Segunda-feira, 19 de agosto de 2013 - 14h39
Vinício Carrilho Martinez (Dr.)[1]}
O chamado Estado Democrático de Direito, como adotado no Brasil, na CF/88, é uma conjunção bastante clara do Estado de Direito e da democracia. Como resultante do processo histórico do pós-Segunda Grande Guerra, tem na Constituição de Bonn (1949) a definição democrática para a definição do Estado. Inicialmente, podemos resgatar o Estado de Direito que assevera como princípios (cláusulas pétreas, no Brasil) o insuperável império das leis, assim como destaca a necessária divisão do poder e o enunciado e as garantias dos direitos individuais. (Clique AQUI e leia este arquivo em PDF).
Democracia e Direito
Na luta pela limpeza do fascismo de Franco, na Espanha, e de Salazar, em Portugal[2], foram editadas as duas principais constituições europeias de consagração democrática, ética e com impeditivos claros aos regimes autocráticos. Daí chegarmos a um Estado de Direito Socialista, depois que este foi democratizado (2ª geração do Estado de Direito – quando se assegurou a democracia entre as cláusulas pétreas). É como se fosse um caminho político necessário, determinado, legítimo, independente, e previsto anteriormente, neste que seria o curso histórico presente no ideal socialista. Portanto, as garantias institucionais serão também garantias contra a degeneração do Estado de Direito, a produção social da injustiça institucional e social, ou em desfavor da formação do Estado de não-Direito. O conceito de Estado Democrático de Direito (como empregado usualmente no Brasil) deriva de uma (re)interpretação do Estado de Direito Democrático[3]. Como se vê na Constituição Portuguesa:
Artigo 2.º
(Estado de direito democrático)
A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa (ortografia original).
De acordo com Manuel Cavaleiro Ferreiro (1997), há uma relação mais orgânica, estrutural entre Estado de Direito e Direitos Humanos. Para o professor português:
A positivação de direitos fundamentais torna-os mais precisos, e permite a sua garantia pela força dos Estados, ou da sociedade internacional. Mas a proliferação constante do seu número suscita novos problemas, em especial o da sua coordenação e hierarquização. Qualquer novo direito implica a limitação ou contenção de outro direito. A falta dessa coordenação e hierarquia pode conduzir à diminuição da sua vitalidade, ou ao abuso anárquico, que se traduz no pessimismo, hoje já tão florescente, e em que os homens como as sociedades são frequentemente vítimas do eufórico entrechoque dos seus direitos e funções [...] O direito ao trabalho, à habitação, à cultura, à saúde, não são direitos que o Estado deve respeitar; são missões ou tarefas que deve prestar. Mais do que direitos do homem, são fins que o Estado se propõe ou deve propor. Esses fins, avassalando cada vez mais a organização da sociedade e o seu controle, soergueram e inflaram o Estado de tal guisa que já não é a espontaneidade social que move ou pode mover, a não ser tímida e brandamente, o Estado, mas o Estado que se arroga a onipotência de modelar projetos de sociedade, de destruir a recriar instituições e estruturas de vida coletiva (Ferreiro, 1997, p. 92-93).
A judicialização dos direitos sociais, portanto, deve impulsionar o Estado na busca da prestação do serviço público e à sociedade como primeira interessada. Ainda com Bonavides (1985):
O problema da “juridicização” dos direitos sociais se tornou crucial para as Constituições do Estado Social. Cumpre, pois, na busca de uma solução, observar toda essa seqüência: reconhecer a vinculação constitucional do legislador a tais direitos, admitir que se trata de direitos de eficácia imediata, instituir o controle judicial de constitucionalidade e, por fim, estabelecer mecanismos suficientes que funcionem como garantias efetivas de sua aplicabilidade (p. 347)[4].
De certo modo, esse caminho constitucional já foi percorrido, mas apesar da CF/88 assegurar educação e saúde públicas, por meio das garantias sociais constitucionais (efetuando-se a juridicidade) e ainda responsabilizar os maus gestores públicos, resolveu-se somente o aspecto quantitativo do problema (ao invés do ensino público, obrigatório e gratuito, por exemplo) e sem que discuta a qualidade de tais serviços (educação e saúde públicas de qualidade). O problema, nesta ordem de argumentação, portanto, não se restringe a questões teóricas, jurídicas, constitucionais ou dogmáticas, mas se dirigem sim aos movimentos e sinalizações perpetradas pelo Estado. Assim, alegar que os direitos fundamentais perdem efetividade em virtude do seu próprio florescimento (dos direitos individuais aos direitos sociais) é superestimar questiúnculas jurídicas sem observar a realidade. É preciso, pois, arejar pelo caminho da democracia, pela intensificação da participação popular, porque o Direito é, antes de tudo, uma abertura produzida na estrutura estatal pelas demandas sociais. Como vimos, o Estado Democrático de Direito é resultado de longas e profundas transformações históricas e políticas, ao mesmo tempo em que deveria produzir, cotidianamente, uma cultura jurídica baseada na mediação e na conciliação dos conflitos – especialmente os conflitos sociais, quando se propõe a realização da Justiça Social.
O Estado Democrático de Direito Social deveria estar fortemente marcado pelo sentido e pelo emprego do que se chama de ethos público: isto é óbvio, mas apenas em regimes de governo realmente democráticos e republicanos, tanto na observância real do Estado de Direito quanto na prática política derivada da verificação das regras mínimas do Estado Democrático. Por isso, entendemos que o ethos público cria vínculos sociais efetivos e só assim, portanto, haverá significado material no uso da expressão “Estado Democrático de Direito Social”. Como se vê, só haverá alguma realidade na apreciação do conceito se a finalidade em destaque for a própria sociedade e não o Estado no sentido formal e burocrático, tão presente na visão monista do direito: como um fim em si mesmo e regulador de todo o Direito. Não há Estado Democrático de Direito sem a vivência constante e natural da República, da mesma forma que o Estado Democrático de Direito Social tem uma finalidade social estampada em sua origem: a sociedade é sua marca registrada e não uma Razão de Estado petrificada em laços de sangue nacionalistas[5]. Nas bases históricas do Estado Democrático de Direito há uma força dialética que, acredita-se, possa transformá-lo novamente – agora, de conceito de Estado mais bem elaborado de todos os tempos em práxis política popular. Realmente, a história é feita de nexos e convergências, no sentido que adotamos no texto, podemos dar como exemplo uma convergência que veio se tecendo ao longo de todo o século XX. Mas, é bom saber que esta ampla convergência não implica na ausência de divergências, às vezes, tão grandes que somos levados a visualizar somente o antagonismo e as rupturas – não é o caso também de irmos à frente nesta linha de abordagem. Por sua vez, como Estado Democrático de Direito Social, temos o mesmo sentido expresso pelas constituições de Portugal (1976) e da Espanha (1978), com destaque para o ganho de humanização do direito, o reflexo do processo de aprofundamento civilizatório e a inculcação de valores jurídicos que exigem a eficácia jurídica (eficiência, fruição social) dos direitos fundamentais sociais.
Direitos fundamentais sociais
No Estado Democrático de Direito Social, os procedimentos institucionais e jurídicos, que nada mais são do que os processos institucionais legítimos e regulados pelo Estado, mas exigidos pelo povo, passam por mudanças qualitativas quando comparáveis ao Estado Liberal. Uma vez que no chamado “individualismo jurídico” a legitimidade se dá por meio de processos individuais (“um conflito, um processo; uma ação, um autor”); não obstante, as necessidades sociais apontem para uma “coletivização dos conflitos” (direitos e ações coletivas).
No Estado Democrático de Direito Social os direitos fundamentais também têm natureza negativa (para conter o abuso de poder), mas procura-se acima de tudo afirmar a dignidade da pessoa humana. Na acepção filosófica Iluminista (Kant), o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana é perquirido com o respeito à tolerância religiosa (Locke), e à liberdade de expressão e de propriedade. Com Rousseau, no entanto, a propriedade privada, deslocada de sua função social, pode ser um impedimento da concretização da soberania popular. Para que a lei seja legítima, limpa de ranços classistas, o povo precisa não apenas participar de sua feitura, mas, além disso, ter capacidade intelectiva (educação) para compreender a característica teleológica do direito: quais os efeitos jurídicos possíveis? Que impacto as novas leis terão em minha vida e na organização da sociedade? Como ter consciência para lutar pelo direito sem liberdade para cultivar a razão?
Entre natureza e cultura, Rousseau (1712-1778) conseguiu atar moral e política: o homem é livre e essa liberdade é radical — nisto somos todos iguais. Só pode haver igualdade entre homens livres para cultivar a razão. Sua base é a igualdade política e educacional:
Porque a igualdade dos cidadãos implica a igualdade dos indivíduos em relação ao saber e à formação. Surge enfim, a questão do tipo de educação do cidadão assim definido. Essa educação não pode mais simplesmente consistir numa informação ou instrução que permita ao indivíduo, enquanto governado, ter conhecimento de seus direitos e deveres, para a eles conformar-se com escrúpulo e inteligência. Deve fornecer-lhe, além dessa informação, uma educação que corresponda à sua posição de governante potencial (Canivez, 1991, p.31).
Uma proposta de educação para a tolerância deve privilegiar o regime jurídico do Estado Democrático de Direito, e alertar, sobretudo, para a dificuldade que se impõe para a manutenção do mesmo Estado Democrático de Direito, incluindo o coletivo dos Direitos Humanos (art. 4º - II da CF/88). Teórica e historicamente, essa perspectiva consensual (ética) de ver a política, Bobbio (1992) analisa como sendo a que deu origem ao Estado Democrático de Direito. Coincide também com o aparecimento do cidadão moderno, único objeto da defesa das regras democráticas, na verdade como sujeito de direitos não disponíveis pela força do Estado, enfim, o reino do status legal e da legitimidade popular[6]. Pois, basta mencionar que não há o menor sentido em se falar de tolerância no plano da política (ética consensual) se não se promove e garante de forma plausível a participação popular. E se é certo que a tolerância só se dá em face da existência do Outro, instituída por meio de sua intervenção, o mais difícil é verificar em sua estrutura interna o que há de educacional.
Afinal, não se pode esquecer que, para Rousseau, na natureza, o homem é inocente[7]: desconhece o bem e o mal[8]. A própria bondade exige muita maturidade, pois o sujeito precisa literalmente colocar-se no lugar do Outro: a alteridade. Compreendê-lo é um esforço máximo exigido pela alteridade: “A consciência é a voz da alma, a paixão é a voz do corpo” (Huisman, 2001, p. 841). Por sua vez, esta dualidade resultou do “ter que fazer-se como homem”, de nosso precedente histórico-antropológico na busca pela perfectibilidade[9]. De qualquer modo, o devir exige o Outro, e isto induz ao devir social: nada somos, senão em sociedade. Porém, este nosso aprimoramento moral ainda não ocorreu porque nós carregamos uma falta grave, um transtorno que nos impele como um “funesto acaso” (a propriedade). Mas, Rousseau dirá que não há perversidade original, intrínseca no coração humano: nossa natureza está tão-somente adormecida no coração. Portanto, é como reconciliar-se com o Outro: “Qualquer um que tenha coragem de parecer o que é torna-se cedo ou tarde o que deve ser” (Huisman, 2001, p. 842).
Então, no ato de contratar com outros homens, abrindo mão da liberdade natural, não nos pomos a ferro, como ato deliberado de abandono da razão, e sim buscamos uma forma mais legítima de organizar a sociedade e o poder: “As palavras escravidão e direito são contraditórias, excluem-se mutuamente” (Rousseau, 1987, p. 29). O contrato é uma aposta social que os cidadãos fazem em seu Estado: “Haverá sempre grande diferença entre subjugar uma multidão e reger uma sociedade” (Rousseau, 1987, p. 30). Esta ideia de legitimidade contratual é profundamente moderna e contemporânea, no sentido de ser capitalista, pois os contratos a partir de então seriam estabelecidos entre duas partes idôneas, autônomas (com objeto lícito) e com certa segurança jurídica de que um dos envolvidos não obteria vantagens indevidas sobre os demais: as chamadas cláusulas draconianas ou leoninas. Então, podemos dizer que Rousseau queira ver estabelecidas as bases do contrato legítimo (privado ou público):
Vê-se, por essa fórmula, que o ato de associação compreende um compromisso recíproco entre o público e os particulares, e que cada indivíduo, contratando, por assim dizer, consigo mesmo, se compromete numa dupla relação: como membro do soberano em relação aos particulares, e como membro do Estado em relação ao soberano [...] Desde o momento em que essa multidão se encontra assim reunida em um corpo, não se pode ofender um dos membros sem atacar o corpo, nem, ainda menos, ofender o corpo sem que os membros se ressintam. Eis como o dever e o interesse obrigam igualmente as duas partes contratantes a se auxiliarem mutuamente... (Rousseau, 1987, pp. 34-35)[10].
Outra passagem retrata a pressão da vontade geral:
A fim de que o pacto social não represente, pois, um formulário vão, compreende ele tacitamente este compromisso, o único que poderá dar força aos outros: aquele que recusar obedecer à vontade geral a tanto será constrangido por todo um corpo, o que não significa senão que o forçarão a ser livre, pois é essa a condição que, entregando cada cidadão à pátria, o garante contra qualquer dependência pessoal. Essa condição constitui o artifício e o jogo de toda a máquina política, e é a única a legitimar os compromissos civis, os quais, sem isso, se tornariam absurdos, tirânicos e sujeitos aos maiores abusos (Rousseau, 1987, p. 36).
Isto fará de Rousseau também um precursor do pensamento social moderno: “para termos uma sociedade, não basta que se agrupem os homens, sendo necessário que os liames entre eles estabelecidos se tornem deles independentes e a eles venham a impor-se coercitivamente”. (Machado, 1987, p. 30). Além disso, temos a noção de síntese social que dá base à sociologia moderna: “...para a qual o individual e o coletivo são simples aspectos especiais de uma mesma realidade” (Machado, 1987, p. 35). Sem isso, sem a liberdade legitimamente assegurada pela vontade geral, todo contrato (público ou privado) seria passível de ilegalidade e de ilegitimidade. O governo justo e legítimo é aquele em que a soberania popular está presente no contrato social legítimo: “Se a liberdade natural, no estado civil, transmuta-se em liberdade convencional, é bem de ver que a desigualdade natural (física e mental) não pode transformar-se em desigualdade social, salvo numa perversão do contrato”[11]. A legitimidade e a Justiça Social, na definição de Rousseau, portanto, formam o objetivo central do contrato social.
De todo modo, no Estado Democrático de Direito Social, um novo conceito é inserido: o de justiça social. Pois a soberania, no dizer do constitucionalista suíço Fleiner-Gerster, deve ser profunda. Assim, para que se concretize a pretendida soberania popular, o sujeito coletivo de direitos (sindicatos, movimentos sociais) é quem detém a legitimidade, sendo compreendida não só com o reconhecimento, mas também com a percepção da capacidade teleológica da ordem jurídica: a ordem jurídica democrática não mais pode permitir a incursão de leis que não sirvam ao amplo interesse social. Os sujeitos coletivos não apenas devem participar de modo crescente na formulação dos direitos sociais, assim como adquirir cada vez mais consciência de sua responsabilidade na formulação da lei. E isso, certamente, leva-nos a pensar continuamente na atuação dos lobbies ou grupos de pressão junto ao Parlamento. Decorrentes dessa pressão política, sem a devida maturação, as leis são realmente legítimas, justas?
Quando se projeta a capacidade transformadora da própria norma jurídica (efeito teleológico do direito) que deve, inconteste, defluir da democracia balizada na cidadania democrática, temos por reflexo a soberania popular; sendo que esta se exerce pelas garantias institucionais, com respaldo nas políticas públicas e no respeito aos direitos individuais e sociais, como medidas jurídicas conferidas pelo poder constitucional supremo. Portanto, o ethos público,a República,integraliza todo o conjunto de direitos humanos. No plano externo, a soberania (já controlada internamente pela ordem jurídica democrática) ainda será dirigida pela dignidade que se pauta na construção de um direito humano internacional e exercido pela coletividade, globalmente, visando à máxima proporcionalidade e isonomia possível. Em assim sendo, a Justiça Social só se concretiza (se e) quando os institutos que compõem o poder estatal realizam sua função social, que é de solucionar (e não agravar) os conflitos coletivos.
Direito e Justiça Social
Esta junção entre direito e justiça, no último século, recuperou os principais institutos do Estado de Direito e do socialismo jurídico, na procura por uma articulação entre igualdade e liberdade. Na longa trajetória do Estado de Direito se afirmam muitos elementos, mas destaquemos alguns, como: liberalismo (remédios jurídicos); luta pelo anti-colonialismo; afirmação dos direitos civis (liberdade); abolicionismo (isonomia); Desobediência Civil; formação do Estado Constitucional (com constituições e/ou declarações de direitos); regra da bilateralidade da norma jurídica; formalismo jurídico[12]; devido processo legal (due process law); Estado-Juiz; autolimitação do Poder Político; igualdade formal; principiologia (Princípios Gerais do Direito).
A partir de meados do século XX – sobrevivendo, inclusive, a décadas de neoliberalismo globalizado –, o Estado Democrático de Direito Social é, concomitantemente, herdeiro e revolucionário do Estado de Direito, uma vez que preserva, incorpora e redimensiona direitos e institutos do liberalismo jurídico tradicional. Por exemplo, as garantias e os direitos civis e individuais, ainda hoje essenciais, são redimensionados na forma dos direitos individuais-homogêneos (direitos de gozo individual, como a acessibilidade, mas que se coadunam a todos que se encontrem em situações semelhantes, similares). Desse modo, para definirmos o Estado Democrático de Direito Social temos de considerar o(a): Estado de Direito; Estado Democrático; Estado Republicano; Federalismo; Social Democracia (direitos coletivos); socialismo (direitos sociais); direitos humanos (direitos difusos); humanismo e repactuação social; Justiça Social; consequencialismo jurídico; ética pública; profissionalismo nos três poderes; aferição das consequências sociais dos erros e dos acertos das decisões judiciais (recall judicial); judicialização da política.
Sem dúvida, temos de considerar as condições sociais necessárias, determinadas e independentes. Mas, neste caso, esse Direito seria necessário porque há urgência em se buscar uma igualdade real mais intensa (no plano nacional, bem como nos aspectos econômicos e jurídicos), da mesma forma ainda seria: a) determinado pelas condições históricas concretas de cada povo; b) legítimo, porque em conformidade ao consenso social requerido (soberania popular); c)independente,umavez quenão depende unicamente da vontade dos grupos e das classes dominantes (Poder Constituinte); d) será previsto na Constituição, primeiro como direito à revolução[13]e depois como caminho constitucional rumo ao socialismo[14]– tendo-se aí outra modalidade de garantia institucional como reserva de justiça.
Outro aspecto fundamental é o fato de que o direito não é mais tido como prêmio, concessão ou outorga do Estado[15]– principalmente se tratamos da soberania legislativa -, pois que o chamado Estado distância[16]impõe o dever público de assegurar a soberania popular e a noção de Direito daí decorrente. De forma correlata, o Estado que não suporta a soberania legislativa e tão-somente decreta o Direito também se desobriga e a seus representantes e governos, extinguindo a própria relação direito-dever[17], mas agora em benefício unicamente estatal (e de quem o controle). Com isso, ainda ocasiona a solução de continuidade de seus próprios deveres e sem que à vontade legislativa do Estado se interponha uma ordem jurídica[18], não há como se falar em qualquer reserva de Justiça Social – de si mesmo e de todas as comunidades e/ou grupos sociais envolvidos.
Neste sentido, Comparato irá ressaltar a necessidade de entendermos as garantias institucionais como marcos históricos do direito moderno: “[...] o Bill of Rigthts criava, com a divisão de poderes, aquilo que a doutrina constitucionalista alemã do século XX viria denominar, sugestivamente, uma garantia institucional, isto é, uma forma de organização do Estado cuja função, em última análise, é proteger os direitos fundamentais da pessoa humana” (2001, p. 88-9). Desse modo, podemos dizer que há um Estado de Direito capitalista, burguês e de direita e outro Estado de Direito para a esquerda, de cunho socialista e voltado aos pobres[19]? Temos em Ferreiro uma politização negativa dos direitos humanos, pois que com tantas declarações já não sabe corretamente o que seguir, o que viria antes e o que deveria ser só um pano de fundo ou cumprido em segunda escala:
[...] a multiplicação dos direitos humanos pelo seu alargamento artificial, derivado da cumulação de ideologias, politizou em demasia as proclamações de direitos; tal qual multiplicação mingua a importância e relevo daqueles direitos que, diretamente ligados à natureza humana, são sustentáculo indispensável do próprio direito, e pela confusão de categorias jurídicas diversas no mesmo instituto, torna mais difícil a sua compreensão e aplicação (2003, p.p. 92-93).
As gerações de direitos humanos, para Ferreiro, só contaminaram as consciências e relativizaram suas aceitação e cumprimento:
Os novos direitos não só reabilitavam o Estado senão que emergiam por únicos capazes de emancipar a sociedade. Proclamando a dimensão social do homem como o valor mais alto, ao redor deles lavrava o mesmo fervor com que anteriormente se vira afirmar o princípio individualista do reconhecimento da anterioridade e superioridade do homem sobre o Estado, conforme se inferia dos chamados direitos de liberdade pertencentes à categoria clássica dos direitos fundamentais (Bonavides, 1985, p. 343).
Contudo, como infere o jurista brasileiro, radicado nos EUA, Mangabeira Unger, a relação entre direito e liberalismo não é uniforme, homogênea ou equilibrada socialmente. Na prática, há sim, um desequilíbrio ideológico e um (muito mais grave) ceticismo moral que fazem oscilar o Estado de Direito à direita ou à esquerda: “o estado de direito nada tem a ver com o conteúdo de normas legais” (Unger, p. 150-159 – grifos nossos). Esta sentença é definitiva: O Estado de Direito nada tem a ver com o conteúdo de normas legais. O que isto nos revela é a preocupação do jurista com o fato de que o Estado limitado ao pragmatismo jurídico e ao formalismo processual, sem que seus agentes percebam, é uma estrutura jurídica dominada pelas relações políticas prevalecentes.
Finalidade Democrática (ou organizativa) do Estado
Retomamos a questão da organização das finalidades políticas do Estado porque é a condição primeira afirmação da democracia e da justiça institucional, assim como corrobora a negação desse Estado de não-Direito, e mais exatamente porque é a finalidade precípua do Estado. Sob esse prisma jurídico-político democrático o Estado deve reunir, proporcionar, e salvaguardar os meios necessários para que toda relação política entre inimigos transforme-se numa relação jurídica (organizada, regulada, sistematizada) entre adversários. A principal finalidade política do Estado, neste caso, é contribuir para que toda relação política polarizada não se resolva pela eliminação/aniquilamento de alguma das partes envolvidas. A mudança na Razão de Estado (os fins justificam os meios) torna a política um quesito da vida comum do homem médio, quando o leva (por ação e consciência) a participar da vida publica. No Brasil, historicamente falando, nunca houve momentos fortes ou significativos de ficção dos conceitos-chave deste modelo de estado ilustrado[20]. Nos últimos 15 anos, também não inauguramos centros de imanência de políticas sociais e democráticas substantivas, como práticas inerentes à cultura e à sociedade brasileira; tampouco fomos capazes de refazer ou remontar os necessários valores e fundamentos transcendentes ao próprio modelo do Estado: republicanismo, direitos, liberdade, garantias, justiça real.
O Brasil é sempre um tema de prova
O Brasil é sempre um tema de prova porque, como dizem os especialistas, coloca-nos em situação delicada para responder questões complexas. Por exemplo, é uma questão de prova, chata, responder como é que o Estado de Direito não é uma realidade na vida comum do homem médio; mais estranho ainda é pensar que a soberania institucional do país é ameaçada constantemente pelo crime organizado e enraizado, o famoso Estado Paralelo. Por falar em soberania, como explicar que propriedades privadas na Amazônia, sob o controle secreto dos EUA, não permitem o acesso nem mesmo do exército brasileiro? Aliás, como explicar que o exército não reagiu frente à informação de que, nessas propriedades, encontram-se grupos paramilitares armados? Há restrição constitucional expressa quanto aos atentados contra o Estado Democrático de Direito: art. 5º, XLIV da CF/88):XLIV - constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático (in verbis).
Em todo caso, o Brasil é um país vibrante, tem uma cultura popular invejável em muitos aspectos: a miscigenação, apesar do racismo, serviu para mesclar genes e valores; assim como o sincretismo religioso que, apesar dos fundamentalismos, permite o ecumenismo e a convivência discreta entre as religiões. E isto acarreta um adensamento cultural significativo que permite nosso reconhecimento como povo e nação. A formação do Estado Patrimonial – em que a coisa pública é refém dos interesses mesquinhos das elites – é redundante e presente em muitas instituições políticas nacionais. Em que pese todo o esforço por configurar as salvaguardas institucionais dos bens públicos, conferindo um retrato jurídico bem delineado da personalidade jurídica do Estado, o descompromisso com a República é uma realidade político-institucional e também presente na vida comum do homem médio. Deste ponto de vista, há duas séries insuspeitas de desafios à maioridade institucional brasileira: cultivar valores democráticos, o pluralismo político, o respeito aos direitos das minorias e estimular a crença e a participação popular, como se fez no verdadeiro Estado Legal, à época da Revolução Francesa.
Temos, portanto, contas a acertar com o passado e com as promessas descumpridas para com o futuro. É preciso articular um projeto político-jurídico teleológico que reforce a legitimidade do Poder Político, o compromisso com a verdade, as justificativas institucionais que transformem a formalidade em Justiça Social e alimentem o consenso do povo com a lei. Uma das providências imediatas é estimular a Educação Pública, mas como conhecimento republicano, para que a política, para o povo, volte a ser o arete dos gregos antigos, a busca da excelência na condição humana e que transforme as potencialidades, a virtus, em ação republicana concreta. Isto permitirá que os governantes possam ser reconhecidos pelo povo como homens de virtù, como homens de bem, que têm fé na coisa pública, a exemplo do senador Suplicy, de São Paulo. O senador, como outros senadores e deputados, é um agente político; no conjunto geral, incorpora-se à categoria de agente público dotado de boa fé pública e de confiança. Os agentes públicos são investidos do direito de realizar fins específicos em nome do povo, começando pela promoção, defesa e preservação do interesse, dos recursos e dos bens públicos. Este princípio ético da Administração Pública é uma atribuição de outro instituto do direito público e que está presente na teoria finalista do Estado: prevalência do interesse público sobre o interesse privado. E este é o ponto mais frágil da cultura política brasileira.
Bibliografia
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[1]Professor do Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Rondônia.
[2]No dia 25 de abril de 1974, teve início a conhecida Revolução dos Cravos, em Portugal. À meia-noite, uma emissora de rádio tocou a música Grândula Vila Morena, e esta era a senha para a saída às ruas. Marcelo Caetano foi deposto e o general Antônio de Spínola assumiu o poder. Para comemorar o fim da ditadura, o povo saiu às ruas e distribuiu cravos (a flor nacional) aos soldados rebelados. O processo revolucionáro foi conduzido pelo Movimento das Forças Armadas(MFA), composto por capitãesque tinham participado na Guerra Coloniale que foram apoiados por outros oficiais, estudantes e pessoas comuns. Em 1973, tiveram início reivindicações corporativistas como a luta pelo prestígio das forças armadas e isto se estendeu ao regime político vigente.
[3]Observe-se que no Brasil inverteu-se o sentido dos termos, de Estado de direito democrático, para Estado Democrático de Direito. Em Portugal, entende-se que é preciso reforçar a atenção institucional à produção do direito democrático; no Brasil, construiu o sentido de que um Estado democrático produz o direito que se requer.
[4]É bom lembrar que o texto de Bonavides foi produzido às vésperas da Assembleia Nacional Constituinte.
[5]No Estado Democrático, de fato, a democracia é tão marcante da natureza jurídica estatal que se assegurou que a própria Razão de Estado estivesse contida por uma noção de soberania profunda, popularmente conduzida e regulada por meios democráticos, inclusivos, tolerantes e participativos. O que implica em dizer que os “fins democráticos não justificam os meios autocráticos”.
[6]Essa imagem do cidadão participativo, apesar de parecer nova, na verdade é uma tradição que veio da Grécia clássica (mais precisamente de Aristóteles). Porém, como se vê na seqüência da nota, diferentemente da Grécia, a cidadania moderna engloba as mulheres: “Para ser cidadão, diz ele, não basta habitar o território e poder pleitear seu direito diante dos tribunais. Porque os estrangeiros também têm essa possibilidade. O cidadão autêntico (em oposição às mulheres, às crianças e aos que são atingidos por atimia — degradação cívica total ou parcial por faltas graves) é quem exerce uma função pública: que ele governe, ou que tenha uma função no tribunal, ou que participe das assembléias do povo. A cidadania é, pois, a participação ativa nos assuntos da Cidade. É o fato de não ser meramente governado, mas também governante (Canivez, 1991, p. 30).
[7]Kant foi contemporâneo, profundo leitor e admirador de Rousseau. Kant herdou a idéia da fraternidade, e pensou diminuir a distância entre o papel do intelectual e a vida real do povo: o direito à educação.
[8]Rousseau parece ter aprendido com os próprios erros, pois quando muito novo acusou falsamente uma jovem criada (Marion) e esta acabou expulsa da casa em que ambos moravam. A percepção do erro e a sensação do remorso o acompanharam por toda a vida. Rousseau acreditava não ter feito isto por maldade, mas sim por falta de virtude.
[9]A característica da perfectibilidade, tão nítida no zoon politikón, constitui-se em um dos princípios da democracia, assim como o Princípio Pedagógico, pois só apreende a democracia no jogo democrático.
[10]Talvez, a maior diferença entre o Contrato Social de Rousseau e o Fato Social, de Durkheim, seja o fato de que para Rousseau há uma disposição em aceitar o que foi acordado e, assim, agir socialmente. Já para Durkheim, o pacto é imposto pela presença anterior, superior (hierarquicamente, por exemplo do Estado), exterior da sociedade em relação ao conjunto dos indivíduos. Então, neste caso, nem há a hipótese de algo ser acordado.
[11]Nota de Rousseau sobre os maus governos(1987, p. 37).
[12]O ato praticado por autoridade, administrativo ou político, tem de estar de acordo com a lei e seguir o rito precrito anteriormente, para ser considerado válido, eficaz e completo.
[13]Desde o Bill of Rights.
[14]A partir da Constituição Portuguesa de 1976.
[15]Não se trata da alegação da sanção premial, pois que não falamos da recompensa. Tampouco se trata do lance da sorte (a fortuna em Maquiavel), em que o advogado reza para que sua ação caia nesta ou naquela vara, pois sabe que o juiz lhe será condescendente no pedido.
[16]Emprestando esta noção, Canotilho (s/d, p. 244) define assim: “ O Estado de direito é uma forma de estado de distância (Kloepfer), porque garante os indivíduos perante o Estado e os outros indivíduos, além de lhes assegurar, positivamente, um irredutível espaço subjetivo de autonomia marcado pela diferença e individualidade”.
[17]Com a mera outorga, retornamos à fase anterior, simplesmente à relação dever-Direito, destacando-se o dever de obedecer ao Direito outorgado.
[18]Equivale à judicialização do poder político – em que o poder nu e cru passa a ser regulamentado, legalizado, legitimado, por alguma ordem jurídica reconhecida e aceita pelo povo.
[19]Sem que, com isso, confunda-se com o Welfare State. Também em Bobbio (1995).
[20]A expressão Estado Iluminista foi empregada pejorativamente para se referir ao Estado de Polícia, antecessor direto do Estado de Direito: o Estado colonizador da vida privada (Canotilho, s/d, p. 91).
Veremos de modo mais extensivo que entre a emancipação e a autonomia se apresentam realidades e conceitos – igualmente impositivos – que suportam a
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Vinício Carrilho Martinez (Dr.) Cientista Social e professor da UFSCar Márlon Pessanha Doutor em Ensino de CiênciasDocente da Universidade Federal de