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Gente de Opinião

Vinício Carrilho

Direito Liberal


 Tens força, tens, pois o direito

Mefistófeles

 

            Também conhecido como constitucionalismo, ao invés da tradição, o liberalismo enfatizou o resultado prático, imediato na aplicação do direito; ao invés do estatuto, o Estado priorizou o contrato. Em termos gerais, sacrifica-se a garantia da Justiça em prol da celeridade; prefere-se uma resposta rápida do Estado e não propriamente uma decisão adequada que demore substancialmente mais.

Outro grave problema decorre do fato de que, normalmente, os contratos não são firmados entre pessoas iguais ou em igualdade de condições, a começar do básico e que é o contrato de trabalho. Na vida real, para sobreviver e alimentar-se, os trabalhadores são obrigados a vender sua força de trabalho a outro sujeito que poderá ou não comprar. Na relação de trabalho, existem dez trabalhadores na mesma condição, querendo vender as mesmas qualidades e competências, mas há apenas um empregador para contratar.

Na origem como hoje

            Ao se adequar o direito ao movimento capitalista de época, em que os contratos eram insurgentes nas relações sociais, o legislador preocupou-se em atender aos interesses econômicos da burguesia nascente. Em seguida, os princípios e os estatutos (como a regra da busca pela Justiça) foram subjugados pelo pragmatismo jurídico, ou seja, para os pragmáticos de nada ou pouco adianta ter os interesses econômicos preservados se a resposta judicial for morosa: time is money. Era preciso encurtar os prazos para acelerar o fluxo econômico e diminuir os prejuízos acarretados com as demandas jurídicas, mesmo que em sacrifício da Justiça.

            Em decorrência da natureza econômica imposta ao direito pelo liberalismo, ocorreu outra mudança radical, invertendo-se alguns de seus pressupostos ou tradições. Anteriormente, pela lógica da tradição jurídica, o direito seria o objeto da Justiça, quer dizer que o meio era o direito e o fim a Justiça. Sob o direito liberal, entretanto, há uma clara disjunção entre direito e Justiça, opondo-se praticamente em nível de antagonismo o direito e a Justiça. Invertendo-se os polos, a Justiça deixa de ser o objetivo do direito, preferindo-se a garantia de que os contratos serão cumpridos. Ao invés da Justiça, o direito se vê como refém do cumprimento do contrato, agindo a máxima pacta sunt servanda (“cumpra-se o que foi estabelecido”). Neste caso, à Justiça, prefere-se a segurança jurídica prometida como defesa do patrimônio à Justiça Social.

Por outro lado, diante da natureza social sempre móvel, extremamente dinâmica, o contrato que tem por objeto as relações ou condições sociais praticamente não poderá ser cumprido, uma vez que as condições em que foi estabelecido não mais se verificam na realidade (já transformada). Neste caso, aplicar-se-ia a regra rebus sic stantibus, adequando-se as cláusulas contratuais às novas condições reais. Neste novo quesito, o direito deveria agir como aporte ao elo frágil da relação contratual. Mas, também não é o que ocorre, visto que o poder econômico impõe as transformações contratuais que lhe sejam mais pertinentes. Na prática, via de regra, diante das grandes transformações sociais, o contrato é alterado sim, mas sempre em benefício do poder econômico hegemônico.

Neste sentido, historicamente, o direito pensado por liberais nunca atendeu ao desequilíbrio social gerado pela força da dinâmica da economia capitalista; aliás, pensado como se a sociedade fosse homogênea, como se as diferenças entre as pessoas não tivessem se transformado em desigualdades, o direito liberal sempre esteve muito distante da dinâmica da vida real, e que opõe os indivíduos em posições de extrema desigualdade, cindindo-se a sociedade entre fortes e fracos (economicamente), entre proprietários e não-proprietários, entre trabalhadores e apropriadores, pobres e ricos, dominadores e oprimidos.

Sociologia jurídica dos oprimidos

 

Direito Liberal - Gente de OpiniãoMarx e Engels

Já no século XIX (1848), no Manifesto do Partido Comunista, os pensadores Karl Marx e Friedrich Engels anunciaram esta disparidade que é a contradição insolúvel na base da sociedade regida pelo capital e que, por certo, o direito liberal-burguês só faria acirrar-se:

“Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, burgueses de corporação e oficial, em suma, opressores e oprimidos, estiveram em constante oposição uns aos outros, travaram uma luta ininterrupta, ora oculta ora aberta, uma luta que de cada vez acabou por uma reconfiguração revolucionária de toda a sociedade ou pelo declínio comum das classes em luta”.

 

Para Marx e Engels, o direito sob o Estado Moderno obedece ao capital porque tanto o Estado quanto o direito são fruto direto do capitalismo burguês:

  • Que é o Estado livre? A missão do proletariado, que se libertou da estreita mentalidade do humilde súdito, não é, de modo algum, tornar livre o Estado. No Império Alemão o “Estado” é quase tão “livre” como na Rússia. A liberdade consiste em converter o Estado, de um órgão que paira acima da sociedade, em um órgão completamente subordinado à sociedade – as formas de Estado seguem sendo hoje mais ou menos livres na medida em que limitam a “liberdade do Estado” [...] A “sociedade atual” é a sociedade capitalista, que existe em todos os países civilizados, mais ou menos livre de aditamentos medievais, e mais ou menos modificada pelas particularidades do desenvolvimento histórico de cada país, mais ou menos desenvolvida. Por outro lado, o “Estado atual” relaciona-se [cambia] com as fronteiras de cada país. O Império prussiano-alemão é outro que não aquele da Suíça, da Inglaterra, dos EUA. O “Estado atual” é, portanto, uma ficção [...] Sem embargo, os distintos Estados dos distintos países civilizados, em que pese a enorme diversidade de suas formas, têm em comum o fato de que todos eles se assentam sobre as bases da moderna sociedade burguesa, ainda que esta se apresente em territórios mais desenvolvidos do que outros, no sentido capitalista. Temos também, portanto, certos caracteres essenciais comuns. Neste sentido, pode-se falar que o “Estado atual”, por oposição, no futuro, por sua atual raiz na sociedade burguesa, acabará se extinguindo [...] Que por “Estado” se entende, na realidade, a máquina do governo ou o Estado enquanto tal, devido à divisão do trabalho, forma um organismo próprio separado da sociedade, já o indicam estas palavras: “o Partido Trabalhador Alemão exige como base econômica do Estado: um imposto único e progressivo sobre a renda”. Os impostos são a base econômica da máquina governamental [...] No Estado do futuro, existente já na Suíça, esta reivindicação está quase realizada. O imposto sobre a renda pressupõe as diferentes fontes de ingresso das diferentes classes sociais, ou seja, a sociedade capitalista (Marx, 1979, pp. 27-30 – grifos nossos).

 

Na produção social de sua existência, a partir da divisão do trabalhando social, para sobreviver, o homem conhece condições sociais e econômicas assinaladas pelas condições naturais ou determinadas de acordo com o próprio nível de desenvolvimento de suas condições de produção e de trabalho, observando-se o desenvolvimento do conhecimento e das tecnologias aplicadas à produção: teoricamente, quanto maior o aprofundamento tecnológico, maior a produção. Esta determinação objetiva, visto que decorre de condições absolutamente independentes da vontade dos indivíduos (individualmente) retratados, impõe ao Estado uma base, uma estrutura à qual não podem refugar: o Estado é criado de acordo com os mesmos níveis sociais de produção a que se sujeita a sociedade. Seria como o alicerce de um edifício que vem sendo construído ao longo da história, ou seja, são condições necessárias à sobrevivência de todos os membros do grupo humano.

  • Na produção social da sua existência, os homens estabelecem relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais. O conjunto destas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu ser social que, inversamente, determina a sua consciência. Em certo estágio de desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o que é a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais se tinham movido até então. De formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas relações transformam-se no seu entrave. Surge então uma época de revolução social. A transformação da base econômica altera, mais ou menos radicalmente, toda a imensa superestrutura. Ao considerar tais alterações é necessário sempre distinguir entre a alteração material – que se pode comprovar de maneira cientificamente rigorosa – das condições econômicas de produção, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas pelas quais os homens tomam consciência deste conflito, levando-o às últimas consequências. Assim como não se julga um indivíduo pela ideia que ele faz de si próprio, não se poderá julgar uma tal época de transformação pela mesma consciência de si; é preciso, pelo contrário, explicar esta consciência pelas contradições da vida material, pelo conflito que existe entre as forças produtivas sociais e as relações de produção. Uma organização social nunca desaparece antes que se desenvolvam todas as forças produtivas que ela é capaz de conter; nunca relações de produção novas e superiores se lhe substituem antes que as condições materiais de existência destas relações se produzam no próprio seio da velha sociedade. É por isso que a humanidade só levanta os problemas que é capaz de resolver e assim, numa observação atenta, descobrir-se-á que o próprio problema só surgiu quando as condições materiais para resolve-lo já existiam ou estavam, pelo menos, em via de aparecer. Em um caráter amplo, os modos de produção asiático, antigo, feudal e burguês moderno podem ser qualificados como épocas progressivas da formação econômica da sociedade. As relações de produção burguesas são a última forma contraditória do processo de produção social, contraditória não no sentido de uma contradição individual, mas de uma contradição que nasce das condições de existência social dos indivíduos. No entanto, as forças produtivas que se desenvolvem no seio da sociedade burguesa criam ao mesmo tempo as condições materiais para resolver esta contradição. Com esta organização social termina, assim, a Pré-história da sociedade humana (Marx, 2003, pp. 5-6).

 

Por isso, o direito liberal subjuga o valor social frente aos direitos individuais, comprometendo-se os direitos propriamente sociais. Não há exagero em dizer que na sociedade capitalista, em regra, não há prevalência do direito social; na verdade, há predomínio dos direitos individuais sobre os direitos sociais (estes nem recebem a guarida das cláusulas de “direito fundamental”). O direito fundamental, como previsto na Constituição Federal de 1988, recebe a proteção das cláusulas pétreas, conforme previsão do artigo 60, § 4º - “Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir”:

I - a forma federativa de Estado;

II - o voto direto, secreto, universal e periódico;

III - a separação dos Poderes;

IV - os direitos e garantias individuais.

 

A cláusula pétrea impede que esses direitos sejam alterados – a não ser em nova Assembleia Constituinte. Em negrito observa-se que os direitos e garantias individuais tem o status jurídico de inamovíveis, imodificáveis em sua condição essencial, mas os direitos sociais não. Portanto, vê-se, facilmente, que os direitos sociais (art. 6º da CF/88) não estão em seu rol de proteção: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados”. Aos direitos sociais, o Estado proverá na medida de seus recursos, quando for possível ou quando interessar ao governante.

Como complemento do direito liberal-burguês, frequentemente, o liberalismo autoriza que o Estado haja atribuindo, escalonando determinadas funções de suplência (isto é, agindo em conformidade com determinadas emergências). Este excepcionalismo é invocado como maneira, alegadamente, de se suprir problemas imediatos, em razão de sua necessidade e urgência. A aplicação do Princípio da Subsidiariedade, por exemplo, deveria ser uma regra – e não ele mesmo uma exceção – haja vista a miséria e a pobreza social serem majoritárias, determinantes na sociedade brasileira: “Em 2011, 58,4% dos brasileiros apresentaram ao menos um tipo de carência entre quatro itens avaliados: atraso educacional, qualidade dos domicílios, acesso aos serviços básicos e acesso à seguridade social. Dez anos atrás, em 2001, esse índice era ainda maior: 70,1%”[1].

O indivíduo reside no município e este órgão da Federação deveria cuidar das questões sociais, mas os próprios municípios não têm recursos suficientes ao combate às desigualdades sociais; então, a própria União deveria corrigir, subsidiariamente, a distorção do pacto federativo. A aplicação de medidas de urgência é deflagrada em situações de calamidade social e econômica; porém, ocorre que a calamidade social é a regra imposta a milhões de pessoas e não uma exceção, um caso fortuito, ocasional, temporário.

Milhões de pessoas estão condenadas à total exclusão econômica e social, e o direito não lhes alcança, simplesmente porque é destinado à proteção do capital como bem jurídico. A pobreza e a miséria são a regra e não a exceção, mas o direito criado excepcionalmente para combater esse quadro social é utilizado inadequadamente, pois é empregado subsidiariamente, como sinônimo de ocasião (ocasionalmente); quando, na verdade, seria necessário sua aplicação permanente, constante. É incrível que até mesmo a lógica jurídica seja distorcida diante dos interesses hegemônicos do poder estabelecido.

 

Bibliografia

MARX, Karl. A origem do capital: a acumulação primitiva. 2ª. Edição. São Paulo : Global Editora, 1977.

______O 18 Brumário e cartas a Kugelmann. 4ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

______ Crítica del Programa de Gotha. Moscú : Editorial Progreso, 1979.

______ A Guerra Civil na França. São Paulo : Global, 1986.

______ As lutas de classes na França (1848-1850). São Paulo : Global, 1986b.

______ Manuscritos económico-filosóficos. Lisboa : Edições 70, 1989.

______ A ideologia alemã. São Paulo : Martins Fontes, 2002.

______ Contribuição à Crítica da Economia Política.  3 ed. São Paulo : Martins Fontes : 2003.

 

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