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Vinício Carrilho

Direitos humanos e Poder


Direitos humanos supõem a relação de todas as partes entre si e perante o todo (a sociedade): é o que dá sentido à interdependência social da vida humana. Uma das possibilidades de se verificar a relação entre direitos humanos e poder é no tocante à positivação de determinados direitos humanos e sua constitucionalização. Neste caso, a eficácia jurídica seria um caminho para sua efetividade, cumprimento e verificação na realidade política cotidiana. Um dos temas que surge com força dessa relação é a solidariedade, uma vez que a regulação interna dos direitos humanos indica que a própria atuação do Poder Público está envolta com os valores humanos mais sagrados.

Forçosamente, o direito social deverá impulsionar a mudança de algumas estruturas jurídicas na forma de um Estado Altruísta. Por este caminho, fala-se em Direito Constitucional Altruísta, como resposta ao mecanismo vitimário internacional, que globaliza a negação e legaliza por meios de exceção um perverso direito de exclusão que recai sobre povos, culturas e indivíduos: “E daí a urgência de um Direito Constitucional ‘altruísta’ como novo nomos da Terra, capaz de contestar o princípio da soberania e os interesses da razão de Estado como fundamento da legitimidade política e da liberdade” (Carducci, 2003, p. 59).

Por esta ótica, então, de um Direito Constitucional Internacional, os bens, os direitos, as liberdades e as garantias inalienáveis e indispensáveis à reprodução da vida social não deveriam mais assentar, unicamente, sobre a soberania nacional, estando a cargo de cada Estado-Nação decidir sobre tais considerações. Assim, trata-se:

... de um progressivo “Direito Constitucional Internacional”, cujo interior aos condicionamentos produzidos pelos eventos, contrapõem-se os direitos humanos, ligados à indiferença em relação ao tempo e à contextual aquisição de uma valor axiológico, refletido sobre o plano das instituições, emancipada da tutela da filosofia da história (Carducci, 2003, p. 62).

 

Este é, sobretudo, em termos de futuro, uma das tarefas mais conspícuas e desafiadoras que cabem à comunidade internacional e aos organismos multilaterais. Porque, neste sentido preciso, o direito é o nomos da Terra.

De acordo com esta axiologia do direito/poder, a constitucionalização dos direitos humanos indica que o Estado tem um caráter humanizador e que a solidariedade receberá uma atenção em especial; revela que o Estado sinaliza a tentativa de manter uma relação de solidariedade com a sociedade. O nível da eficácia jurídica será confrontado com a efetividade social das politicas públicas.

Solidariedade Política

No plano jurídico, a solidariedade impõe deveres positivos (colaboração) e considera as diferenças individuais e grupais – portanto, supõe ação diretiva, vinculada ao preceito geral e não a mera contemplação, passividade ou então ação por obrigatoriedade[1]. Há ainda um sentido de interdependência em cada sociedade:

1) divisão das funções sociais;

2) repartição de bens e serviços (critério proporcional ®justiça distributiva);

3) aprimoramento de técnicas de solidariedade.

 

Hoje, pode-se dizer que a solidariedade é:

a) direta e imediata: cooperativismo, democracia direta, previdência privada.

b) indireta, pela mediação do Estado: por exemplo garantindo direitos, pela penetração de serviços estatais, pela imposição de regras e controles (função social da propriedade, por exemplo).

 

No Brasil, a partir da Constituição de 1988, os direitos humanos aparecem como parte constitutiva do direito positivado:

- é objetivo fundamental (artigo 3, I e III);

- é diretriz da política externa (art. 4, IX);

- é ditame da justiça social (art. 170);

- é princípio da ordem social (art. 193).

 

Desde Pablo Verdú (com a primeira monografia sobre o tema, Estado Liberal de Direito e Estado Social de Direito, datada de 1955) e Elías Díaz (com seu livro Estado de Derecho y sociedad democrática, de 1966), o moderno Estado Democrático de Direito atrelou-se conceitualmente ao socialismo e à Justiça Social. Esta ligação é tão forte que também foi chamado de Estado de Justiça, por Elías Díaz[2](Silva, 2003).

Juridicamente, pode-se dizer que houve a recepção, fixação, positivação e constitucionalização dos direitos humanos. Em suma: não existe democracia se os direitos humanos não são respeitados; direitos humanos supõem liberdade e igualdade - liberdade e igualdade serão ineficazes, inexistindo a solidariedade. Portanto, liberdade e igualdade, sem solidariedade, não passam de meros direitos formais - o que também remete à discussão de que a cidadania política (baseada nos direitos políticos) de nada vale se não se completa com a cidadania social e econômica (com a prevalência dos direitos sociais e um mínimo de igualdade de condições no ponto de partida).

Esta perspectiva ainda nos leva ao cenário inicial do Estado de Direito, em que se tinham positivados somente os direitos individuais, na forma de direitos fundamentais – também parece não considerar os horrores da guerra, no pós 45, e a necessidade da positivação do próprio princípio da dignidade da pessoa humana. Implica em retornar ao Estado liberal, pré-anos 1930, quando o Estado não intervinha na economia de mercado e muito menos assegurava qualquer direito social ou trabalhista.

Mas, o que fazer com a Constituição de Weimar e com os direitos socialistas fixados em 1917? Hoje, nossa melhor opção seria ignorar a História? É como se a geração de novos direitos fosse obstaculizar as garantias já assentadas, e assim os privilegiados pelos direitos individuais fundamentais não deveriam sofrer embargos em seu exercício – ainda que diante deles estivessem os direitos coletivos, sociais ou os direitos humanos em sua generalidade.

Está claro como se têm aí uma posição liberal-conservadora, aliás tão em moda hoje em dia, com a quebra do bloco ideológico do socialismo real. Aproxima-nos, inclusive, das agências econômicas internacionais reguladoras ao propor a desobrigação do Estado em prestar serviços sociais. Quando o Estado alivia sua carga de atuação no campo social, é porque procura desregulamentar a obrigatoriedade do Estado (na forma do Estado Social) em manter os equipamentos sociais e de saúde básica. A conclusão a que chegamos é de que Estado de Direito, cidadania e liberdade devem formar um conjunto, devem ter como elo a pessoa humana (a dignidade da pessoa humana) e não apenas o cidadão com seus direitos formais:

Mas, acima de tudo, é preciso não esquecer que “o cidadão matou a pessoa”, quando subordinou os direitos da cidadania a concepções legais e, pior do que isso, reservou a cidadania a uma classe de privilegiados [...] Defenda-se a pessoa humana, e o cidadão estará sendo defendido [...] Em conclusão, a outorga e garantia da cidadania poderão ser um sinal de liberdade e de reconhecimento da igualdade essencial dos seres humanos, contribuindo para a preservação e a promoção da dignidade humana. Mas para tanto é indispensável que o direito formal à cidadania implique, concretamente, o poder de cidadania (Dallari, 2003, pp. 198-200).

 

Por isso, também é importante resgatar novamente uma minuta dos princípios democráticos que devem dirigir o Estado Democrático de Direito (o núcleo duro da Constituição). Em resumo, teríamos os seguintes requisitos:

  1. direitos individuais e liberdades públicas;
  2. pluralismo, eleições regulares (mais garantias) e voto universal;
  3. princípio da maioria - somado aos direitos das minorias;
  4. participação popular no processo decisório (soberania popular);
  5. Valores: tolerância (não-violência), solidariedade, crença na ‘perfectibilidade’.

 

Na ausência, portanto, desse mínimo de democracia e de respeito aos valores humanos (em que se incluem, sem hierarquização, os direitos individuais e os direitos sociais), prosperam os regimes ou Estados Não-Democráticos – modalidades de regimes, sistemas ou formas de governo que devem ser combatidas com o incentivo da participação popular. Como se vê em mais esta passagem: “Onde não estiver assegurada a possibilidade de participação direta e indireta do povo no governo, não existe democracia, o governo não é legítimo e o povo não pode ser feliz” (Dallari, 1998, p. 63). Está claro, então, que a democracia popular – instauradora do Estado Popular – necessita concretizar, realizar a cidadania em sua plena extensão.

O conceito de cidadania democrática procura relacionar, ou melhor dizendo, compõe-se da intersecção das várias gerações que compõem a concepção tradicional da cidadania: primeira fase, cidadania jurídica (do Estado de Direito Liberal e da igualdade de direitos); segunda fase, cidadania política, social e cultural (inerente ao Estado Democrático de Direito); terceira fase: cidadania econômica (mais aos moldes socialistas). De modo complementar, o conceito de cidadania democrática ainda supõe a fruição plena dos direitos público-subjetivos e a fluência real da democracia, da República.

Porém, a cidadania democrática só se completará realmente se houver aceitação e vigência global dos direitos humanos. Daí a importância de se acentuar a relação da política com os direitos humanos: o terreno em que se desenvolveriam justamente os direitos sociais, a democracia radical, os direitos humanos e a cidadania democrática (esta como síntese). Mas e a realidade no Brasil, sempre condiz com essa dimensão teórica transcrita acima? É por isso que precisamos analisar as crônicas do Estado de Direito brasileiro e é pela mesma motivação que deveríamos rever a situação do Estado Democrático de Direito no Brasil, nas últimas décadas.

 

Bibliografia

CARDUCCI, Michele. Por um Direito Constitucional Altruísta. Porto Alegre : Livraria do Advogado, 2003.

DALLARI, Dalmo de Abreu. Direitos humanos e cidadania. São Paulo : moderna, 1998.

­_____ Elementos de Teoria Geral do Estado. 21ª ed. São Paulo : Saraiva, 2000.

_____ Os direitos fundamentais na Constituição Brasileira. IN : FIOCCA, Demian & GRAU, Eros Roberto. Debate sobre a Constituição de 1988. São Paulo : Paz e Terra, 2003.

DÍAZ, Elías. Estado de Derecho y sociedad democrática. Madrid : Taurus, 1998.

VERDÚ, Pablo Lucas. Teoría General de las Relaciones Constitucionales. Madri : Editorial Dykinson, 2000.

_____ A luta pelo Estado de Direito. Rio de Janeiro : Forense, 2007.

SILVA, José Afonso da. A Constituição e a estrutura de poderes. IN : FIOCCA, Demian & GRAU, Eros Roberto. Debate sobre a Constituição de 1988. São Paulo: Paz e Terra, 2001.

_____ Curso de direito constitucional positivo. 21ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2003.

 

Vinício Carrilho Martinez

Professor Adjunto III da Universidade Federal de Rondônia - UFRO

Departamento de Ciências Jurídicas/DCJ

Pós-Doutor pela UNESP/SP

Doutor pela Universidade de São Paulo



[1]O que já nos leva além do princípio da liberdade negativa: ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer algo, senão em virtude da lei. O autômato, por exemplo, age em sintonia, compulsivamente, quando dirigido pela lei, pelos formalismos ou convenções.

[2]Em: http://jusvi.com/artigos/29284/1.

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