Domingo, 3 de outubro de 2021 - 09h27
“Há muito mais entre o céu e o
inferno do que vossa vã filosofia possa supor”[1].
Essa é uma sentença política absurdamente realista, pois que é reveladora da
verdade dos fatos – e não há Política, Polis e muito menos Ciência Política ou
Ciência Social sem a contundente verdade dos fatos.
A
realidade social, mormente sob o Necrofascismo, continua a asseverar o
darwinismo social: contundente, letal e racista[2]
– fenômeno que segue a rotina da privatização da vida, desde o Império dos EUA,
com abatimento muito maior de crianças negras e latinas, na pandemia da
COVID-19[3].
Mais
do que nunca, necessitamos do conhecimento científico; em contraposição ao
negacionismo que se espalha feito senso comum e em combate ao protofascismo
eriçado em movimentos anticiência: um ridículo sem fim[4].
Isso nos assegura que ciência é poder e que uma educação humanista é essencial
no combate ao Fascismo.
Educar
cientificamente para o poder
A
educação para transpor a situação atual de negação da realidade e do óbvio, e
da própria humanização, obviamente, deve ser dotada de uma qualidade crítica –
quer dizer, deve ser baseada em cientificidade e capacidade analítica do
envolvimento societal: no espectro econômico, social, político e cultural – o
que, por sua vez, implica dizer que deve ser uma educação ampla e permanente,
não acanhada ou enfurnada nos “campos de formação e de especialização”, mas,
sim, direcionada ao contexto social, isto é, Ética.
Então,
aqui já afastamos a especialização, repetição de tarefas e de slogans, como rotina da vida pública do
“animal político” (ARISTÓTELES, 2001). Uma educação sem uma vasta cobertura de
cultura geral jamais será crítica, a não ser que se entenda por crítica a
eterna cantilena (chavões) de “aspectos críticos” sobre os mesmos olhares e as
mesmas situações. Exemplo disso seria um aprendizado em matemática que levasse
o sujeito ao caminho da lógica, ao reconhecimento ou formulação de postulados
intrinsecamente coerentes (livre de tergiversações) e obrigatoriamente a partir
de premissas válidas.
Se
aprendermos a diferença entre o certo e o errado, no ensino fundamental, já
está ótimo. Isto é, tratar-se-ia de uma educação com racionalidade e
sensibilidade social, com vistas aos fins sociais e republicanos, emancipadores
e próprios à interação social.
O
envolvimento societal, enquanto base educacional de formação permanente, por
certo, passaria pelo incentivo inexorável do intelectual orgânico das classes
trabalhadoras ou subordinadas (GRAMSCI, 2000), diante da correia de poder. O
próprio intelectual orgânico das classes trabalhadoras seria o principal
motivador, a fim de que as classes trabalhadoras não mais se vissem reduzidas a
um mero elo da correia de transmissão do poder.
Como
sujeito ativo, o intelectual orgânico das classes trabalhadoras é exatamente o
animal político dotado de sensibilidade e de responsabilidade social, que vive
prospectivamente em benefício da Coisa Pública.
Com
isso, avançamos a fim de realçar mais dois pontos: 1) a exigência de uma
educação baseada no bom senso e na capacidade de superar o senso comum; 2) o
requerimento de uma educação para o poder popular. Neste segundo aspecto,
haveria uma metáfora de semelhante à ideia de um Poder Constituinte Permanente;
e isso nos levaria à apresentação, ao ensino e ao debate da Constituição
Federal de 1988 (enquanto Carta Política) a partir das primeiras séries do
ensino fundamental.
Contudo,
vale ressaltar, novamente, trata-se de uma educação prospectiva, ou seja,
propriamente inquieta, motivada para e pela pesquisa, para a descoberta, e
capaz de alimentar o sentimento da insaciedade: “para além do que se vê” – para
que também possa ser propositiva, e não mais coadjuvante, reativa. Algo como a
curiosidade que não abdica do bom senso.
Muito
longe de manuais e de receituários decorativos (via de regra reducionistas), a
formação permanente e prospectiva implicaria uma educação alicerçada nos
principais marcos nacionais (societais) e de acordo com o Princípio
Civilizatório que objetivasse a autonomia e a capacidade singular de avaliação
crítica da sociedade e da ciência.
Portanto,
uma educação para além do Fascismo, após Auschwitz (ADORNO, 1995), não pode
estar contida em gaiolas de curto prazo – ainda que seja a “gaiola de ferro” da
racionalidade (WEBER, 1979) e que a chegada ao poder do intelectual orgânico
das classes oprimidas seja urgente. Deve-se afastar a educação popular do poder
de qualquer verniz partidário. Isto também é bom senso, bem como obviedade.
Afinal,
nem todo intelectual orgânico será um “homem
de virtù” (MAQUIAVEL, 1979) – que não corresponde às virtudes tradicionais.
Porém, que todos saibam o que isso significa, seu alcance e suas
responsabilidades, assim como estejam prontos para o exercício do poder
enquanto liderança e organização.
Esta
educação para o poder – prospectiva e permanente (arts. 205; 206, IX; 207) –
tem equivalência na autonomia obrigatória ao “Cidadão Governante” (CANIVEZ,
1991). Ter-se-ia assim o cidadão educado para entender o significado e o
alcance do Estado de Direito Democrático (de 3ª geração) e, quem sabe,
constituir estatura intelectual voltada à síntese dessa forma-Estado.
Nessa
altura, deveremos observar um fenômeno que, vez ou outra, encontra um ensaio,
formula projeções ou nos alerta para uma necessidade urgente, que é,
basicamente, poder olhar a Polis e verificar que absolutamente ninguém escreve ao coronel (MÁRQUEZ,
2001).
Nesse
momento, teremos alcançado um estágio no interior do Processo Civilizatório em
que a (Carta) Política terá um nível condigno à dignidade humana do “animal
político”, como demonstração de se haver superado (coletivamente) o realismo
político que hoje é refém do realismo mágico. Para nós, então, é urgente uma
Educação para a Polis que convulsione e supere a antítese imposta pelo realismo
político trágico.
Desse
modo, educar cientificamente para o poder é uma ação voltada ao futuro, sob as
condições materiais e subjetivas do Processo Civilizatório – que inclui a
Utopia – e sempre a partir da teleologia, que precisa conhecer em profundidade
a ontologia de seu povo – especialmente para que a teleologia seja mais
relevante, principalmente no espaço público, do que a teologia.
Dentre
as fórmulas atuais da teologia, que a educação científica para o poder seja
capaz de negar – como antítese da tese negacionista do humano – o que se
denomina de Teologia da Prosperidade: um tipo de caça-níqueis do Deus bárbaro
do capital. Aqui retorna-se a Ética, com afinco, a fim de se anular as
interfaces do Mal, do negacionismo, das “novas” formas de colonização, do
Necrofascismo (MARTINEZ, 2021).
Duas
palavras de (in)conclusão
Portanto,
sinteticamente, há dois conhecimentos ou habilidades da educação fundamental (a
antiga “quinta série”) essenciais a esse projeto: o desenvolvimento da lógica
(razão) e o da abstração. Sem isso, o animal político perde o fator de
diferenciação com o reino animal.
O que
nos diferencia do grupo mais complexo possível de castores, por exemplo, não é
a capacidade de socialização, mas, sim, o exercício projetado e constante da
teleologia. Nesse sentido, o intelectual orgânico das classes trabalhadoras
atuaria como projetista e arquiteto da sociedade, e isso requer superação e
transformação, muito além da aranha, que se adapta e modela suas teias conforme
o ambiente.
É a
educação para a Ética libertária, que culmina na capacidade de anular dos
efeitos e da permanência do Fascismo, que fará do ser social o animal político
transformado, um atuante intelectual orgânico das classes trabalhadoras.
Referências
ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1995.
ARISTÓTELES. A
Política. São Paulo : Martins Fontes, 2001.
CANIVEZ, Patrice. Educar o cidadão? Campinas, São Paulo:
Papirus, 1991.
Del ROYO, Marcos & MARTINEZ, Vinício Carrilho. Hamlet: homem de virtù. IN Estudos de
Sociologia, UNESP/Araquara, v. 26, 2008, pp. 77-89.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. (Org. Carlos
Nelson Coutinho). Volume III. Nicolau Maquiavel II. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2000.
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe - Maquiavel: curso de introdução à ciência política.
Brasília-DF: Editora da Universidade de Brasília, 1979.
MÁRQUEZ, Gabriel Garcia. Ninguém escreve ao Coronel. 18ª Ed. Rio
de Janeiro: Record, 2001.
MARTINEZ, Vinício Carrilho. Necrofascismo. Curitiba: Brazil Publishing, 2021.
SHAKESPEARE, W. Hamlet,
príncipe da Dinamarca. Tradução de Ana Amélia de Queiroz Carneiro Mendonça.
In BLOOM, H. Hamlet: poema ilimitado. Tradução de José Roberto O'Shea. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2004. p.140-319.
WEBER, MAX. Ensaios
de Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.
[1] Hamlet (SHAKESPEARE,
2004) é a encenação da virtù, o
personagem encarna a virtù moderna –
assistir a peça ou ler o poema inacabado é ver este desfile vivo da virtù (DEL ROIO & MARTINEZ, ).
[2] https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/2020/09/16/mulheres-negras-sao-as-principais-vitimas-de-homicidios-ja-as-brancas-compoem-quase-metade-dos-casos-de-lesao-corporal-e-estupro.ghtml?fbclid=IwAR1n-P10TWFnNYEoPi8EIZieAH0synhAJezp6MB9WoFIbJErbvyfixKORso.
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