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Gente de Opinião

Vinício Carrilho

Elementos Jurídicos do Estado


Vinício Carrilho Martinez (Dr.)[1]

Institucionalmente, o elemento jurídico mais efetivo do Estado Moderno é a delimitação jurídica do próprio Estado. Mas, que delimitação é esta?

Para a teoria contratualista, o principal elemento jurídico de configuração do Estado é o próprio contrato social e político que lhe deu origem: seja como vontade da maioria, seja como “vontade geral” – dialeticamente, o Estado é um organismo político superior à mera soma das vontades individuais.

Historicamente, devemos lembrar das limitações jurídicas trazidas pelas declarações de direitos, com início na Carta do Rei João Sem Terra, passando pelo Habeas Corpus (1679) e, é óbvio, pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. Portanto, se olharmos pela história, veremos que os direitos civis transformaram o Ocidente no que conhecemos hoje em dia. Sem os direitos civis não haveria cidadãos, apenas súditos obedientes ao rei. Com o habeas corpus, ainda no Renascimento, como garantia de ir e vir, o cidadão comum não mais poderia ser perseguido pelo Estado, sem fundamento e ordem legal. Os direitos civis nasceram como direitos negativos do Estado; para o cidadão ter mais direitos era essencial retirar atribuições de poder do Estado. Neste fluxo do liberalismo clássico, menos poder estatal e mais liberdade individual.

Como direitos fundamentais, foram conclamados os direitos de liberdade e, ao mesmo tempo, os direitos que impunham restrições ao poder do Estado. Para nós, olhando do presente para o passado, asseguramos que são direitos de futuro, porque estão no presente (não apenas como consciência) e do passado trazem uma sombra como inspiração. A partir do critério da liberdade, para o Estado sempre foram “direitos negativos”, como obrigação de o Estado não-fazer: não-agir contra seu povo, não vilipendiar direitos e, positivamente, agir o próprio Estado para impedir que indivíduos ou forças políticas atentem contra a liberdade. Primeiro, o Estado é impedido de agir contra a liberdade, depois é estimulado para aprimorar a liberdade.

Os direitos de igualdade, já marcados na primeira geração dos direitos civis – igualdade entre as classes sociais dominantes (aristocracia e oligarquia) e a burguesia ascendente –, teve de esperar até a Revolução Francesa para se sagrar. Neste novo contexto insurgiu até uma Declaração da Mulher e da Cidadã. Depois, teve continuidade o fluxo de “direitos negativos”, restritivos em relação ao poder do Estado e aí já entramos no século XIX, com a proclamação do Estado de Direito. Nesta nova roupagem, o moderno Estado de Direito tinha por obrigação acatar e defender a divisão de seus próprios poderes. A maior segurança à liberdade do cidadão estaria na divisão do poder central. É como se o Estado de Direito aplicasse a máxima de Maquiavel (dividir para conquistar) e assim a divisão dos poderes serviria para a conquista da República e aprofundamento da democracia parlamentar.

De acordo com o pensamento jurídico formulado na Alemanha, como regra que obrigava ao Estado ser alvo de seus próprios direitos – além de trazer as cláusulas pétreas –, o Estado de Direito formal/liberal logo se viu forçado pelos movimentos populares e socialistas. No início do século XX, com a Revolução Russa – embalada pela Revolução Mexicana[2]–, os direitos sociais e de igualdade plena foram elevados à plena potência. Vejamos dois dos casos clássicos e emblemáticos no direito constitucional.

Direitos Fundamentaisde Primeira Dimensão[3].

Constituição Mexicanade 1917

Constituição de Weimarde 1919[4]

Proibição à escravidão

Art 2º

_

Princípio do juiz natural e proibição de juízo de exceção

Art. 13

omissa

Devido processo

Art. 14 § 1º

_

Vedação ao exercício arbitrário das próprias razões

Art. 17

omissa

Acesso gratuito ao Poder Judiciário

Art. 17 § 1º

_

Vedação de prisão por dívida

Art. 17, § 3º

_

Princípio do "non bis in idem[5]" em matéria criminal

Art. 23

omissa

 

A não-negação explícita aos juízos de exceção seria o prisma que se projetaria após a vitoriosa campanha eleitoral do Partido Nacional-Socialista na Alemanha pré-nazista (1933)[6].

Todo o século XX foi marcado por idas e vindas nas garantias e na afirmação histórica dos direitos humanos; em todo caso, trata-se de um processo irreversível, próprio da condição humana. Neste sentido, os “novos direitos” entraram para a história como conquista social. Uma das diferenças para o passado é que a movimentação política em torno dos direitos era sempre violenta, revolucionária e hoje são conquistas mais argumentativas (ainda que se enfrente a violência da intolerância).

Atualmente, são conquistas argumentativas porque a “argumentação legal, racional, legítima” transforma uma requisição limitada de direitos, muitas vezes vinculada a determinado grupo de interesse, em conquistas coletivas de direito. A legitimação jurídica moderna, portanto, é democrática, tem uma base muito melhor definida juridicamente, esclarecendo-se o que é o direito. A movimentação social em torno do direito, como foi dito, não é revolucionária, é espasmódica, fixa em torno de interesses bem definidos. Essa modificação do processo jurídico coincide com a saída do povo das ruas, poucas são as mobilizações para a conquista de direitos em que se ocupe a praça pública, mas grande é o debate sobre a validade e a posterior validação desses direitos na ordem jurídica, sobretudo a partir das mídias e das universidades.

Genericamente, pode-se dizer que a Constituição Política, ao precisar uma definição ao Poder Político, concomitantemente, delimita o alcance deste poder, sua divisão e distribuição de funções administrativas e as competências internas, indica as fontes de sua legitimidade e os objetivos gerais a que se presta.

A institucionalização do Poder Político

A concepção jurídica definidora da regulação do Poder Político mais conhecida é denominada de Teoria da Autolimitação do Poder, em que o poder é regulado, limitado pelo direito criado pelo Estado, antes apenas como forma de dominação dos cidadãos e hoje, acima de tudo, como fonte jurídica do poder. Isto é, a fonte jurídica do poder é uma lei anterior e se supõe que esta lei esteja de acordo com o senso social de aceitação e de legitimação do poder. Se a lei serve para limar a ânsia e a margem de ação dos indivíduos, deverá ainda mais regular o exercício do poder. Em suma, o Direito deve proteger a sociedade do arbítrio:

Na fase atual da vida das sociedades, os dois elementos do Direito – a coação e a norma[7]– são insuficientes para criar o que chamaremos o Estado Jurídico. Falta-lhe ainda um elemento – a norma bilateralmente obrigatória – em virtude do qual o próprio Estado se inclina diante das regras que editou e às quais de fato concede, enquanto existirem, o império que por ato seu lhes atribuiu. É o que chamaremos a ordem jurídica[...] O Estado ordena, o súdito obedece [...] A linguagem compreendeu bem este fato, quando designou a injustiça do Estado pelo nome de arbítrio (Willkür). O arbítrio é a injustiça do superior; distingue-se da do inferior, porque o primeiro tem a força a seu favor, ao passo que o segundo a tem contra si [...] Noção puramente negativa, o arbítrio supõe como antítese o direito, de que é a negação: não há arbítrio, se o povo ainda não reconheceu a força bilateralmente obrigatória das normas jurídicas [...] Acompanha, pois, a todo princípio de direito a segurança de que o Estado se obriga a si mesmo a cumpri-lo, a qual é uma garantia para os submetidos ao Direito [...] Não só se trata de conter a onipotência do Estado mediante a fixação de normas para a exteriorização de sua vontade, senão que trata de refrear-lhe mui especialmente, mediante o reconhecimento de direitos individuais garantidos. Esta garantia consiste em outorgar aos direitos protegidos o caráter de imutáveis (Menezes, 1998, p. 70-71 – grifos nossos).

 

            De modo claro, pode-se ver como a regulação jurídica da teoria contratualista, ou seja, o contrato político que instigou a formação do Estado – como organização do poder –, seria em seguida ele mesmo enxertado de normas jurídicas a fim de proporcionar limites ao Poder Político, bem como definir com clareza os objetivos do Estado. Do contrato político ao contrato jurídico; da política ao direito; da força política às Cartas de Direitos; do Poder Constituinte à Constituição. A teoria finalista, ainda que sob o contrato, seria regulada pelo direito positivo e não somente pela legitimação política – esta evidentemente inserida na teoria contratualista.

            Enfim, será esse o maior ou melhor sentido exposto na própria suposição da personalidade jurídica do Estado (ou fase atual em que se encontra a teoria da finalidade jurídica do Estado de Direito) e que corresponde à capacidade ou condição suficiente para transformar as pluralidades sociais em uma determinada unidade político-jurídica global (transportando as individualidades ao social): do querer individual ao fazer pelo social (a República) e sem que se promova qualquer tipo de sujeição[8]. O transporte da personalidade (que é uma condição individual prevista no Direito Privado – Direito Civil) para o Estado[9]não subentende exatamente a total abstenção ou ausência de ação individual:

O Estado, diz Lapradelle, é uma “realidade do mundo jurídico. Povo, nação, são seres vivos. O Estado que nasce e morre com um povo, uma nação, e que vive neles e por eles, não é senão o seu reflexo no mundo do Direito, sua expressão no circulo das concepções jurídicas: ideia que seria uma ficção se, atrás do Estado, não existisse essa realidade distinta, o povo, a nação e essa necessidade não menos real de garantir-lhes a segurança pelo Direito...Se o Estado é uma pessoa jurídica, não é porque seja uma pessoa física, e sim porque a nação que ele representa e exprime é uma pessoa social” (Azambuja, 2001, p. 118-119).

 

Ou ainda: se o Estado é a pessoa política (jurídica) organizada pela nação, pois, atribuiu-se personalidade jurídica, então, o Estado passa a representar a nação e seu povo. Seguindo-se isto, poder-se-ia concretizar a noção jurídica do Estado nesta dupla ideia fundamental: o Estado é uma pessoa coletiva (ente político) e uma pessoa soberana (ente jurídico). No Estado de Direito, portanto, o Direito já é resistência à opressão do(s) poder(osos) e ao abuso do(s) indivíduo(s), a exemplo de que todo e qualquer direito individual não deve prevalecer quando em face dos direitos públicos. A limitação do poder pelo direito implica, portanto, em que os elementos políticos do Estado conhecerão efeitos limitadores por parte de elementos jurídicos que serão agregados a este mesmo Estado.

A ciência social como teoria política

O Estado de Direito, sobretudo no modelo de Voh Mohl (Canotilho, 1999) seguido por Malberg (2001), é uma forma de controle político e, mais especificamente, da chamada institucionalização da “regra da bilateralidade da norma jurídica”. Esta concepção republicana do poder é compartilhada pela ciência do direito de Jellinek (2000), ao expor a urgência de se configurar a Teoria da Autolimitação do Estado. Na versão clássica de Zippelius corresponde ao Estado de Direito: “a obrigação de criar e manter determinadas instituições públicas” (1997, p. 377). Em outras palavras, o mesmo será dito ao se definir a base jurídica da soberania popular: “a ‘legalidade da administração’, e, como sua consequência, direito dos súditos contra o Estado como tal, ‘direitos subjetivos, públicos’, e limites legais à administração” (Radbruch, 1999, p. 167-168).

como se vê, o direito é uma teoria do poder ou uma apresentação especial da própria teoria social e política, quando constrói modelos de Estados, organiza e delimita a ação política. A questão está em diagnosticar, cientificamente (com o apoio de outras ciências), de que poder se trata, o quão distantes estão Estado e Sociedade, a que se presta o poder estatal. Realmente predomina o direito consensual como suporte da legitimidade da dominação?

Com isso, pode-se tramar a perspectiva complexa do poder social ou contentar-se com o Leviatã (mesmo que modernizado pelo Estado de Direito). Será este Estado capaz de articular a Justiça Social ou lhe basta definir conceitualmente, em pseudo-cientificidade, as instâncias do Judiciário como poder? O que é Justiça, afinal, no século XXI? Qual será o objeto do direito, no Estado Super Moderno: a Justiça ou a norma jurídica?

            Enfim, se a política institui poder, o Estado subentende organização – e o direito será o meio legítimo e efetivo dessa transformação da política no próprio direito (Heller, 1998). O elemento jurídico de conformação do Estado, portanto, limita ou reestrutura a soberania interna do Estado, à medida em que impõe juridicamente nova forma de relacionamento entre o Estado e o cidadão.

 

Bibliografia

AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. 41ª ed. São Paulo : Globo, 2001.

BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política: a filosofia política e as lições dos clássicos. (Organizado por Michelangelo Bovero). Rio de Janeiro : Campus, 2000.

BORJA, Rodrigo. Enciclopedia de la Politica. (2ª ed.). México : Fondo de Cultura Económica, 1998. 

CANOTILHO, J. J. G. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 4. ed. Lisboa: Almedina, [s.d.]

______ Estado de Direito. Lisboa: Gradiva, 1999.

HELLER, Hermann. Teoría del Estado. 2ª ed. México : Fondo de Cultura Económica, 1998.

JELLINEK, Georg. Teoria General del Estado. México : Fondo de Cultura Económica, 2000.

LLOYD, D. A idéia de lei. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

MALBERG, R. C. de. Teoría general del Estado. 2. reimp. Cidad México: Facultad de Derecho/UNAM : Fondo de Cultura Económica, 2001.

MARTINEZ, Vinício Carrilho. Teorias do Estado: metamorfoses do Estado Moderno. São Paulo : Scortecci, 2013.

MENEZES, Aderson. Teoria Geral do Estado. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998.

RADBRUCH, Gustav. Introdução à Ciência do Direito. São Paulo : Martins Fontes,1999.

ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria Geral do Estado. 3ª ed. Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.

 

 



[1]Professor do Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Rondônia.

[2]A partir de 1919 o marco jurídico do Estado de Direito seria indelevelmente insculpido pelos estigmas jurídicos da Constituição de Weimar, na Alemanha.

[3]Consulte-se, em:  http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9014.

[4]Como se sabe, a Constituição Mexicana, de 1910, a Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado, na Rússia revolucionária (socialista), de 1918, e a Constituição de Weimar, de 1919, constituem os ícones do Estado Social.

[5]Ninguém poderá ser punido mais de uma vez por uma mesma infração penal.

[6]Ironicamente ou em busca de precisão cirúrgica para o dogmatismo nazista, a fim de se auto-referendar e também como mecanismo de autodefesa, não é ninguém menos do que Carl Schmitt quem saiu em defesa da Constituição alemã de 1919.

[7]É de se aceitar a análise de que o Direito realmente aceito – reconhecido como valor, partilhado nas práticas sociais – acaba por afastar a incidência da coerção. Sob esse prisma, Direito e coerção são antagônicos, excludentes.

[8]Aliás, diz-se acertadamente que, ao se remover toda forma de sujeição, promove-se automaticamente a iniciativa e a busca do consentimento, da legitimidade.

[9]Direito Público como corruptela do Direito Privado.

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