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Vinício Carrilho

Bonapartismo Nacional


Bonapartismo Nacional - Gente de Opinião

O Brasil de 2016-2021 é um estudo de caso perfeito da Sociedade de Controle no século XXI (DELEUZE, 1992, p. 221): equivale a ver o Brasil pré-moderno na era pós-moderna. Especificamente, dentre as formas mais obtusas de exercício ou violação do poder, podemos dizer que nosso atual desastre nacional vem de inspiração longínqua e de longe, seja propriamente nazista[1] ou disfarçada de Bonapartismo (MARX, 1978), Cesarismo de Estado (GRAMSCI, 2000), Bonapartismo soft (LOSURDO, 2004) ou simplesmente Fascismo reinventado pelas alquimias políticas destrutivas, disruptivas do Processo Civilizatório (MARTINEZ, 2021).

Na verdade, parece que vivemos uma somatória de todos esses fatos/fenômenos no que todos eles têm de pior. Porém, como veremos, o destaque nesse texto recairá sobre um dos muitos aspectos analógicos (clássicos e ainda operantes) do exercício ou captura do poder público de forma autocrática, antipopular e a serviço do capital mais lincado à barbárie social. O destaque, hoje, corre por conta do assim chamado Bonapartismo.

 

Bonapartismo Nacional

Denominamos de Bonapartismo Nacional o que, em certa medida, ainda corresponderia ao tipo anacrônico e indiferente à vida humana que designamos por Fascismo Miliciano[2] – ou seja, se nos apropriarmos do Bonapartismo para o cenário nacional de 2021, obrigatoriamente, teremos de fazer aproximações e compensações. Essa observação é essencial porque o Bonapartismo de Marx não pode ser empregado como se fosse uma chave mestra da história da luta de classes e muito menos como “tipo ideal”. Em que sentido, então, o Bonapartismo pode ser “atualizado” a fim de melhor entendermos o Brasil de 2021?

 

Bonapartismo

No livro “18 de Brumário”, Marx (1978) apresentou, pela primeira vez, o conceito, as práticas, os meios e os fins do Estado de Exceção (AGAMBEN, 2004); mas denominara-o de Bonapartismo: os meios e os fins políticos e práticos (administrativos) designados por Luís Bonaparte ao Estado burguês. Se tudo que é sólido “desmancha no ar” (Marx, 1993), tudo o que existe merece perecer[3].

Em essência, o Estado de Exceção seria a face mais burguesa (manu militari) da Revolução Francesa (Marx, 1978, p. 23). No caso de Luís Bonaparte, a impotência política desaguou no uso da força extrema; porém, o bonapartismo não é uma reedição do cesarismo (métodos e instrumentos utilizados por Júlio César). O bonapartismo também deve ser observado como condição específica da burguesia europeia, sob as condições industriais da luta de classes. No dizer do próprio Marx, as diferenças entre cesarismo e bonapartismo são qualitativas:

Finalmente espero que o meu trabalho possa contribuir para afastar o termo ora em voga, principalmente na Alemanha, do chamado cesarismo. Nesta analogia histórica superficial esquece-se o mais importante, ou seja, que na antiga Roma a luta de classes desenvolveu-se apenas no seio de uma minoria privilegiada entre os mais ricos cidadãos livres e os pobres cidadãos livres, enquanto a grande massa produtora, os escravos, formava o pedestal puramente passivo para esses combatentes. Esquece-se a significativa frase de Sismondi: “O proletariado romano vivia às expensas da sociedade, enquanto a sociedade moderna vive às expensas do proletariado” (Marx, 1978, p. 09).

 

 O ano de 1848 revelaria uma sociedade envelhecida – sociabilidade construída com base nas relações sociais de produção capitalista –, sobretudo pela sedimentação da mais rígida divisão de classes. Ao passo que nos EUA a “modernidade burguesa” era novidade que ainda se fazia (Marx, 1978, p. 26). O que se denomina atualmente como protofascismo já se manifestara como antiliberalismo burguês, quando a burguesia não se preocupara em desmantelar os atributos liberais da política (Marx, 1978, p. 27). A última razão dos reis, portanto, seria o Estado de Sítio, posto que viceja um sentido literal de excepcionalidade do poder – fase em que a exceção impõe restrições, condicionamentos e limitações.   

O inevitável estado-maior das liberdades de 1848, a liberdade pessoal, as liberdades de imprensa, de palavra, de associação, de reunião, de educação, de religião, etc., receberam um uniforme constitucional que as fez invulneráveis. Com efeito, cada uma dessas liberdades é proclamada como direito absoluto do cidadão francês, mas sempre acompanhada da restrição à margem, no sentido de que é ilimitada desde que não esteja limitada “pelos direitos iguais dos outros e pela segurança pública” ou por “leis” destinadas a restabelecer precisamente essa harmonia das liberdades individuais entre si e com a segurança pública (Marx, 1978, p. 30).

 

Para cada direito, não corresponde um dever; mas, sim, uma exceção – isto é, uma autorização expressa para que seja negado e violado pelo Estado. A excepcionalidade é usada como regra de controle social pela segurança pública (ou jurídica). Sempre que há conflito de interesses – oriundos da insustentável exclusão advinda da divisão de classes – recorre-se à exceção (Marx, 1978, p. 31).        

As hostes de poder lançadas na Revolução Francesa também criaram o Estado de Exceção (Marx, 1978, p. 34)[4] – bases que também dariam suporte para a criação de um Estado Militar (Marx, 1978, p. 35). A fórmula do Bonapartismo revela o uso político do povo para defenestrar o Parlamento e instaurar uma ditadura populista (Marx, 1978, p. 38), o que demandaria uma consciência aguda, baseada na razão política e na autocrítica (Marx, 1978, p. 45).

O Estado de Exceção se firmava como variante da social-democracia, uma forma política que seria desenvolvida especialmente no século XX (Marx, 1978, p. 48). A exceção, portanto, seria instrumento da modernidade que lançava, igualmente, as bases da forma-Estado Social – não por acaso a República de Weimar foi consumida pela própria Constituição de 1919.

O “18 Brumário” é um resumo histórico da exceção (Marx, 1978, p. 55). Afinal, o partido da ordem sempre faria uso dos meios de exceção (Marx, 1978, p. 56). O golpe institucional perpetrado sob a forma do Estado de Sítio, no interior do Estado burguês, é um estado orgânico, uma condição natural, regular, do poder hegemônico que serve ao capital. O Estado de Sítio é um mote (Marx, 1978, p. 57); a modernidade também trouxera regras para a burguesia (Marx, 1978, p. 62). Para demarcar o caminho das tentativas de golpes, Marx cita Shakespeare (Marx, 1978, p. 71- 84).

Há um combinado de substancias sociais heterogêneas (Marx, 1978, p. 89), que resultam em golpes (Marx, 1978, p. 108), com o surgimento de um lumpem da classe média, mas na esteira de um Estado introspectivo de capital expansivo (Marx, 1978, p. 13-114). Trata-se do Estado Moderno.

 

Fantasmagorias e excrescências

Quais desses aspectos estão em vigência? Quais já estiveram e não estão? Ou quais já estiveram e podem ser acionados a qualquer momento – contra o povo, os negros, os pobres, as classes trabalhadoras? É impossível dizer. Cada leitor(a) faz seu ajuste de contas com o conceito e sua história.

Porém, é inegável como somos “criativos” para reunir a maldade política (golpista) e buscar incessantes metamorfoses que açoitem o povo em sua dignidade. Assim, podemos concluir com, ao menos, um aspecto negativo ao Processo Civilizatório do país e revelador dos “decembristas” que chegaram ao poder em 2018: o bolsonarismo é o miolo cotidiano do Bonapartismo Nacional (MARTINEZ, 2020).

 

Bibliografia 

AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo : Boitempo, 2004.

DELEUZE, Gilles. Conversações, 1972-1990. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.

GOETHE, Johann Wolfgang von. Fausto. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1997.

GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. (Org. Carlos Nelson Coutinho). Volume III. Nicolau Maquiavel II. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

LOSURDO, Domenico. Democracia ou bonapartismo: triunfo e decadência do sufrágio universal. Rio de Janeiro: UFRJ, 2004.

MARTINEZ, Vinício Carrilho. Bolsonarismo: alguns aspectos político-jurídicos e psicossociais. Curitiba: Brazil Publishing, 2020.

_____ Necrofascismo. Curitiba: Brazil Publishing, 2021.

MARX, Karl. O 18 Brumário e cartas a Kugelmann. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Petrópolis-RJ: Vozes, 1993.


[2] O Fascismo miliciano no desfile do 7 de Setembro de 2021 teve, no emprego da violência (medo da morte violenta), um marco contra a civilização. Sem desconsiderar outros fatores – como o racismo, a misoginia, a homofobia –, o Fascismo miliciano convoca militares e policiais, da ativa e da reserva, para aterrorizar a democracia. Portanto, no Fascismo miliciano, o emprego de força física por paramilitares – obviamente cometendo inúmeros crimes comuns – é a pior ameaça de morte à própria democracia. Além disso, é preciso ter claro que as “milícias” são, por sua natureza, constituídas por militares e policiais que traíram a moralidade pública (a honestidade elementar) e, assim, foram atraídos por organizações criminosas.

[3] Marx (1978, p. 23) cita o Fausto (GOETHE, 1997).

[4] A origem do instituto do estado de sítio encontra-se no decreto de 8 de julho de 1791 da Assembleia Constituinte francesa, que distinguia entre: état de paix, em que a autoridade militar e a autoridade civil agem cada uma em sua própria esfera: état de guerre, em que a autoridade civil deve agir em consonância com a autoridade militar; état de siège, em que “todas as funções de que a autoridade civil é investida para a manutenção da ordem e da polícia internas passam para o comando militar, que as exerce sob sua exclusiva responsabilidade […]”. Em todo caso, é importante não esquecer que o estado de exceção moderno é uma criação da tradição democrático-revolucionária, e não da tradição absolutista (Agamben, 2004, p. 16).

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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