais envolvidas. Não que o direito não tenha origem, muitas vezes, em momentos conflitivos graves (como o direito de greve, e que é um direito substancialmente político), mas ocorre que o direito é, sobremaneira, um atributo de operação racional. O direito, inerentemente, tem uma lógica que deve ser observada para que a eficácia jurídica seja mais plena.
Dessa lógica jurídica intercorre uma adequação da regra geral ao caso concreto – ou o contrário, no sentido da subsunção – e, em espécie, a adaptação entre o sentido expresso pela norma e sua aplicação ao dado empírico fático, por não serem de uma mesma natureza, requerem uma justificação, uma interpretação e uma hermenêutica factível, coerente, equilibrada.
Tanto a criação quanto a aplicação do direito, salvo o soberano que age por conta própria, requerem o esforço conceitual, cognitivo que se aporta na justificação racional. A crescente judicialização da vida civil e da luta política comprova o apego e o apelo pela matriz racional do direito.
Se o direito é racional (em que pese a atuação de grupos de pressão que podem deslegitimar o contrato jurídico e societal) e se estamos habituados a nos socorrer de sua incidência, logo, torna-se mais difícil e oneroso recorrer a outros meios de solução conflitiva menos racionais.
A demanda judicial, coletivamente falando, torna-se a via de preferência das próprias ações coletivas no mundo do trabalho. A legalidade do direito de greve acaba no Judiciário. A luta política, não só no Brasil, ocupa o outro extremo dessa mesma judicialização (e que não se confunde com criminalização) das relações societais.
Este esforço, obviamente, aprofunda as conquistas por uma racionalidade não só jurídica, pois que, paulatinamente, os indivíduos absortos em conquistas e em enlaces jurídicos passam a não-mais admitir outras formas de luta política e social que não sejam racionalmente equilibradas e justificadas no ordenamento internacional dos direitos humanos globalmente aceitos.
Assim, atua e se fortalece, nesse diapasão, o Princípio da Previsibilidade, uma vez que, se hoje há espaços a serem conquistados no interior do Estado de Direito e do ordenamento jurídico interno, por que razão não esperar o mesmo recorte moral e racional para amanhã? As conquistas de hoje alimentam as demandas que estão por vir. O direito conquistado – especialmente se positivado – instiga a luta pelo direito que se construirá a partir das mudanças na base das relações sociais.
Comparativamente, e em sentido reverso, ainda é possível investigar que a chamada política profissional não apresenta as mesmas regras de racionalidade. Salvo honrosas exceções, um político profissional não nos diz: “salvo engano”; “se não estiver enganado”; “vou verificar a fonte e definirei meu posicionamento”.
O realismo político não permite esta avaliação, pois que a indefinição do contendor seria considerada falsete, fragilidade, inconstância e desequilíbrio pelo adversário. No caso de erro judicial ou de interpretação discordante, juridicamente (quer dizer, sem abalos sistêmicos), as decisões de magistrados podem ser modificadas e corrigidas, observando-se novas regras ou, então, para estarem de acordo com a interpretação majoritária.
Outra diferença entre direito e política, neste passo, é que se fala de movimentos hegemônicos em política, mas de concepções majoritárias em direito. A hegemonia requer controle integral, sem mediações significativas; a concepção majoritária apenas indica que é o posicionamento que se adotou até determinada fase do processo.
A diferença principal talvez esteja em que, as posições hegemônicas não dialogam com princípios e preceitos, a não ser aqueles que se assegurem o poder para quem já o detenha; por sua vez, os movimentos cognitivos no direito podem ser abalados por fatos novos ou pela pressão da opinião pública.
Se isto se dá desse modo, sem os tais abalos sistêmicos, concepções jurídicas até então minoritárias podem se elevar para uma condição mais consagradora em termos de atuar “poder dentro do direito”. Todos esses fatores realçam a necessidade de se avaliar a história e a política como fontes do direito.
No caso específico do mundo do trabalho, vemos o papel desempenhado pela Filosofia do Direito do Trabalho na formulação de uma agenda protetiva, bem como na definição/proibição da exploração de diversas formas de trabalho, como servidão, trabalho escravo ou exploração do trabalho infantil.
A Filosofia do Direito do Trabalho, neste sentido, introjetou muito mais energia moral às causas mais elementares da racionalidade jurídica que fundamenta o longo e penoso processo civilizatório. Enfim, ainda se pode pensar que a Filosofia do Direito do Trabalho desempenhou função semelhante a que ocupam os direitos humanitários, no contexto do direito de guerra.
Hoje, um dos maiores desafios está em nos resguardarmos da violenta precarização que se move contra o mundo do trabalho; o mesmo que vem sendo patrocinado na consciência humana por Prometeu.
Vinício Carrilho Martinez
Professor da Universidade Federal de São Carlos
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Vinício Carrilho Martinez (Dr.) Cientista Social e professor da UFSCar Márlon Pessanha Doutor em Ensino de CiênciasDocente da Universidade Federal de