Segunda-feira, 10 de setembro de 2012 - 14h40
Na formação de uma comunidade superior, a exemplo do Estado – ou de muitas das comunidades submetidas e controladas pelo Estado –, a principal garantia é de que todos possam desenvolver a razão. Por isso, Estados bem organizados investem maciçamente em educação. Em decorrência, é correto afirmar que as sociedades equilibradas são eficientes ao promover e desenvolver o bom senso, o cumprimento das obrigações, o respeito à lei, o entendimento do direito como consecução da justiça em seus cidadãos.
Esta formação unificada pela razão induz nos sujeitos a capacidade de compreensão de que se pode/deve estabelecer ou alterar regras sociais (normas jurídicas) para a organização da vida social. Forma-se, portanto, a capacidade do pensamento abstrato – forma de raciocínio em que se é eficiente para relacionar o particular e o geral, e depois retornar às particularidades. A educação inteligente estimula o pensamento abstrato.
Esta capacidade de relacionar e também de associar o particular e o geral é essencial à aplicação das normas e das regras. É exatamente este vai e vêm entre particular/geral que impede ou inibe o cometimento de crimes. O sujeito é portador do sentimento de se ver como parte ativa da vida social, mediante o estabelecimento das obrigações e isto se deve, efetivamente, à capacidade de elaboração do pensamento abstrato. O sujeito inteligente avalia o caso concreto, o particular, em confronto/comparação com a regra geral. A relação entre o particular e a regra geral recebe o codinome de subsunção – e que não é a fuga da realidade, muito pelo contrário, pois a realidade está contida na cultura (política) que se compara com a lei. Efetivamente, quando o próprio caso concreto é abstraído, elevando-se, livrando-se dos marcos de sua concretude para ser comparado, “medido pela lei”, efetiva-se o pensamento abstrato que está expresso na subsunção. Assim, por efeito da subsunção, o sujeito consegue se comunicar com as instituições e com os demais seres sociais. A subsunção, como uma parte do pensamento abstrato, permite ao indivíduo a descentralização, “sair de si”, para se encontrar no Outro e no espaço coletivo representado pela lei e pelo direito.
No caso específico da subsunção, o Outro é identificado com a lei, pois a lei representa o interesse geral, coletivo e não deveria ser afrontada. Os (relativamente ou totalmente) incapazes de associar a si e a generalidade expressa pela lei são os que cometem os crimes, pois veem na lei algo abstrato, distante de si e sem sentido, como algo que não precisa ser cumprido. Para quem é incapaz de elaborar o pensamento abstrato, o geral não existe, à medida em que o concreto é o que conta, por estar presente diretamente na vida, na imediatividade de suas ações.
O que separa o adulto da criança, o capaz do incapaz, o sujeito do direito (a quem a lei não o atinge como “punição”) e o objeto (a quem cabe alguma restrição de direitos), o socializável do egocêntrico, o embrutecido do inteligente (o sujeito capaz de pensar o concreto, abstrair, mas como “concreto-pensado”), o bom senso da alienação (potência ou capacidade retirada de si), é a educação que propicia e estimula o pensamento dirigido ao Outro. O que ainda leva a concluir que a consciência do direito e do dever, bem como a distinção entre o devido e o indevido, concatenar certo/errado, parte dessa mesma condição associativa entre o particular (o que me interessa pessoalmente, imediatamente) e o geral: o que também me interessa, mas apenas mediatamente, com a interposição do Outro. Afinal, o Outro é abstrato – Quem é esse Outro? Onde está? Por que nome responde? – ao mesmo tempo em que é próximo, concreto, porque é semelhante a mim em desejos e necessidades, é igual a mim em direitos e é equivalente a mim fisicamente, biologicamente.
Portanto, um Estado fortalecido é aquele que investe em educação: 1) comunicar-se pela língua; 2) abstrair pelo pensamento; 3) tomar decisões por si só. Somente desse modo é que se pode afirmar que “o Estado é a ordem estabelecida e dirigida a eles, a nós, aos outros, a todos”. A comunicação formulada pela “razão livre” torna as regras legítimas, compreensivelmente aplicadas aos outros e a mim, pois se nem todos podem participar de sua elaboração, ao menos, todos poderiam compreender seu significado e alcance. A comunicação entre duas pessoas livres permite a formação do pensamento abstrato; mas, de modo inverso, se há somente uma via para a razão, “o pensamento é único”, como se houvera um direito unilateral de se expressar, de se impor como regra particular ao geral, aos demais.
O pensamento único se confunde com a “generalização do particular”, pois um se impõe aos demais. Suprimindo-se as diferenças entre o particular e o geral institui-se a ideologia, como desmerecimento do direito, como se fosse um tipo de “direito particular”, um privilégio que se quer impor a todos. O “governo dos homens” é um governo com forma egoísta, com base na lei “lei privada” (privi legem) transmitida pela vontade de um único agente. Obviamente que o governo dos homens, quase sempre limitado como privilégio (lei privada), é um governo baseado em leis injustas; uma vez que se a lei não for expressão do geral, se exprimir somente o interesse privado, será uma lei injusta.
O “governo das leis”, ao revés disso, dirige-se pela vontade geral expressa na lei, no direito; o governo das leis é muito mais inteligente porque se baseia no pensamento abstrato. Somente desse modo se pode dizer que “a Razão Pública se expressa pelos atos do Estado”, quando a norma jurídica se aplica ao indivíduo (particular) e ao Estado (como o contexto geral). Por isso, sem a educação que nos ensine a compreender o que se lê e seu alcance futuro (pensamento abstrato), continuaremos a dizer que “a lei não pega”. A lei não pega porque não a “apreendemos”; não tomamos para nós, cada um a seu modo, para si, o que deve ser de comum alcance e interesse. A lei não pega porque não consideramos válido para os outros, aquilo que tomamos para nós como significativo, relevante, impositivo.
As associações que estabelecemos entre nós e o direito se fortalecem com esta mesma capacidade elaborada pelo pensamento abstrato, em que somos capazes de “apreender o geral” – trazer para si – como algo a ser vivificado, verificado concretamente em nossa vida; assim, o direito, a lei, a norma jurídica tornam-se concretos em nossas vidas, não apenas nos rodeiam, mas habituam-nos, estando próximos, inseridos. Também apreendemos o geral quando internalizamos o direito, a lei, como o que faz sentido seguir, como algo correto e que é validável. Daí que internalizar a lei é apreender o geral que ela guarda e expressa; fala-se de uma “aculturação acrítica” porque não é correto, coerente e lógico, criticar o Outro que se apresenta e é representado na forma do direito. Até porque o Outro que se tem na lei é espelho de nossas intenções. É como se dissesse que “cada povo tem o governo (e, sobretudo, a lei) que merece”. A norma jurídica, o direito, a lei são o geral em potência e daí vem sua força, obrigação (de fazer ou deixar de fazer), coerção, imposição para ser seguida por quem não é capaz de sozinho elaborar o pensamento abstrato. Em síntese, “apreender o direito” é efetivar, “concretizar como realidade”, o pensamento abstrato.
Neste sentido, está correto dizer que o direito, a lei, a norma jurídica obrigam o infrator, quem está em desacordo com o geral da lei, a um processo de humanização. Obrigar à lei seria equivalente a obrigar o indivíduo ao pensamento abstrato, lógico e coerente com a sociedade. O direito é parte e infusor da humanização porque nos leva ou obriga a elaborar, desenvolver o que temos de melhor: o raciocínio lógico e o pensamento abstrato. Pois, o direito transforma, eleva a própria potência do raciocínio ao degrau elaborado, superior do pensamento abstrato que se aplica ao real: o concreto-pensado. O pensamento abstrato efetiva, desse modo, o direito em ato, e, ao efetivá-lo, legitima-o. É por isso que o direito representa o processo civilizatório, porque nos obriga a pensar como humanos, projetando-nos para fora – para além de si –, em direção ao Outro. O direito nos torna mais humanos porque nos obriga a pensar e a ver a sociedade que está além de nossos olhos. O direito é democrático porque estimula essa descentralização.
Como visto, o direito, a lei só são possíveis graças à formulação do pensamento abstrato, sob o qual nos vemos capazes de distinguir e de nos movimentarmos, no plano da consciência e da ação, entre o particular e o geral, o público e o privado, entre o concreto e o abstrato (e o concreto-pensado), e vice-versa. Esta capacidade de se projetar para lá, pondo-se no lugar do Outro, saindo daqui, dos domínios dos próprios interesses, é o que permite reconhecer o certo e o errado. O pensamento abstrato permite que não se viva erroneamente, ou seja, sob os designíos do pensamento mágico, da ideologia, da alienação – entendida como restrição, suspensão ou “perda do direito”.
Em suma, a educação inteligente estimula a solidariedade e a confiança, e esta é base do destino comum, em que cada um trabalha por si e pelos outros. Ao contrário do “destino manifesto”, a crença de que nascemos predestinados a dominar os outros, a vida saudável é determinada pela simpatia e antipatia que uma sociedade é geradora.
O Brasil será um país sério quando for capaz de oferecer esta educação inteligente a seu povo, quando aprendermos e apreendermos, convencendo-nos, que o melhor caminho é aquele que traçamos em comum, simplesmente porque é mais fácil de ser realizado. O Brasil será um país do presente – e não promessa eterna de futuro – quando entender que a educação inteligente estimula o básico, mas essencial, o bom senso de não estar em desacordo com o direito criado para a proteção da vida social, como elo da justiça.
Vinício Carrilho Martinez
Professor Adjunto II da Universidade Federal de Rondônia
Departamento de Ciências Jurídicas
Doutor pela Universidade de São Paulo
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