Quarta-feira, 15 de abril de 2015 - 15h02
O texto foi escrito com uma finalidade precisa: uma única aula no Curso de Pedagogia da Terra (na UFSCAR/SP) destinado a trabalhadores assentados e que participam, efetivamente, de movimentos de trabalhadores rurais (destaca-se a Pedagogia da Alternância). Portanto, é um texto com finalidade unicamente didática, a partir da ideia central que margeia o Princípio Educativo em Antonio Gramsci. Não recortei o modelo ou tipo de escola (ou sistema organizacional escolar) preconizado pelo pensador italiano, porque temos inúmeras contribuições nacionais a esse respeito, a citar Paulo Freire, Dermeval Saviani e Paolo Nosella. O que, em si, também explicaria a quantidade de citações diretas do autor, uma vez que procurei me ater ao principal de sua argumentação. Somente no final há uma breve consideração pessoal. Com esta licença poética, penso que ainda temos muito que refletir sobre o papel dos Intelectuais Orgânicos, sobretudo no Brasil de 2015, em que somos acossados diuturnamente pelo Pensamento Único fascismo.
Gramsci e os intelectuais orgânicos
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. (Org. Carlos Nelson Coutinho). V. 2. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2000.
Gramsci valoriza o conhecimento popular, portanto, a atividade intelectual não se restringe ao academicismo, à ideia de que os intelectuais estão soltos no ar, livres das influências e determinações históricas, sociais e econômicas: “...não existe trabalho puramente físico [...] em qualquer trabalho físico, mesmo no mais mecânico e degradado, existe um mínimo de qualificação técnica, isto é, um mínimo de atividade intelectual criadora” (Gramsci, 2000, p. 18). Desse modo, os intelectuais não formam um grupo em si, “autônomo e independente”.
O erro metodológico mais difundido, ao que me parece, é em ter buscado este critério de distinção no que é intrínseco às atividades intelectuais, ao invés de buscá-lo no conjunto do sistema de relações no qual essas atividades (e, portanto, os grupos que as personificam) se encontram no conjunto das relações sociais (Gramsci, 2000, p. 18 – grifos nossos).
Na expressão de Antonio Gramsci, intelectuais orgânicos são aqueles que acompanham o surgimento das “novas” formações sociais, especialmente com o advento do capitalismo. São orgânicos porque pertencem a um organismo vivo e em expansão, estando conectados ao mundo do trabalho, à cultura e à política que o seu grupo social articula para dirigir a sociedade. Interligam-se a um projeto global e a um tipo de Estado capaz de instituir a conformação das massas no nível da produção (material e cultural) necessária à formação social que representam e fazem parte.
Todo grupo social, nascendo no terreno originário de uma função essencial no mundo da produção econômica, cria para si, ao mesmo tempo, organicamente, uma ou mais camadas de intelectuais que conferem homogeneidade e consciência da própria função, não apenas no campo econômico, como também no social e político: o empresário capitalista cria consigo o técnico da indústria, o cientista da economia política, o organizador de uma nova cultura, de um novo direito etc., etc. (Gramsci, 2000, p.15 – grifos nossos).
Do mesmo modo que surgiram a burguesia[1] e o proletariado, também surgiram os intelectuais que lhes emprestam uma visão de mundo (teórica e/ou ideológica) adequada aos desafios da modernidade. E o papel desempenhado por esses intelectuais não é trivial ao poder; antes, é essencial como mecanismo de mediação no contexto das relações sociais fundamentais:
A relação entre os intelectuais e o mundo da produção não é imediata, como ocorre no caso dos grupos sociais fundamentais, mas é “mediatizada”, em diversos graus, por todo o tecido social, pelo conjunto das superestruturas, do qual os intelectuais são precisamente os “funcionários” (Gramsci, 2000, p. 20).
Os chamados intelectuais tradicionais são aqueles derivados de uma formação social e econômica já não considerada como predominante ou hegemônica: os clérigos, os acadêmicos que se prendiam ao status quo que perdera sentido e predominância. Estavam restritos ao mundo antiquado, com erudição e enciclopedismo sem função histórica e cultivando uma superioridade de saber livresco. Para Gramsci, os intelectuais orgânicos preocupam-se com a centralização e a manutenção do poder, com a administração e o controle social (coerção direta e indireta):
Os intelectuais são os “prepostos” do grupo dominante para o exercício das funções subalternas da hegemonia social e do governo político, isto é: 1) do consenso “espontâneo” dado pelas grandes massas da população à orientação impressa pelo grupo fundamental dominante à vida social, consenso que nasce “historicamente” do prestígio (e, portanto, da confiança) obtido pelo grupo dominante por causa de sua posição e de sua função no mundo da produção; 2) do aparelho de coerção estatal que assegura “legalmente” a disciplina dos grupos que não “consentem”, nem ativa nem passivamente, mas que é constituído por toda a sociedade na previsão dos momentos de crise de comando e na direção, no qual desaparece o consenso espontâneo (Gramsci, 2000, p. 21).
Os intelectuais populares sentem com paixão a vida das classes subalternas, ou seja, os intelectuais orgânicos das classes populares procuram pela democratização do poder, expansão dos direitos, restrição ou eliminação da violência e das ideologias.
Pode-se observar que os intelectuais “orgânicos” que cada nova classe cria consigo e elabora em seu desenvolvimento progressivo são, na maioria dos casos, “especializações” de aspectos parciais da atividade principal do tipo social novo que a classe deu à luz (Gramsci, 2000, p. 16).
Os intelectuais de novo tipo vêem o povo dotado de sabedoria, “espírito criativo” e assim se opera uma osmose entre ambos. O povo não é mais massa, pois todos têm capacidade de agir e de pensar. Todos podem elaborar conhecimentos, acumular e trocar experiências: “Por isso, seria possível dizer que todos os homens são intelectuais, mas nem todos os homens têm na sociedade a função de intelectuais” (Gramsci, 2000, p. 18).
Não há atividade humana da qual se possa excluir toda intervenção intelectual, não se pode separar o homo faber do homo sapiens. Em suma, todo homem, fora de sua profissão, desenvolve uma atividade intelectual qualquer, ou seja, é um “filósofo”, um artista, um homem de gosto, participa de uma concepção de mundo, possui uma linha consciente de conduta moral, contribui assim para manter ou para modificar uma concepção do mundo, isto é, para suscitar novas maneiras de pensar (Gramsci, 2000, p. 52-3 – grifos nossos).
Se todos podem desenvolver julgamentos a partir de um ponto de vista próprio, significa que promovem atividades eminentemente intelectuais. Assim, promovem, então, a universalização da intelectualidade, porque no chão de fábrica, no trabalho mais mecânico, por mais que seja repetitiva a atividade do trabalho, ainda assim o operador de máquinas desempenha uma atividade de comando e de discernimento. O que ainda formula uma atividade reflexiva no interior do ambiente do trabalho.
Todo ser humano tem uma cultura e uma concepção de mundo. Esta reciprocidade entre sujeitos conforma o intelectual coletivo e/ou filósofo democrático, uma vez que, na coletividade, todos pensam, aprendem e ensinam aos mesmo tempo: “...que cada ‘cidadão’ possa tornar-se ‘governante’ e que a sociedade o ponha, ainda que ‘abstratamente’, nas condições gerais de poder fazê-lo...” (Gramsci, 2000, p. 50). Vê-se que a intelectualidade é uma função dialética: não há uma intelligentsia livremente “flutuante”:
O modo de ser do novo intelectual não pode mais consistir na eloqüência, motor exterior e momentâneo dos afetos e das paixões, mas numa inserção ativa na vida prática, como construtor, organizador, “persuasor permanentemente”, já que não apenas orador puro – mas superior ao espírito matemático abstrato; da técnica-trabalho, chega à técnica-ciência[2]e à concepção humanista histórica[3], sem a qual permanece “especialista[4]” e não se torna “dirigente[5]” (especialista + político) (Gramsci, 2000, p. 53 – grifos nossos).
Por sua vez, o grau da intelectualidade apresentado entre os indivíduos é apenas quantitativo, nunca qualitativo – se pensarmos que nem todos têm atividades eminentemente intelectuais, mas que somos dotados de uma potência intelectual[6]. O desempenho de determinadas funções intelectuais, por sua vez, não implica na legitimidade do exercício hierárquico da dominação de classe[7].
Desse modo, a educação não se restringe à escola, abrindo-se muitos espaços pedagógicos, como a igreja, o partido político, o sindicato, a militância, a fábrica, o contato com outros trabalhadores em organizações sociais e culturais. Isto fundamenta a formação de novos intelectuais na práxis hegemônica dos subalternos.
Minhas conclusões iniciais
Se para a burguesia (empresariado, latifundiários, banqueiros, grandes atacadistas, industriais) surgiram intelectuais de apoio, como o advogado, o administrador, o economista, o financista, o servidor público (com exceções), para a classe trabalhadora, outros intelectuais também defendiam suas causas: sociólogos, professores, filósofos, pensadores livres (como Karl Marx e o próprio Gramsci). Porém, a classe trabalhadora teria de enfrentar um desafio ainda maior; libertar-se também da concepção de classe média (pequena burguesia).
A classe trabalhadora deveria formar seus próprios quadros, não mais emprestados da universidade, por exemplo, e assim deveriam surgir lideranças partidárias e sindicais – formados no chão de fábrica – que conseguissem aliar o pensamento analítico e crítico (absorvendo categorias conceituais) e a militância política. Este é o caso concreto de cursos de Pedagogia e Direito ofertados por universidades públicas a trabalhadores assentados e pertencentes a movimentos sociais rurais. A metodologia aplicada se revela como Pedagogia da Alternância.
Outros ativistas, como funcionários de partidos e organizações representativas dariam suporte no referencial teórico e prático transformador requerido pelas transformações societais (economia, cultura, política e o social, propriamente dito) que interessam ao proletariado. Esse conjunto (intelectual e político) forjaria a práxis (teoria e prática revolucionária) necessária à transformação radical do capitalismo, criando as bases de um mundo efetivamente coletivo e sem opressão de uma classe sobre as demais: especialmente o proletariado e o lumpemproletariado.
Partidos, sindicatos, movimentos sociais populares e este conjunto de intelectuais orgânicos oriundos do seio e da vida cotidiana da classe trabalhadora deveriam fornecer a guia, a direção, o comando reflexivo (e prático) que conduziria o restante dos trabalhadores (campesinato e trabalhadores urbanos) no amplo processo de transformação da realidade; caminho este denominado de Bloco Histórico. Pois, a luta política (e por novos direitos) só teria clareza em seus objetivos se viesse a libertar a própria história do que se conhecera até hoje, como história da opressão.
O Bloco histórico em formação contaria a verdadeira história dos oprimidos. Como toda luta política é uma luta de classes, a Luta pelo Direito – em outra fase da articulação da sociedade – demandaria igualmente intelectuais comprometidos com as transformações alcançadas. Professores cientificamente bem preparados e politicamente engajados, além de juízes com esta consciência de classe. Os conhecidos advogados classistas seriam, efetivamente, oriundos da práxis social transformadora. A história das Ciências Sociais também não seria a mesma e, do mesmo modo, a ainda necessária Pedagogia do Oprimido faria parte da historiografia. Porque os oprimidos estariam libertos no “reino da igualdade”.
Vinício Carrilho Martinez
Professor da Universidade Federal de São Carlos
[1]Se não todos os empresários, pelo menos uma elite deles deve possuir a capacidade de organizar a sociedade e, geral, em todo o seu complexo organismo de serviços, até o organismo estatal, tendo em vista a necessidade de criar as condições mais favoráveis à expansão da própria classe; ou, pelo menos, deve possuir a capacidade de escolher os “prepostos” (empregados especializados) a quem confiar essa atividade organizativa das relações gerais exteriores à empresa (Gramsci, 2000, p.15-16).
[2]Consciência em si: por exemplo, quando se pensa o próprio trabalho, as condições gerais em que vive, e os demais trabalhadores na conjuntura política e econômica de seu país.
[3]Consciência para si: a partir do momento em que pensa o humano-genérico. Para Gramsci, por exemplo, o ensino do latim e do grego permitia não apenas o aprendizado das línguas, mas o contato com toda a cultura greco-romana, das quais somos herdeiros no Ocidente.
[4]Ainda que o mundo moderno exija, a especialização excessiva gera degradação do mundo do trabalho, pois investe-se cada vez mais no parcelamento e no distanciamento entre trabalho manual e intelectual.
[5]Na expressão de Gramsci, trata-se do cidadão governante.
[6] Esta é uma idéia clássica, já presente em Rousseau, daí o desafio de se educar Emílio.
[7] A meritocracia nunca poderá ser um argumento utilizado contra a dignidade do trabalho humano.
Veremos de modo mais extensivo que entre a emancipação e a autonomia se apresentam realidades e conceitos – igualmente impositivos – que suportam a
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Vinício Carrilho Martinez (Dr.) Cientista Social e professor da UFSCar Márlon Pessanha Doutor em Ensino de CiênciasDocente da Universidade Federal de