Quarta-feira, 7 de novembro de 2012 - 11h02
Se o grande cai, não possui mais amigos
Sobe o pobre, e não tem mais inimigos
Shakespeare - Hamlet
Costuma-se definir os direitos humanos como um conjunto ideário de direitos racionais e universais, logo, um conjunto complexo de direitos civilizatórios. O debate sobre os direitos humanos, portanto, deveria ser um debate racional, o que ainda significa dizer que os argumentos lógicos, equilibrados, proporcionais, verificáveis cientificamente deveriam ser o norte. Porém, verifica-se que diante dos problemas sociais mais graves, a começar pela insegurança coletiva, a comoção toma lugar da sobriedade. Na prática, quer dizer que se grita nas ruas por mais vingança – a diferença é que se apregoa por uma determinada vingança pública: penas severas e cruéis. A razão ainda poderia ser entendida como a emoção justificável e socialmente sustentável, ou seja, dado que todo debate apaixonado tem cores de “forte emoção”, é de se esperar que convertida em racionalidade a comoção social seja “purificada” pela ação institucional. Neste sentido, a lei e a ação do Poder Público não deveriam guardar os traços da ira, da indignação, da raiva que transborda no homem médio e, sobretudo, nas vítimas. Pela exemplificação talvez se entenda melhor: a pena deve ser proporcional à gravidade do crime cometido.
Os extremos da punição, no Brasil, vão do crime famélico – em que se julga a necessidade de sobrevivência para não haver punição – à condenação a trinta anos de reclusão. Há uma razão em a pena ser declarada desse modo e não o contrário, há um motivo logicamente sustentável para a não punição de quem, literalmente, furta para não morrer de fome. É esse tipo de racionalidade que se pretende ver na sustentação dos direitos humanos. Aliás, é bom lembrar que a definição de crime famélico é exemplo da racionalidade que se construiu ao longo dos séculos em torno do direito positivo, em especial, no direito penal. A razão deve emprestar argumentos sólidos ao direito para que se defenda seus pressupostos e sua aplicação de uma forma compreensível por todos. Quando o direito é bem construído, logicamente validado em suas premissas, sua compreensão e justificativas são compartilháveis por todos. Porque, de modo simples, voltar-se contra este direito racionalmente justificável não é razoável, não é desejável, uma vez que as alternativas criadas seriam desequilibradas e obedeceriam às emoções e às variações humorísticas de quem as representa. É como se dissesse que passaríamos a depender do bom ou do mau humor de quem formula e/ou aplica as leis.
Para alcançar esse nível digamos de bom senso aplicado ao direito, precisamos de discussões mais sensatas, moderadas, com abordagem e reflexão científica, histórica, ética. A ética quando em consórcio com os direitos humanos nos conduz a resultados inteligentes e o que mais precisamos, diante da crise de civilização, de significados, é de inteligência e não das tradicionais disposições de raiva, da vingança. Neste sentido, pode-se dizer que o direito fortaleceria o bom senso, em contraponto ou superação ao senso comum: aquela leitura dos fatos que parece importante, mas que é superficial, que apenas arranha os significados. O senso comum empresta, emprega nossos próprios valores, preconceitos ao que quer analisar – uma espécie de epifenômeno, quando impregnamos os fatos relevantes com nossa ignorância preconceituosa. O bom senso, ao contrário, empresta ao direito o método e o mérito de analisar, investigar em profundidade, com mais clareza, procurando se livrar dos “juízos de valor”. Parafraseando o pensador espanhol Ortega Y Gasset (1991), “o bom senso empregaria o método do meio dia”. Ao meio dia, como se sabe perfeitamente, não há sombras, manchas, visão dupla sobre os fatos. O calor escaldante, sobretudo na Amazônia, evapora toda e qualquer impressão baseada no que se ignora (ignorância).
A razão de ser do direito ocidental
No caso do direito ocidental, a racionalidade jurídica se construiu em torno da capacidade civilizatória do direito e da consequente humanização da pena. Não se trata de supor, ingenuamente, que a razão leva ao bem maior (o nazismo foi muito lógico em sua contabilidade da morte), mas de ter a certeza de que a emoção não pode ser a base dos contratos sociais e jurídicos. Quando temos esta base emocional nos contratos sociais, por exemplo, justificamos as criações e os institutos sociais nos “laços de sangue” ou em condições cômodas, mas não razoáveis, quer dizer empiricamente verificáveis, racionalmente sustentáveis. O contrato jurídico que encontra suas bases fora da razão, por sua vez, encontrará as “certezas” em fontes não compartilháveis e nem justificáveis, a exemplo dos mitos que alimentam todas as formas de irracionalidades sociais. Na Alemanha, por exemplo, Armínio (Arminius, em latim, ou Hermann, em alemão) foi um líder tribal e grande guerreiro (16 a.C. – 21 d.C.) editado como mito ariano pelo nazismo. Antes da instrumentalização nazista, contudo, Bismarck – o Napoleão da Alemanha – já havia empregado toda a força necessária à unificação do Estado nacional único na Alemanha, no século XIX. Sustentadas por Armínio, milhares de pessoas julgaram-se superiores, capazes de formular um mundo superior a ser imposto aos demais e assim agiram sob o nazismo. É óbvio que o nazismo foi uma criação racional, especialmente sua base jurídica (Schmitt, 2006), mas, a não ser para os nazistas, não há justificação racional para seus atores sociais. O direito nazista, antes de ter construída sua base jurídica (ou concomitantemente), encontrou sustentação mitológica, neste caso irracional. Depois, o direito nazista procurou apoio em uma pretensa cientificidade (Müller-Hill, 1993) que, logicamente, não tinha sustentação verificável, isto é, não se sustentava para toda a humanidade: pela lógica, não pode haver uma lógica para os nazistas e outra para os “inferiores”.
Essa mesma estrutura lógica, por incrível que pareça, está na formação do Estado Moderno. Simplificadamente, há duas posições mais claras: 1) o Estado foi criado para sustentar o soberano; 2) o Estado foi construído para sustentar a soberania. No primeiro caso, os interesses mesquinhos de classe tomariam conta do Estado, colocando-o a seu dispor, a serviço dos interesses de poucos. Na segunda interpretação, os interesse da maioria deveriam ser respeitados e representados pelo Estado. Outro fato curioso é que o principal arquiteto do Estado e do direito moderno, o filósofo inglês Thomas Hobbes (1983), é interpretado dos dois modos. Para os críticos, o Estado serve às classes sociais dominantes e se serve dos trabalhadores, pobres e socialmente indefesos. Para os que procuram no Estado a “razão” em forma de construção social, o contrato social deve solidificar e sustentar a soberania: o Estado tem o direito de agir com máxima força, a fim de se garantir e de garantir a estabilidade social. Colocou-se desde cedo este problema para Hobbes e a todos os seus contemporâneos, porque a crise de civilização ameaçava a todos indistintamente (algo como o que nos cerca atualmente). De lá para cá, avançamos na luta política pela construção dos direitos humanos e na humanização da pena. Os direitos humanos, portanto, seriam forjados no interior de uma ética humanista.
Pela sequência herdada da ética judaico-cristã, o Estado não pode dar a outra face (pois arriscaria a soberania), mas deve dar outra “chance”; na verdade, trata-se de impor a obrigação de se retratar socialmente, de se incluir no contrato social, porque não há chance ou possibilidade de se auto deserdar. Inclusive, há previsão legal de ajuizamento de ação por, exatamente, “perda da chance”, que ocorre quando o Estado, injustamente, impede que o sujeito exercite plenamente, com possibilidade de êxito, uma oportunidade real. Por esta lógica humanista, civilizatória, o Estado não pode punir um crime cometendo outro, não pode punir o furto com a mão decepada, não pode recuperar o crime de homicídio com a aplicação da pena de antecipação da morte. Não pode dentro da lógica do próprio contrato social, uma vez que, como soberano, a eliminação de um indivíduo (ou de um grupo deles) revelaria mais especificamente sua fraqueza. O Estado Todo-Poderoso, capaz de dar uma segunda chance, admitiria que foi incapaz, ineficiente, incompetente na absorção moral, política, social de alguns indivíduos que ameaçam sua força de coalisão social? Por isso, o Estado que aplica a vingança privada (olho por olho, dente por dente) demonstra sua pequenez, sua incapacidade de autogestão dos conflitos de interesses. De modo direto, o Estado meramente repressivo expressa sua incompetência em transformar colisão social em coalisão política. A dialética da política do homem de virtú (de certas virtudes mundanas), diria Maquiavel (1979), está na capacidade de converter a divergência individual e social em convergência política.
Prenda-se a força, não à força
Tal qual o príncipe da política necessita de esperteza, destreza, conhecimento e prudência, tal qual o Estado Moderno precisará dosar sua demonstração de força. O homem moderno, liberto da opressão da ignorância de si e de seus direitos, não mais aceitaria a imposição do jugo e da força, sem uma contrapartida de convencimento. Também não há retórica em se dizer que o convencimento advém do conhecimento. Em Maquiavel, a virtude da prudência tomou forças contra o furor. Citando Petrarca nas últimas linhas de O Príncipe: Vertù contra furore / Prenderà l’arme, e fia ‘l combatter corto[1](Maquiavel, 1979, p. 94). Em busca de uma mensagem humanista mais clara, nos dirá Maquiavel que a ganância, a soberba do poder incontrolado (esse mesmo que se alimenta da vingança das penas cruéis) são a porta do fracasso.
Com isto em mente, podemos encontrar um Maquiavel preocupado com a “moral”. Essa imagem está clara no seu único romance Mandrágora[2]: Maquiavel e a personagem usam da sordidez política para atingir as finalidades superiores que são a razão de sua vida (Maquiavel, 1994, p. 25). A exemplo dos motivos que justificaram a sedução de Lucrécia por Calímaco: “Tua astúcia, a tolice de meu marido, a ingenuidade de minha mãe e a malícia de meu confessor me levaram a fazer o que, por mim, eu nunca teria feito; portanto, quero crer que isso tenha sido determinação do céu — e quem sou eu para recusar o que o céu quer que eu aceite?” (Maquiavel, 1994, pp. 102-3). Assim, é possível pensar um Maquiavel permeado pelas incongruências e vicissitudes do Renascimento: “Os Italianos também desenvolveram a comédia, sendo mais notáveis as cinco peças desse gênero atribuídas a Ludovico Ariosto (1474-1533) e representadas na corte de Ferrara, as cinco comédias de Pietro Aretino (1492-1556) e a Mandrágora (1513) de Maquiavel” (Sevcenko, 1994, p. 49). Seria(á) imoral utilizar-se da sordidez de seu algoz para não ser vencido e, quem sabe, ainda obter algum benefício utilitário? O que Maquiavel ensina nesse momento é que a razão, quando bem empregada, livra-nos das armadilhas postadas pela ingenuidade pessoal ou perversidade alheia:
Essa ênfase na capacidade criativa do homem veio a tornar-se uma das doutrinas mais influentes e ao mesmo tempo mais características do humanismo renascentista. Acima de tudo, contribuiu para se voltar maior interesse para a personalidade do indivíduo. O homem passou a sentir-se em condições de utilizar sua liberdade, de modo a fazer-se arquiteto e explorador de sua própria pessoa (Skinner, 1996, p. 119).
Antes de Maquiavel, um dos pilares do Estado e da República romana já sinalizava para o cuidado trazido pela razão, agindo como sinônimo de astúcia, prudência. Como todos de seu tempo, Cícero reconhecia em Rômulo um homem de virtù(assim como Maquiavel): “Tu nos deste, só tu, a luz e a vida” (Cícero, s/d, p. 52). Nas pegadas de Rômulo, dizia que se deve proteger o Estado contra o “furor”: a virulência do espírito que não foi tocado pela sensatez que se carrega na análise racional, sóbria. Neste sentido, Cícero, ao citar Platão, recomendava cuidado e zelo para se evitar os extremismos: “Assim como o poder ilimitado dos grandes leva à queda da aristocracia, a liberdade leva o povo demasiado livre à escravidão [...] Assim, da excessiva liberdade surge o tirano[3]e a mais injusta e dura servilidade” (Cícero, s/d, p. 44). Com Roma não seria diferente, seu sucesso repousava na longa sucessão de bons cidadãos: o próprio Rômulo era filho de Marte. Então, só poderia recomendar cuidado com os apelos da preguiça, do “fausto”, da ganância e da insensatez, além de uma atenção especial às “instituições mais móveis do que as fímbrias das ondas”. O orador romano ainda dizia que a grandeza de Rômulo esteve em sua sagacidade de saber governar amparado por um Conselho — teria sido um gênio ao escolher o local de fundação da cidade e o senado seria outra de suas fundações régias. Isto não é apenas metáfora ou figura de linguagem, é a própria essência da soberania jurídica ocidental depositada no Estado Moderno – mas, que se manifesta desde o fim do Império Romano.
Centralização Política e Direito Costumeiro
Na sequência, na formação do Estado-Nação, em pleno Renascimento, dois dos maiores obstáculos à centralização do poder político foram a diversidade política e o pluralismo jurídico. Países como Alemanha, Itália e Inglaterra, tão diferentes em sua origem cultural, mantinham muitos aspectos em comum. Por fim, forjou-se uma ética adaptada às necessidades do Estado-Nação e do Estado Moderno, em consonância ao capitalismo. Na Itália, considera-se herança do Império Romano, por exemplo, a figura jurídica do Homo sacer (Agamben, 2002). As facçoes políticas em cidades sediciosas instigaram Maquiavel a escrever O Príncipe (Virtù) e os cuidados empregados com inteligência e astúcia na formação da República: o ódio deve ser desprezado, afastado, porque nos cega e leva ao insucesso. Nesta lide, Leonardo da Vinci faria recomendação profética: “Acontecerá à geração humana não se entender ao falar um com o outro. — Isto é, um alemão com um turco” (1995, p. 72 – grifos nossos).
Na Inglaterra, em meio à guerra civil e intensa luta política, Hobbes escreveria o Leviatã: um tipo de Estado super-humano. O filósofo da política e do Estado inglês, Tomas Hobbes ainda recomendaria o endeavour ou conatus, como forma de unificar o Estado único. Conatus é um desejo de sobrevivência (Angoulvent, 1996). O grupo social precisa sobreviver e para sua defesa cria o Estado. Conatus é uma força genética que impulsiona o comportamento, um “começo interior”, um desejo. Este desejo tanto é “canalizado” para o poder quanto para a sobrevivência (conservação) — a conservação que ainda exige afirmação e (conhecimento) crescimento de si mesmo. Então, conatus é este desejo pela autoconservação. Como se vê, desde o início o Estado Moderno, sua soberania e seu direito se sustentam pela força da razão, superando-se em transformação o desejo, a libido inicial – esta é a maior obra da Razão de Estado, emprestar racionalidade ao desejo humano de poder. Na Razão de Estado, tem-se um desejo que se materializa em instituições e institutos visíveis e compreensíveis por todos. Assim, contra a insegurança social e falta de sentido na civilização do pré-Renascimento, para Hobbes, a soberania ou Razão de Estado encontraria doze máximas lógicas. Não há tempo a perder com o direito baseado na vingança, na dor, no ódio, porque é preciso construir o Estado e assegurar que os cidadãos compreendam e legitimem esta que é a maior construção da humanidade. A soberania, como espírito de autoconservação, exige respostas maduras, racionais do Estado e de seus arquitetos.
Desse modo, em meio a tanta diversidade e adversidade, para forjar a estrutura racional, lógica, monista e normativa do Estado (com um direito uno e coerente), outras “irracionalidades” deveriam ser contornadas, subjugadas:
Além de toda a arquitetura política racionalizada sob o cetro do Estado Moderno, ainda se pode dizer que atuaram duas concepções éticas, diversas mas complementares, tanto na formação estatal quanto no direito moderno:
Não há definição social, não há construção política que não tenha recebido o certificado da razão, ainda que escondida sob o manto da dominação e dos mitos. O ápice desta inteligência política seria, portanto, a ética formulada pelo Estado: o próprio Estado Ético – a inteligência superior a serviço de todo o espírito humano (Bobbio, 1989). Hegel desenvolve essa perspectiva institucional atribuindo ao Estado uma instância ou nível superior às classes sociais e aos conflitos sociais inerentes. Um Estado Ético “paira” sobre a realidade, pois deve ser imparcial, irredutível às contradições sociais e suas demandas classistas antagônicas e excludentes. Por isso, pode-se dizer que é um modelo de Estado que se quer indiferente às diferenças sociais e, assim, promove-se como intervencionista no âmbito moral. O problema é que o Estado Ético, como “instância superior da organização social”, cria uma superestrutura política que “coloniza” e aprisiona as relações sociais de acordo com os desígnios do poder hegemônico. Em todo caso, nessa linha, não haveria nada mais racional, sublime, do que o Estado.
A razão está para o bem e para o mal
A racionalidade é inexpugnável e sua história coincide plenamente com a história da formação do homem. Esta frase parece óbvia demais (e de certo modo o é), mas é preciso especificar sua estrutura. Max Weber, como de praxe, ao analisar a formação da racionalidade capitalista, recorre à comparação com éticas anteriores, como o confucionismo, taoísmo e outras:
A grande realização das religiões éticas, principalmente das seitas éticas ascéticas do protestantismo, foi o rompimento dos laços de parentesco, a constituição da supremacia da comunidade de conduta de vida baseada na crença e na ética diante da comunidade de sangue e em grande medida mesmo da família. De uma perspectiva econômica isso significava a fundamentação da confiança nos negócios em qualidades éticas dos indivíduos singulares, as quais se comprovavam no trabalho objetivo de vocação [...] A ética confuciana valorizava as relações pessoais, a puritana as desvalorizava [...] Por sua vez, o puritanismo imprimia a tudo um cunho objetivo, dissolvia tudo em “empresas” racionais e relações “comerciais” puramente objetivas, e punha o direito e o acordo racionais no lugar da força da tradição, do costume local e do favor pessoal e concreto do funcionário vigentes na China [...] O confuciano não conhecia aquela peculiar limitação e repressão dos impulsos naturais que acompanha a racionalização ética rigorosamente fundada na vontade e que estava arraigada no puritano [...] O contraste entre o puritano e o confuciano pode nos ensinar que a mera sobriedade e frugalidade combinadas com o “impulso aquisitivo” e a valorização da riqueza nem de longe eram “espírito capitalista”, no sentido do homem de vocação econômica especificamente moderno, nem podiam suscitar seu surgimento [...] Mas apenas a ética racional puritana orientada para além do mundo levou às últimas conseqüências o racionalismo econômico intramundano, justamente porque nada lhe era mais alheio do que exatamente isso, justamente porque para ela o trabalho intramundano não passava de expressão do esforço por uma meta transcendente. Conforme o prometido, o mundo dava-se ao puritano porque unicamente ele tinha-se “empenhado por Deus e sua justiça” [...] O racionalismo confuciano significava adaptação racional ao mundo. O racionalismo puritano significava dominação racional do mundo [...] O homem “nobre” era valor estético e por isso também não “instrumento” de um Deus. O cristão genuíno e, da maneira mais acabada, o asceta extra ou intramundano não queria ser outra coisa senão precisamente isso [...] E porque ele queria ser isso ele era um instrumento útil para transformar e dominar racionalmente o mundo (Weber, 1989, pp. 153-154-156-157- 158 – grifos nossos).
A ética diante da comunidade de sangue e da família tornaria os homens mais dóceis ao trabalho, se fossem vistos realmente como membros da comunidade. O sentimento de pertencimento viria do trabalho. Com isto ainda se destruiriam quaisquer ideias religiosas baseadas na subjetividade, na solidariedade, nas próprias relações sociais não marcadas pela atividade laboral. Instrumentalizava-se assim um caminho ético para o fordismo e o taylorismo. No capitalismo, a forma de dominação política não poderia estar em desacordo com a própria racionalidade econômica e, por isso, à razão econômica deve corresponder uma dominação igualmente racional. O mundo também ficaria mais asséptico, ou seja, frio e calculista, com aquela sensação de limpeza — de limpeza das tradições[4]. Este será o sentido obtido pelo que Weber chamou de dominação racional-legal, a mais moderna de todas as formas de organização social e de centralização legítima do poder soberano. Na dominação racional-legal, por definição óbvia da superioridade racional obtida com a formação do Estado, a ele Estado compete “o monopólio do uso legítimo da força física”. Qualquer coisa, ação ou reação, fora desses domínios é intolerável como irracionalidade e assim deve ser combatida. Para Weber, no entanto, o desencantamento do mundo, libertando-se progressivamente do que não seja predominantemente racional, dizível, resulta em parte da ação da ciência explicativa do mundo, e neste sentido o trabalho da ciência seria benéfico por si mesmo, pois que afastaria a consciência humana da magia, das ideologias, das demagogias, da ira da vingança por laços de sangue ou indignação:
O desencantamento do mundo que veio pela mão da racionalização crescente das relações sociais no contexto do capitalismo arrancou da existência dos homens os deuses e demônios que em tempos passados foram presenças vivas e atuantes [...] O desencantamento do mundo caracteriza-se, para o autor, por uma retirada da vida pública dos valores essenciais e mais sublimes. O homem moderno está destinado a viver em uma época desencantada, “sem deuses nem profetas” [...] A neutralidade da ciência significava, para Weber, que ela não devia estar a serviço da pregação de alguma doutrina, ideologia ou visão de mundo (Lazarte, 2001, pp. 75-76).
A ética protestante serviria ao capitalismo nascente, na verdade, legitimaria seus interesses e costumes. A ética pagã seria aplicada mais diretamente aos elementos políticos que exigem respostas diretas do Estado. As duas formas éticas encontraram-se na forma do Estado monista e centralizador/indutor da acumulação de capitais, em que atuam as forças centrífuga (para o poder econômico estendido pela expansão ultramarina do capital e pela Rota da Seda) e centrípeta (para o poder estatal, que deve aglutinar forças e não dispersá-las). A esta articulação entre capital, Estado e sociedade, dá-se o nome de capital disruptivo.
A ética do poder e do direito capitalista
De todo modo, percebe-se que Hobbes e Hegel estão em Max Weber, e que a racionalidade da engenharia política e não a vingança irracional é o suporte que edifica o Estado. A segurança move forças irracionais, o próprio desejo da conservação e da sobrevivência não é totalmente sondável na mente humana. Contudo, qualquer traço de irracionalidade foi banido há muito tempo das justificativas do poder de Estado. simplesmente porque esta irracionalidade não suporta o contrato jurídico exigido pelas instituições públicas estatais. A irracionalidade jurídica pode e até existe em demasia, não só no nazismo, mas isto está em evidente contra fluxo ao desenvolvimento do “espírito humano”. Já sabemos que Hobbes é um dos grandes autores da Filosofia e da Ciência Política e que esteve muito interessado na discussão da soberania estatal, mas antes dele está Bodin:
Bodin passou para a História do pensamento político como o teórico da soberania. Contudo, o conceito de soberania como caracterização da natureza do Estado não foi inventado por ele. “Soberania significa simplesmente poder supremo”. Na escalada dos poderes de qualquer sociedade organizada, verifica-se que todo poder inferior é subordinado a um poder superior, o qual, por sua vez, se subordina a outro poder superior. No ápice deve haver um poder que não tem sobre si nenhum outro – e esse poder supremo, “summa potestas”, é o poder soberano. Onde há um poder soberano, há um Estado (Bobbio, 1985, p. 95).
Bodin, por sua vez, estaria embasado em outros juristas medievais, que também haviam se debruçado sobre este tema: “Já os juristas medievais, comentaristas do Corpus Júris, tinham traçado uma distinção entre as ‘civitates superiorem recognoscentes’ e as ‘civitates superiorem non recognoscentes’ – só estas últimas possuíam o requisito da soberania, podendo ser consideradas Estados, no sentido moderno do termo” (Bobbio, 1985, p. 95). Para os objetivos deste texto, no entanto, interessa-nos mais o conceito de soberania em Hobbes, porque o autor também está na base da criação do Estado Moderno. Além do que, Hobbes foi mais supremo do que Bodin, uma vez que Bodin admitia certos limites ao poder absoluto do soberano. Bobin recomendava: “a observância das leis naturais e divinas e os direitos privados” (Bobbio, 1985, p. 107). Para Hobbes, todavia, ou o poder é supremo ou é impotente, simplesmente porque não há (não pode haver) limites à própria soberania. A soberania é infatigável porque o homem egoísta deve ser forçado a viver em sociedade, e a vida social deve-se totalmente à soberania estatal.
Assim, em uma frase, pode-se dizer que a soberania do Estado é ilimitada e é fundamental porque os homens lutam por seus interesses; os homens são incapazes da vida em comum, se não forem obrigados a tal; a soberania é necessária porque os indivíduos não são capazes de se reportar ao coletivo. É de fundamental importância que o Estado seja um ente presente, onipotente para conter tanto a agressividade quanto o egoísmo natural dos homens, uma vez que o Rei é só um (homem) e não seria capaz de mobilizar tantas forças ao mesmo tempo. Por isso, todo direito que serve à Razão de Estado, voltando-se muitas vezes contra a sociedade, é um direito que não abastece as relações sociais de convivialidade ética. Seu apego será sempre o próprio Estado:
Razão de Estado
Eu vigio os teus passos
Com toda a discrição
Vejo o que fazes
És o objeto principal da minha atenção
Eu sou o intruso
Que a todo o momento
Controla o teu pensamento
Sou a razão de Estado
Tenho o teu processo arquivado
Sou a razão de Estado
Posso proporcionar-te um mau bocado
Eu conheço os segredos
Da tua intimidade
Sei que livros te interessam
E trabalho por conta da comunidade
Sou eu quem escreve
Dia após dia
A tua biografia
Sou a razão de Estado
Tenho o teu processo arquivado
Sou a razão de Estado
Posso proporcionar-te um mau bocado
Nós vivemos em crise...
E a nossa sociedade
Tem que ser protegida
Contra os malefícios da individualidade
Imponho a ordem
E repudio
O mais pequeno desvio
Sou a razão de Estado
Tenho o teu processo arquivado
Sou a razão de Estado
Posso proporcionar-te um mau bocado[5]
Em todos os sentidos, entretanto, o direito que só serve à Razão de Estado, quase que se desobrigando da necessária legitimação moral, social, é um direito pouco racional, visto que regularmente fará uso da força física para se manter e isto contraria a lógica histórica de que a racionalidade é o que melhor se presta à dominação.
O direito penal é sempre um direito do inimigo
Pela história da racionalidade aplicada à formação do Estado Moderno, e que nunca admitiu o direito de sedição, de dizer não ao contrato social, é se pensar que o direito nasceria com uma conotação fortemente apelativa, punitiva a toda forma de deserção social. Especialmente o direito penal, portanto, como defesa da centralização do Estado (não permitir a deserção, a fuga dos indivíduos para outros territórios), não escaparia à lógica ferrenha aplicada ao Estado Moderno.
Desse modo, o direito penal, seguindo a lógica hobbesiana, foi criado para dar sustentação à soberania; deveria punir os detratores das relações sociais como se fossem inimigos do Estado. É óbvio, portanto, que o direito penal não foi criado para regular as ações do próprio Poder Público, nem seria a base das negociações comerciais vigentes naquele período. O direito penal só poderia ter sido criado para punir a todos que ameaçassem o capital e o Estado. O direito penal não seria aplicado aos amigos do capitalismo e do Estado Moderno, mas sim a seus desafetos sociais ou inimigos do príncipe. Então, o mais correto talvez fosse definir como um direito penal dos inimigos do capitalismo e do Estado Moderno. Por exclusão lógica, aos amigos seria destinado o direito que elevasse seus “nobres interesses econômicos”. Como recurso analítico e lógico da esfera jurídica em que se embute toda forma de poder validado pelo Estado (incluindo tanto a exceção, quanto os que hoje seriam os direitos humanos), é exatamente o jusnaturalismo de Hobbes que é retomado:
Hobbes tinha consciência desta situação. Nominalmente, é (também) um teórico do contrato social, mas materialmente é, preferentemente, um filósofo das instituições. Seu contrato de submissão – junto a qual aparece, em igualdade de direito (?) a submissão por meio da violência – não se deve entender tanto como um contrato, mas como uma metáfora de que os (futuros) cidadãos não perturbem o Estado em seu proesso de auto-organização [...] Entretanto, a situação é distinta quando se trata de uma rebelião, isto é, de alta traição:
Em todo caso, quer seja um empréstimo apropriado ou não quanto à soberania ameaçada por delinquentes ou inimigos, Hobbes seria mais explícito quanto à própria soberania necessária à Razão de Estado, ou seja, no lugar do Homem devirtù deve consubstanciar-se realmente o Estado como soberano. No contratualismo de John Locke, que é anterior ao de Hobbes, a emergência do contrato social como suporte da soberania e grandeza do Estado já estava presente.
Locke e o liberalismo clássico
O livro de John Locke (1994) que nos interessa em primeiro plano é o Segundo Tratado Sobre o Governo Civil. A matriz do Segundo Tratado é a “lei da natureza” e tem intenção e valor essencialmente normativos. Pode-se presumir que mesmo a “necessidade mais premente” precisa ser regulada quanto aos meios empregados para satisfazê-la, especialmente a fim de se evitar o “estado de guerra”: “Como toda teoria ética ou política, o tratado de Locke também enuncia um fim — ou um conjunto de fins convergentes — e busca os meios mais adequados para alcançá-lo[7]” (Bobbio, 1998, p. 155). Locke recorre à natureza do homem para saber quais são os fins desejados e as “condições, qualidades e necessidades humanas” necessárias à obtenção desses fins — pode-se pensar em um tipo ideal de governo (uma tradição que remonta a Aristóteles). Por isso, há um forte apelo aos procedimentos e às regras hipotéticas: a conservação da vida humana é o objetivo por excelência e a Sociedade Civil é uma condição necessária a esta conservação. Logo, a Sociedade Civil será o meio necessário a esta conservação — esta seria a regra suprema de uma política racional.
Em Locke, a Sociedade Civil está assim organizada para se evitar o despotismo. A Sociedade Civil deveria garantir que os homens vivessem em paz, liberdade e segurança. Locke constrói uma obra prescritiva, mas sem um “receituário político” (tão comum na Renascença): “Não se propõem apenas a conhecer a verdade efetiva, mas sim a transformá-la em um certo sentido, segundo opções determinadas, inspirando-se em certos valores últimos” (Bobbio, 1998, p. 156 – grifos nossos). Esse conjunto de preceitos tem por fim mais o cidadão do que o príncipe. No entanto, tem como ponto de partida a situação da monarquia inglesa, seguindo o partido das reformas e do progresso, o Whig. À época já se pronunciava não só o problema do exercício do poder, mas igualmente do seu controle: uma perspectiva que foi acentuada um século depois, no Estado Constitucional. Interessaria a Locke determinar o como as sociedades devem ser governadas: poder civil. Por exemplo, um governo baseado na força, será que satisfaz as “necessidades civis”? Sem a justificação moral, social, liberando-se apenas o ódio vingativo, o Estado terá assegurado sua soberania? Em qualquer caso, todas as forças públicas serão acionadas para reconverter os incrédulos ao modo de produção capitalista, notadamente os mais explorados e vilipendiados.
Educação para além do óbvio
As deturpações conduzidas pelo ideal reformador da sociedade alcançaria tanto o direito, como vimos, quanto a educação (desconsiderando-se as condições históricas, econômicas, de classe, produtivas, da luta política) imporiam riscos muito elevados, mas teriam suas vantagens: racionalização e legitimação da ordem social, como se fosse uma ordem natural, inalterável. Contra esta interpretação, especialmente envolvendo a intrínseca relação entre a estrutura social e o sistema educacional, Mészáros cita o pensador Karl Marx n’O Capital para ter em conta o pecado original, da economia política. Para realçar o espólio provocado pelas leis de cerceamento da época (êxodo rural), Marx revela a acidez com que eram tratados os vagabundos flagelados:
Eles se converteram em massas de esmoleiros, assaltantes, vagabundos, em parte por predisposição e na maioria dos casos por força das circunstâncias. Daí ter surgido em toda a Europa ocidental, no final do século XV e durante todo o século XVI, uma legislação sanguinária contra a vagabundagem. Os ancestrais da atual classe trabalhadora foram imediatamente punidos pela transformação, que lhes foi imposta, em vagabundos e paupers. A legislação os tratava como criminosos “voluntários” e supunha que dependia de sua boa vontade seguir trabalhando nas antigas condições que não existiam [...] Desses pobres fugitivos, dos quais Thomas Morus diz que os coagiu a roubar, “foram executados 72 mil pequenos e grandes ladrões, sob o reinado de Henrique VIII” (Mészáros, 2005, p. 38).
A resposta a esta agrura social, entretanto, primeiramente se daria pelo embrutecimento legal e, secundariamente, pela educação, e ainda que a educação servisse muito mais como vigilância e disciplinarização. Mészáros, em seu trabalho, dá exemplos que retira de citações de John Locke, no texto Memorandum on the reformo f the poor law:
O crescimento do número de pobres [...] nada mais é do que o relaxamento da disciplina e a corrupção dos hábitos; a virtude e a diligência são como companheiros constantes de um lado, assim como o vício e a ociosidade estão do outro. Portanto, o primeiro passo no sentido de fazer os pobres trabalhar [...] deve ser a restrição da sua libertinagem mediante a aplicação estrita das leis estipuladas [por Henrique VIII e outros] contra ela [...] Todos os homens que mendiguem sem passes nos municípios litorâneos, sejam eles mutilados ou tenham mais que 50 anos de idade, e todos os de qualquer idade que também mendiguem sem passes nos municípios do interior, longe da orla marítima, devem ser enviados para uma casa de correção máxima, e nela mantidos em trabalhos forçados durante três anos (Mészáros, 2005, pp. 39-41).
Locke recomendava amputar as duas orelhas dos vagabundos desempregados, enquanto Henrique VIII e Eduardo VI falavam em apenas meia orelha. Para os filhos da classe trabalhadora, ou seja, para os pobres de todo gênero, o liberal Locke propunha a obrigatoriedade de participarem das oficinas ou instituições correcionais, sob o artifício do ensino profissionalizante, de fundo pacificador e de acomodação moral:
Os filhos das pessoas trabalhadoras são um corriqueiro fardo para a paróquia, e normalmente são mantidas na ociosidade, de forma que geralmente também se perde o que produziriam para a população até eles completarem doze ou catorze anos de idade. Para esse problema, a solução mais eficaz que somos capazes de conceber, e que portanto humildemente propomos, é a de que, na acima mencionada lei a ser decretada, seja determinado, além disso, que se criem escolas profissionalizantes em todas as paróquias, as quais os filhos de todos, na medida das necessidades da paróquia, entre quatro e treze anos de idade ... devem ser obrigados a frequentar [...] Outra vantagem de se levar as crianças a uma escola profissional é que, desta forma, elas seriam obrigadas a ir à igreja todos os domingos, juntamente com os seus professores ou professoras e teriam alguma compreensão da religião; ao passo que agora, sendo criadas, em geral, no ócio e sem rédeas, elas são totalmente alheias tanto à religião e à moralidade como o são para a diligência (Mészáros, 2005, pp. 41-42).
Com o que ainda se tem o ensino religioso obrigatório, e, contraditoriamente, convive-se com o aporte tecnológico como supremacia da civilização judaico-cristã
Bibliografia
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