Sábado, 2 de outubro de 2021 - 08h55
O Brasil de 2016-2021 é um estudo de
caso perfeito da Sociedade de Controle no século XXI (DELEUZE, 1992, p. 221):
equivale a ver o Brasil pré-moderno na era pós-moderna. Especificamente, dentre
as formas mais obtusas de exercício ou violação do poder, podemos dizer que
nosso atual desastre nacional vem de inspiração longínqua e de longe, seja
propriamente nazista[1] ou
disfarçada de Bonapartismo (MARX, 1978), Cesarismo de Estado (GRAMSCI, 2000),
Bonapartismo soft (LOSURDO, 2004) ou
simplesmente Fascismo reinventado pelas alquimias políticas destrutivas,
disruptivas do Processo Civilizatório (MARTINEZ, 2021).
Na verdade, parece que vivemos uma
somatória de todos esses fatos/fenômenos no que todos eles têm de pior. Porém,
como veremos, o destaque nesse texto recairá sobre um dos muitos aspectos
analógicos (clássicos e ainda operantes) do exercício ou captura do poder
público de forma autocrática, antipopular e a serviço do capital mais lincado à
barbárie social. O destaque, hoje, corre por conta do assim chamado Bonapartismo.
Bonapartismo
Nacional
Denominamos de Bonapartismo
Nacional o que, em certa medida, ainda corresponderia ao tipo anacrônico e
indiferente à vida humana que designamos por Fascismo Miliciano[2]
– ou seja, se nos apropriarmos do Bonapartismo para o cenário nacional de 2021,
obrigatoriamente, teremos de fazer aproximações e compensações. Essa observação
é essencial porque o Bonapartismo de Marx não pode ser empregado como se fosse
uma chave mestra da história da luta de classes e muito menos como “tipo
ideal”. Em que sentido, então, o Bonapartismo pode ser “atualizado” a fim de
melhor entendermos o Brasil de 2021?
Bonapartismo
No livro “18 de Brumário”, Marx
(1978) apresentou, pela primeira vez, o conceito, as práticas, os meios e os
fins do Estado de Exceção (AGAMBEN, 2004); mas denominara-o de Bonapartismo:
os meios e os fins políticos e práticos (administrativos) designados por Luís
Bonaparte ao Estado burguês. Se tudo que é sólido “desmancha no ar” (Marx,
1993), tudo o que existe merece perecer[3].
Em essência, o Estado de Exceção
seria a face mais burguesa (manu militari)
da Revolução Francesa (Marx, 1978, p. 23). No caso de Luís Bonaparte, a
impotência política desaguou no uso da força extrema; porém, o bonapartismo não
é uma reedição do cesarismo (métodos e instrumentos utilizados por Júlio
César). O bonapartismo também deve ser observado como condição específica da
burguesia europeia, sob as condições industriais da luta de classes. No dizer
do próprio Marx, as diferenças entre cesarismo e bonapartismo são qualitativas:
Finalmente espero que o meu trabalho possa contribuir para
afastar o termo ora em voga, principalmente na Alemanha, do chamado cesarismo. Nesta analogia histórica
superficial esquece-se o mais importante, ou seja, que na antiga Roma a luta de
classes desenvolveu-se apenas no seio de uma minoria privilegiada entre os mais
ricos cidadãos livres e os pobres cidadãos livres, enquanto a grande massa
produtora, os escravos, formava o pedestal puramente passivo para esses
combatentes. Esquece-se a significativa frase de Sismondi: “O proletariado
romano vivia às expensas da sociedade, enquanto a sociedade moderna vive às
expensas do proletariado” (Marx, 1978, p. 09).
O ano de 1848 revelaria uma sociedade
envelhecida – sociabilidade construída com base nas relações sociais de
produção capitalista –, sobretudo pela sedimentação da mais rígida divisão de
classes. Ao passo que nos EUA a “modernidade burguesa” era novidade que ainda
se fazia (Marx, 1978, p. 26). O que se denomina atualmente como protofascismo
já se manifestara como antiliberalismo burguês, quando a burguesia não se
preocupara em desmantelar os atributos liberais da política (Marx, 1978, p.
27). A última razão dos reis, portanto, seria o Estado de Sítio, posto que
viceja um sentido literal de excepcionalidade do poder – fase em que a exceção
impõe restrições, condicionamentos e limitações.
O inevitável estado-maior das liberdades de 1848, a
liberdade pessoal, as liberdades de imprensa, de palavra, de associação, de
reunião, de educação, de religião, etc., receberam um uniforme constitucional
que as fez invulneráveis. Com efeito, cada uma dessas liberdades é proclamada
como direito absoluto do cidadão
francês, mas sempre acompanhada da restrição à margem, no sentido de que é
ilimitada desde que não esteja limitada “pelos direitos iguais dos outros e
pela segurança pública” ou por “leis” destinadas a restabelecer precisamente
essa harmonia das liberdades individuais entre si e com a segurança pública
(Marx, 1978, p. 30).
Para cada direito, não corresponde
um dever; mas, sim, uma exceção – isto é, uma autorização expressa para que
seja negado e violado pelo Estado. A excepcionalidade é usada como regra de
controle social pela segurança pública (ou jurídica). Sempre que há conflito de
interesses – oriundos da insustentável exclusão advinda da divisão de classes –
recorre-se à exceção (Marx, 1978, p. 31).
As hostes de poder lançadas na
Revolução Francesa também criaram o Estado de Exceção (Marx, 1978, p. 34)[4]
– bases que também dariam suporte para a criação de um Estado Militar (Marx,
1978, p. 35). A fórmula do Bonapartismo revela o uso político do povo para
defenestrar o Parlamento e instaurar uma ditadura populista (Marx, 1978, p.
38), o que demandaria uma consciência aguda, baseada na razão política e na
autocrítica (Marx, 1978, p. 45).
O Estado de Exceção se firmava como
variante da social-democracia, uma forma política que seria desenvolvida
especialmente no século XX (Marx, 1978, p. 48). A exceção, portanto, seria
instrumento da modernidade que lançava, igualmente, as bases da forma-Estado
Social – não por acaso a República de Weimar foi consumida pela própria
Constituição de 1919.
O “18 Brumário” é um resumo
histórico da exceção (Marx, 1978, p. 55). Afinal, o partido da ordem sempre
faria uso dos meios de exceção (Marx, 1978, p. 56). O golpe institucional
perpetrado sob a forma do Estado de Sítio, no interior do Estado burguês, é um
estado orgânico, uma condição natural, regular, do poder hegemônico que serve
ao capital. O Estado de Sítio é um mote (Marx, 1978, p. 57); a modernidade
também trouxera regras para a burguesia (Marx, 1978, p. 62). Para demarcar o
caminho das tentativas de golpes, Marx cita Shakespeare (Marx, 1978, p. 71-
84).
Há um combinado de substancias
sociais heterogêneas (Marx, 1978, p. 89), que resultam em golpes (Marx, 1978,
p. 108), com o surgimento de um lumpem
da classe média, mas na esteira de um Estado introspectivo de capital expansivo
(Marx, 1978, p. 13-114). Trata-se do Estado Moderno.
Fantasmagorias
e excrescências
Quais desses aspectos estão em
vigência? Quais já estiveram e não estão? Ou quais já estiveram e podem ser
acionados a qualquer momento – contra o povo, os negros, os pobres, as classes
trabalhadoras? É impossível dizer. Cada leitor(a) faz seu ajuste de contas com
o conceito e sua história.
Porém, é inegável como somos
“criativos” para reunir a maldade política (golpista) e buscar incessantes
metamorfoses que açoitem o povo em sua dignidade. Assim, podemos concluir com,
ao menos, um aspecto negativo ao Processo Civilizatório do país e revelador dos
“decembristas” que chegaram ao poder em 2018: o bolsonarismo é o miolo
cotidiano do Bonapartismo Nacional (MARTINEZ, 2020).
Bibliografia
AGAMBEN, Giorgio. Estado
de Exceção. São Paulo : Boitempo, 2004.
DELEUZE, Gilles. Conversações, 1972-1990. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.
GOETHE, Johann Wolfgang von. Fausto. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia,
1997.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. (Org. Carlos Nelson
Coutinho). Volume III. Nicolau Maquiavel
II. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
LOSURDO, Domenico. Democracia
ou bonapartismo: triunfo e decadência do sufrágio universal. Rio de
Janeiro: UFRJ, 2004.
MARTINEZ, Vinício Carrilho. Bolsonarismo: alguns aspectos político-jurídicos e psicossociais.
Curitiba: Brazil Publishing, 2020.
_____ Necrofascismo.
Curitiba: Brazil Publishing, 2021.
MARX, Karl. O 18
Brumário e cartas a Kugelmann. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Petrópolis-RJ: Vozes, 1993.
[1] https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2021/09/29/diplomacia-paralela-do-brasil-mira-extrema-direita-opus-e-negacionistas.htm.
[2] O Fascismo miliciano no desfile do 7 de Setembro de 2021
teve, no emprego da violência (medo da morte violenta), um marco contra a
civilização. Sem desconsiderar outros fatores – como o racismo, a misoginia, a
homofobia –, o Fascismo miliciano convoca militares e policiais, da ativa e da
reserva, para aterrorizar a democracia. Portanto, no Fascismo miliciano, o
emprego de força física por paramilitares – obviamente cometendo inúmeros
crimes comuns – é a pior ameaça de morte à própria democracia. Além disso, é
preciso ter claro que as “milícias” são, por sua natureza, constituídas por
militares e policiais que traíram a moralidade pública (a honestidade
elementar) e, assim, foram atraídos por organizações criminosas.
[3] Marx (1978, p. 23) cita o Fausto (GOETHE,
1997).
[4] A origem do instituto do estado de sítio encontra-se
no decreto de 8 de julho de 1791 da Assembleia Constituinte francesa, que
distinguia entre: état de paix, em
que a autoridade militar e a autoridade civil agem cada uma em sua própria
esfera: état de guerre, em que a
autoridade civil deve agir em consonância com a autoridade militar; état de siège, em que “todas as funções
de que a autoridade civil é investida para a manutenção da ordem e da polícia
internas passam para o comando militar, que as exerce sob sua exclusiva
responsabilidade […]”. Em todo caso, é importante não esquecer que o estado de
exceção moderno é uma criação da tradição democrático-revolucionária, e não da
tradição absolutista (Agamben, 2004, p. 16).
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