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Vinício Carrilho

Educação para a Polis


Educação para a Polis - Gente de Opinião

“Há muito mais entre o céu e o inferno do que vossa vã filosofia possa supor”[1]. Essa é uma sentença política absurdamente realista, pois que é reveladora da verdade dos fatos – e não há Política, Polis e muito menos Ciência Política ou Ciência Social sem a contundente verdade dos fatos.

A realidade social, mormente sob o Necrofascismo, continua a asseverar o darwinismo social: contundente, letal e racista[2] – fenômeno que segue a rotina da privatização da vida, desde o Império dos EUA, com abatimento muito maior de crianças negras e latinas, na pandemia da COVID-19[3].

Mais do que nunca, necessitamos do conhecimento científico; em contraposição ao negacionismo que se espalha feito senso comum e em combate ao protofascismo eriçado em movimentos anticiência: um ridículo sem fim[4]. Isso nos assegura que ciência é poder e que uma educação humanista é essencial no combate ao Fascismo.

 

Educar cientificamente para o poder

 

A educação para transpor a situação atual de negação da realidade e do óbvio, e da própria humanização, obviamente, deve ser dotada de uma qualidade crítica – quer dizer, deve ser baseada em cientificidade e capacidade analítica do envolvimento societal: no espectro econômico, social, político e cultural – o que, por sua vez, implica dizer que deve ser uma educação ampla e permanente, não acanhada ou enfurnada nos “campos de formação e de especialização”, mas, sim, direcionada ao contexto social, isto é, Ética.

Então, aqui já afastamos a especialização, repetição de tarefas e de slogans, como rotina da vida pública do “animal político” (ARISTÓTELES, 2001). Uma educação sem uma vasta cobertura de cultura geral jamais será crítica, a não ser que se entenda por crítica a eterna cantilena (chavões) de “aspectos críticos” sobre os mesmos olhares e as mesmas situações. Exemplo disso seria um aprendizado em matemática que levasse o sujeito ao caminho da lógica, ao reconhecimento ou formulação de postulados intrinsecamente coerentes (livre de tergiversações) e obrigatoriamente a partir de premissas válidas.

Se aprendermos a diferença entre o certo e o errado, no ensino fundamental, já está ótimo. Isto é, tratar-se-ia de uma educação com racionalidade e sensibilidade social, com vistas aos fins sociais e republicanos, emancipadores e próprios à interação social.

O envolvimento societal, enquanto base educacional de formação permanente, por certo, passaria pelo incentivo inexorável do intelectual orgânico das classes trabalhadoras ou subordinadas (GRAMSCI, 2000), diante da correia de poder. O próprio intelectual orgânico das classes trabalhadoras seria o principal motivador, a fim de que as classes trabalhadoras não mais se vissem reduzidas a um mero elo da correia de transmissão do poder.

Como sujeito ativo, o intelectual orgânico das classes trabalhadoras é exatamente o animal político dotado de sensibilidade e de responsabilidade social, que vive prospectivamente em benefício da Coisa Pública.

Com isso, avançamos a fim de realçar mais dois pontos: 1) a exigência de uma educação baseada no bom senso e na capacidade de superar o senso comum; 2) o requerimento de uma educação para o poder popular. Neste segundo aspecto, haveria uma metáfora de semelhante à ideia de um Poder Constituinte Permanente; e isso nos levaria à apresentação, ao ensino e ao debate da Constituição Federal de 1988 (enquanto Carta Política) a partir das primeiras séries do ensino fundamental.

Contudo, vale ressaltar, novamente, trata-se de uma educação prospectiva, ou seja, propriamente inquieta, motivada para e pela pesquisa, para a descoberta, e capaz de alimentar o sentimento da insaciedade: “para além do que se vê” – para que também possa ser propositiva, e não mais coadjuvante, reativa. Algo como a curiosidade que não abdica do bom senso.

Muito longe de manuais e de receituários decorativos (via de regra reducionistas), a formação permanente e prospectiva implicaria uma educação alicerçada nos principais marcos nacionais (societais) e de acordo com o Princípio Civilizatório que objetivasse a autonomia e a capacidade singular de avaliação crítica da sociedade e da ciência.

Portanto, uma educação para além do Fascismo, após Auschwitz (ADORNO, 1995), não pode estar contida em gaiolas de curto prazo – ainda que seja a “gaiola de ferro” da racionalidade (WEBER, 1979) e que a chegada ao poder do intelectual orgânico das classes oprimidas seja urgente. Deve-se afastar a educação popular do poder de qualquer verniz partidário. Isto também é bom senso, bem como obviedade.

Afinal, nem todo intelectual orgânico será um “homem de virtù” (MAQUIAVEL, 1979) – que não corresponde às virtudes tradicionais. Porém, que todos saibam o que isso significa, seu alcance e suas responsabilidades, assim como estejam prontos para o exercício do poder enquanto liderança e organização.

Esta educação para o poder – prospectiva e permanente (arts. 205; 206, IX; 207) – tem equivalência na autonomia obrigatória ao “Cidadão Governante” (CANIVEZ, 1991). Ter-se-ia assim o cidadão educado para entender o significado e o alcance do Estado de Direito Democrático (de 3ª geração) e, quem sabe, constituir estatura intelectual voltada à síntese dessa forma-Estado.

Nessa altura, deveremos observar um fenômeno que, vez ou outra, encontra um ensaio, formula projeções ou nos alerta para uma necessidade urgente, que é, basicamente, poder olhar a Polis e verificar que absolutamente ninguém escreve ao coronel (MÁRQUEZ, 2001).

Nesse momento, teremos alcançado um estágio no interior do Processo Civilizatório em que a (Carta) Política terá um nível condigno à dignidade humana do “animal político”, como demonstração de se haver superado (coletivamente) o realismo político que hoje é refém do realismo mágico. Para nós, então, é urgente uma Educação para a Polis que convulsione e supere a antítese imposta pelo realismo político trágico.

         Desse modo, educar cientificamente para o poder é uma ação voltada ao futuro, sob as condições materiais e subjetivas do Processo Civilizatório – que inclui a Utopia – e sempre a partir da teleologia, que precisa conhecer em profundidade a ontologia de seu povo – especialmente para que a teleologia seja mais relevante, principalmente no espaço público, do que a teologia.

Dentre as fórmulas atuais da teologia, que a educação científica para o poder seja capaz de negar – como antítese da tese negacionista do humano – o que se denomina de Teologia da Prosperidade: um tipo de caça-níqueis do Deus bárbaro do capital. Aqui retorna-se a Ética, com afinco, a fim de se anular as interfaces do Mal, do negacionismo, das “novas” formas de colonização, do Necrofascismo (MARTINEZ, 2021).

 

Duas palavras de (in)conclusão

 

Portanto, sinteticamente, há dois conhecimentos ou habilidades da educação fundamental (a antiga “quinta série”) essenciais a esse projeto: o desenvolvimento da lógica (razão) e o da abstração. Sem isso, o animal político perde o fator de diferenciação com o reino animal.

O que nos diferencia do grupo mais complexo possível de castores, por exemplo, não é a capacidade de socialização, mas, sim, o exercício projetado e constante da teleologia. Nesse sentido, o intelectual orgânico das classes trabalhadoras atuaria como projetista e arquiteto da sociedade, e isso requer superação e transformação, muito além da aranha, que se adapta e modela suas teias conforme o ambiente.

É a educação para a Ética libertária, que culmina na capacidade de anular dos efeitos e da permanência do Fascismo, que fará do ser social o animal político transformado, um atuante intelectual orgânico das classes trabalhadoras.

 

Referências

 

ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.

ARISTÓTELES. A Política. São Paulo : Martins Fontes, 2001.

CANIVEZ, Patrice. Educar o cidadão? Campinas, São Paulo: Papirus, 1991.

Del ROYO, Marcos & MARTINEZ, Vinício Carrilho. Hamlet: homem de virtù. IN Estudos de Sociologia, UNESP/Araquara, v. 26, 2008, pp. 77-89.

GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. (Org. Carlos Nelson Coutinho). Volume III. Nicolau Maquiavel II. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe - Maquiavel: curso de introdução à ciência política. Brasília-DF: Editora da Universidade de Brasília, 1979.

MÁRQUEZ, Gabriel Garcia. Ninguém escreve ao Coronel. 18ª Ed. Rio de Janeiro: Record, 2001.

MARTINEZ, Vinício Carrilho. Necrofascismo. Curitiba: Brazil Publishing, 2021.

SHAKESPEARE, W. Hamlet, príncipe da Dinamarca. Tradução de Ana Amélia de Queiroz Carneiro Mendonça. In BLOOM, H. Hamlet: poema ilimitado. Tradução de José Roberto O'Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004. p.140-319.

WEBER, MAX. Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.

 

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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