Domingo, 14 de julho de 2013 - 19h49
Vinício Carrilho Martinez (Dr.)[1]
O Estado, como uma forma particular de organização e de centralização do Poder Político, recebeu no Renascimento (talvez até antes disso, na acumulação primitiva) duas fortes inspirações: a ética pagã (libertando-se o poder da ética) e a ética protestante (liberando-se o poder da religião). No primeiro caso, em nome do Estado, sob a justificativa de se construir a Razão de Estado, todos os recursos de poder poderiam ser livremente manejados. Para o segundo aspecto, como forma de financiamento do próprio Estado, a economia precisava ficar livre de todos os entraves morais e, assim, o lucro que antes era pecado (usura) passou a ser investigado como qualidade e distinção.
A ética protestante serviria ao capitalismo nascente, na verdade, legitimaria seus interesses e costumes. A ética pagã seria aplicada mais diretamente aos elementos políticos que exigem respostas diretas do Estado. As duas formas de ética do poder encontrar-se-iam na forma do Estado monista e centralizador/indutor da acumulação de capitais, em que atuam as forças centrífuga (para o poder econômico estendido pela expansão ultramarina do capital e pela Rota da Seda) e centrípeta (para o poder estatal, que deve aglutinar forças e não dispersá-las). A esta articulação entre capital, Estado e sociedade, deu-se o nome de capital disruptivo (Mészáros, 2002).
Uma das marcações mais distintas da modernidade é o fato de ter eivado de sentido todos os valores sacros não submetidos ao desenvolvimento do próprio capital: “todos os homens são passíveis de tornar-se homines sacri, se descartam ou até se matam sem se culpar e sem serem punidos, [...] ‘o homem moderno é um animal cuja política põe em questão sua própria vida de ser vivo” (Enriquez, 2004, p. 45). O único poder sacro, a partir de então, seria o poder de Estado e sob suas vestes estariam depositados os interesses em financiar a expansão colonialista, bem como assegurar a inviolabilidade do território. Por isso, as duas pontas de lança do Estado Moderno são: colonização e soberania (interna e externa). Hobbes é um dos grandes autores da Filosofia e da Ciência Política e esteve muito interessado na discussão da soberania estatal, mas antes dele está Bodin:
Bodin passou para a História do pensamento político como o teórico da soberania. Contudo, o conceito de soberania como caracterização da natureza do Estado não foi inventado por ele. “Soberania significa simplesmente poder supremo”. Na escalada dos poderes de qualquer sociedade organizada, verifica-se que todo poder inferior é subordinado a um poder superior, o qual, por sua vez, se subordina a outro poder superior. No ápice deve haver um poder que não tem sobre si nenhum outro – e esse poder supremo, “summa potestas”, é o poder soberano. Onde há um poder soberano, há um Estado (Bobbio, 1985, p. 95).
Para os defensores do Poder Político unificado, todo poder seria usado na definição, delimitação e defesa do Estado. No período absolutista, o Príncipe representava este poder supremo, no período revolucionário e iluminista o summa potestas seria o lastro da soberania popular.
Soberania é “Razão de Estado”
Isto é o retrato da “dominação absoluta” que se iniciou em Maquiavel e se tornou clara a partir de Hobbes. Além da materialidade do poder, especialmente visível nas forças armadas de dominação do próprio povo, o Estado precisava ser visto e considerado como um ente acima de queixas, a salvo de represálias, como verdadeira encarnação da fé pública. O Estado Moderno desde seu início cativou condições de atavismo, de secularização, de encarnação da alma do povo (um tipo de Espírito Absoluto em que a fé pública não pode ser abalada). Nesta moderna mitologia, pela primeira vez na história da Humanidade, uma das fabricações do homem (o Estado) seria alvo de construção mitológica. Não há mito mais sacramentado do que o do Estado.
O mito do Estado que herdamos assinala o poder presente na Razão de Estado como constitutivo da vida social. Este princípio legítimo da dominação (presente no mito) é o que confere soberania ao Príncipe, supostamente legítimo. Este poder da Razão de Estado submete todos os sujeitos ao direito, uma vez que é o produtor das próprias regras que garantem sua imposição; sendo que o direito legítimo, é óbvio, é assim considerado como aquele que melhor resguarda os interesses dos que governam o Poder Político.
No século XVI, a Monarquia já se tornara absoluta e legisladora, outorgara-se o vigor capaz de atribuir, cancelar, instituir e redistribuir os direitos. Desde o século XVI, portanto, o soberano, na forma da Razão de Estado, vem forçando a passagem da massa disforme, da Multidão, à condição de um todo orquestrado (mas, de cima para baixo). Poder-se-ia alegar, porém, que após o século XIX o direito[2]passou a regular o soberano (tornando-se limitado, o que era absoluto); mas, é preciso lembrar que mesmo o Estado mais democrático não abre mão de formas ditatoriais de poder, a exemplo do direito de exclusão presente nas formas de exceção — uma indicação de que a Razão de Estado continua seduzindo atenções. O que ainda nos diz que Hobbes acertou na veia ao propor esta questão ao Estado Moderno:
E, para medirmos a inovação assim introduzida, basta recorrermos à frase de um teólogo do Século XII: ‘A diferença entre o príncipe e o tirano é que o príncipe obedece à Lei e governa o seu povo em conformidade com o Direito [...] A teoria da Soberania libera o poder do Príncipe de tais limitações (Lebrun, 1984, pp. 28-29 – grifos nossos).
Neste sentido, o tirano bem pode ser o Poderoso Chefão, a serviço do Estado ou de sua Família, liberto das amarras morais da lei. Contudo, desde a afirmação do Estado Teológico, bem descrito por Thomás de Aquino, o teólogo do século XII, ainda que em estado de tirania, o dirigente deve observar a regra básica de que suas ações não podem se voltar contra o contrato jurídico de que se alimenta a fé do povo. O Estado não pode ameaçar a fé pública, como condição de verdade política, e que lhe foi conferida pelo povo na celebração do contrato político. A indústria ou inteligência da direção política requer que se afine e aprimore o bom senso, realçando-se três condições:
Primeira, que a multidão se estabeleça na unidade da paz. Segunda, ser essa multidão, unida pelo vínculo da paz, dirigida a proceder bem [...] Terceira, requer-se que, por indústria do dirigente, haja abundância suficiente do necessário para o viver bem (Aquino, 1995, 167).
O dirigente do Estado deve ser um provedor.
Todavia, com ou sem a chancela do bom senso, o pensamento absolutista acerca do poder marcou indelevelmente a Razão de Estado: poder soberano é o poder absoluto. Nenhum meio de manutenção do poder pode ser excluído, seja para a regra, seja para as suas exceções, os fins justificam os meios.
Atualização do debate
Com o Estado-Nação sob fogo cerrado (a ex-Iugoslávia e a ex-URSS são exemplos concretos), a própria soberania popular procura amparo em outras referências de poder, como no apreço das localidades. Essas localidades, que não correspondem a regionalismos e nem a folclores ou ethos (costumes sociais éticos), marcam o espaço físico em que o sujeito de múltiplas relações se encontra. Melhor dizendo, é o espaço físico em que o sujeito está, mas não necessariamente que ali ele se encontre (consigo mesmo, com seu ethos). Na síntese do Estado Moderno atual, a Nação já se desprendeu do Estado. No século XXI, Estado e sociedade (Nação) andarão cada vez mais divorciados, falando e respondendo por linguagens diferentes, trocando entre si símbolos irreconhecíveis um para o outro, assim como o sujeito múltiplo, de pouca referência ou de baixa entropia nacional, descolou-se de sua origem e viu a nacionalidade perder o voo — e como a Nação resta-lhe aguardar a lista de espera:
Se os Estados do século XXI agora preferem fazer suas guerras com exércitos profissionais, ou mesmo através da terceirização de serviços bélicos, não é apenas por razões técnicas, mas porque já não se pode confiar em que os cidadãos se deixem ser recrutados, aos milhões, para morrer no campo de batalha em nome de seus países. Homens e mulheres podem estar preparados para morrer (mais provavelmente para matar) por dinheiro, ou por algo menor, ou algo maior, mas, nos lugares onde se originou o conceito de nação, não mais pelo Estado nacional (Hobsbawm, 2007, p. 96).
Entre tantos fatores de crise institucional apontados, pode-se destacar uma espécie de crise de dominação pública. Não há Estado Global à vista ou, ao contrário, todos os Estados padecem da quebra do paradigma do Estado Moderno: território, povo, soberania (reconhecimento). De certo modo, isso condiz com a fragilidade do controle social atual, sem envolvimento e participação política:
Pois, neste processo de expansão de concentração, o poder de controle conferido ao capital vem sendo de fato re-transferido ao corpo social como um todo, mesmo se de uma forma necessariamente irracional, graças à irracionalidade inerente ao próprio capital. Que o deslocamento objetivo do controle seja descrito, do ponto de vista do capital, como “manter a nação como refém”, não muda nada o próprio fato (Mészáros, 1989, pp. 26-27).
Além do fato de haver uma crise interna de ausência de controle e externa, que varia e se multiplica em fatores e atores, há uma interpelação clássica que se fazia a Clausewitz e o direito de guerrear: toda guerra deve ser autorizada pelo Império. Por isso, John Rawls prefere falar em povos do que em Estados:
Outra razão pela qual uso o termo “povos” é distinguir o meu pensamento daquele a respeito dos Estados políticos como tradicionalmente concebidos, com os seus poderes de soberania incluídos no Direito internacional (positivo) pelos três séculos após a Guerra dos Trinta Anos (1618-48) (Rawls, 2001, p. 33).
O fato perturbador é avaliar até que ponto estaremos mais protegidos (se isto já não for um sentimento do passado) como povo ou como Estado. Ou, em outras palavras, o povo será mais feliz sem a organização do Poder Político que se firmou desde o surgimento do Estado Moderno?
Bibliografia
AQUINO, Santo Tomás de. Escritos Políticos. Petrópolis-RJ : Vozes, 1995.
BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo. 4ª edição. Brasília-DF : Editora da Universidade de Brasília, 1985.
ENRIQUEZ, Eugene.O outro, semelhante ou inimigo? IN :NOVAES, Adauto de (org.).Civilização e Barbárie. São Paulo : Companhia das Letras, 2004.
HOBSBAWM, Eric. Globalização, democracia e terrorismo. São Paulo : Companhia das Letras, 2007.
LEBRUN, Gerard. O que é poder? 6ª ed. São Paulo : Brasiliense, 1984.
MÉSZÁROS, István. A necessidade do controle social. 2ª Ed. Editora Ensaio: São Paulo, 1989;
_____ Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo Editorial; Campinas: Editora da UNICAMP, 2002.
RAWLS, John. O Direito dos Povos. São Paulo : Martins Fontes: 2001.
[1]Professor do Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Rondônia.
[2]Assim, direito é a presunção de potencia; lei é a presunção de que há força.
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Vinício Carrilho Martinez (Dr.) Cientista Social e professor da UFSCar Márlon Pessanha Doutor em Ensino de CiênciasDocente da Universidade Federal de