Segunda-feira, 21 de outubro de 2013 - 18h50
De onde partem as nossas incertezas, medos, desconfianças e o descrédito que atribuímos aos outros, às instituições?
A assim chamada Pós-modernidadeé uma condição ou realidade que se interpôs com a crise da era moderna (a queda do Muro de Berlin é um símbolo), tendo-se desfeito elos com os conceitos e as estruturas da modernidade (identidade, soberania, territorialidade) e se afirmado com a consequente desvalorização dos elementos anteriormente predominantes.
Mas, o que é pós-modernidade?
A pós-modernidade também terá projetos?
Por exemplo, basta-nos pensar aonde foi parar o social na sociedade neoliberal — sob este aspecto, muitos ainda confundem a pós-modernidade com a modernidade tardia, revelando traços do passado. Mas o pós-moderno estaria limitado ao neoliberalismo? Parece que a resposta é mais complexa do que um simples sim ou não:
O pós-moderno sem dúvida traz ambiguidades — aliás é feito delas e deve ser criticado e superado. É isso que ele propõe: a prudência como método, a ironia como crítica, o fragmento como base e o descontínuo como limite [...] O anseio de uma justiça que possa ser sensível ao pequeno, ao incompleto, ao múltiplo, à condição de irredutível diferença que marca a materialidade de cada elemento da natureza, de cada ser humano, de cada comunidade, de cada circunstância, ao contrário dos que nos ensinam a metafísica e o positivismo oficiais [...] Creio que já seria uma vantagem e um alívio que o pós-moderno se apresente como um castelo de areia e não mais como uma nova Bastilha, um novo Reichstag, um novo Kremlin, um novo Capitólio. Apenas um castelo de areia, frágil, inconsistente, provisório, tal como todo ser humano. Um enigma que não merece a violência de ser decifrado (Sevcenko, 1987, pp. 54-55 grifos nossos).
Dentre tantas características da intitulada pós-modernidade, algumas são: incerteza, fragmentação, instantaneidade, instabilidade. Não é à toa que se fala em cidadão do mundo, como contraprova da desterritorialização. Do mesmo modo que se trata da imensa mobilidade social e profissional, com a intensa reinvenção dos sujeitos em suas atividades de trabalho, é visível como se incrementa a precarização do Mundo do Trabalho.
Em nome da inovação tecnológica, cada vez mais rapidamente se acentua a obsolescência, e isto agrava a crise ambiental. Porém, é uma era de contradições, pois ao passo em que ninguém escapa à massificação, crescem resistências populares contra o neoliberalismo acachapante, como na Multidão anônima, apartidária e que desafia a política tradicional. Ainda há uma tentativa de salvar do passado aquele apego à identidade[1].
No aspecto político, na procura da definição de um Estado Pós-moderno, pode-se dizer que, além dessas características, a insegurança (político-institucional) ganha força e se destaca. Isto ocorre porque o Estado – criado como instituto de exercício de monopólio jurídico e político – sofre com a pulverização dos atores e dos sujeitos políticos. A coletivização dos conflitos ainda não foi totalmente absorvida (rotinização) pelas instituições do Poder Político.
Somadas ao neoliberalismo, a globalização e a pós-modernidade formam um tripé. Entretanto, com a globalização sofreu de desordem institucional o próprio Estado e, com isto, modificou-se radicalmente o espaço público, a contar da força exercida pelo Poder Econômico, pela transnacionalização do capital, especialmente com a financeirização da economia e da volatilidade das garantias institucionais.
Também somos vítimas da confusão de valores, com descrédito e depreciação para todos aqueles que se dedicam a construir princípios, valores e conhecimento. Afinal, nada disso pode ser comprado ou consumido pelo marketing juvenil. Destaca-se nossa incapacidade atual de movermo-nos com segurança, mínima garantia de avaliação e validação objetiva. Resumidamente, é possível afirmar que, em virtude de uma série de mudanças mais ou menos profundas na realidade política, institucional e jurídica, em todo o mundo, têm-se falado e escrito de um suposto Estado Pós-moderno. De certo modo, pode-se pensar nisso, a começar da insegurança e da rapidez nas mudanças estruturais; por outro lado, como associar o Estado – centralizado, formado à base da Teoria da Soberania – aos aspectos diversos da pós-modernidade, iniciando-se pela dissolução, ironia crônica e dúvida como praxe. Porém, se o Estado Moderno foi formado a partir, exatamente, da negação do direito de sedição, como não ver na fragmentação pós-moderna uma ameaça ao Poder Heterônomo?
De todo modo, mesmo que se justifique advogar as propriedades de um Estado Pós-moderno, ainda temos muitas contas a acertar com a modernidade clássica. Temos um confronto direto entre a realidade movediça em que nos colocamos e as estruturas e condições globais de referência notadamente marcadas pelo instrumental clássico. Por isso, toda ideia pós-moderna precisa ser checada pelo antípoda moderno e assim se construiu este texto (não há nada mais pós-moderno do que a clássica afirmação de Marx de que “tudo que é sólido desmancha no ar”). Teremos uma apresentação inicial dos fragmentos do Estado Pós-moderno seguida de uma discussão dos referenciais sociais e políticos da modernidade clássica.
Estado Pós-Moderno
Inicialmente, basta-nos pensar nas guerras civis sem fim na África, nas ações de Estado que privatizam a segurança pública no Brasil, na guerra civil que se alastra pelo país afora e na afirmação do Estado Paralelo, com seus miseráveis, e no lumpemproletariado manipulado pelos criminosos do colarinho branco. O texto é uma provocação no bom sentido, a fim de que possamos repensar o quadro político-institucional altamente complexo, desconexo, turbulento que o modelo clássico do Estado Moderno – e do Estado de Direito – enfrentam na atualidade do brevíssimo século XXI. Temos que pensar que as guerras irregulares, o terrorismo, a luta de classes metamorfoseada em guerra civil (pelo lumpemproletariado) ou a guerra assimétrica das ruas convivem, lado a lado, com o golpe de Estado, o próprio Estado de Exceção, a sociedade de controle e o Estado de não-Direito como mecanismos de afirmação da Razão de Estado. Na verdade, ainda não está clara a associação, sem prejuízo da lógica, do chamado Estado Moderno com os desafios atuais.
Desde a manifestação da Razão de Estado – com Maquiavel ou com suas características totalizantes (soberania) como queria Hobbes, ou o Espírito Absoluto de Hegel (também o contrário, com a imposição do Estado de Direito a serviço da exploração de classe, em Marx); bem como a dominação burocrática de Max Weber e a ação do poder extroverso, de um Jellineck ou Carré de Malberg – não há mais Estado, desde que se aprimoraram as deflagrações da pós-modernidade e suas descontinuidades, volatilidades, descompromissos, desregulamentações?
Realmente, colocadas as coisas desse modo, não há como se falar desse Estado Pós-Moderno, afinal, são categorias antitéticas, antagônicas, excludentes em sua ontologia e epistemologia. Porém, quando pensamos, apenas a guisa de exemplo, que o Estado Moderno – na figura jurídica conhecida como Estado Penal – é capaz de substituir ou alternar o controle social aplicado com os sistemas panópticos (absolutistas), aplicando-se aos mais notáveis modelos de rizoma, em forma de controle social que se espraia e se enraíza na pele da cultura (como analisa Deleuze), então, é possível ver algo de novo no horizonte político. Este “novo”, no entanto, não é libertário, emancipador, alternativo, é apenas novo na conjugação das forças absolutistas da Razão de Estado e que, agora, valem-se dos fragmentos da pós-modernidade. Daí falarmos no Estado Pós-Moderno e suas vigilâncias e totalizações da vida comum do homem médio. Contudo, o que a pós-modernidade tem de mais ou menos comum, estando-lhe sempre presente e sendo-lhe sempre atuante?
Afora o sentido geral de se estar vivendo um período de nítida disparidade do passado, o termo com frequência tem um ou mais dos seguintes significados: descobrimos que nada pode ser conhecido com alguma certeza, desde que todos os “fundamentos” preexistentes da epistemologia se revelaram sem credibilidade; que a “história” é destituída de teleologia e consequentemente nenhuma versão de “progresso” pode ser plausivelmente defendida; e que uma nova agenda social e política surgiu com a crescente proeminência de preocupações ecológicas e talvez de novos movimentos sociais em geral (Giddens, 1991, p. 52).
Em todo caso, é oportuno ressaltar alguns dos traços e componentes da pós-modernidade: insegurança, instabilidade, incerteza, incompreensão, intolerância (no cenário político), inconstância, indefinição, indeterminação, além de uma certa incompetência, pois o conhecimento não mais envelhece, não cria rugas, sendo trocado muito rapidamente e poucos estão à altura de acompanhar intelectualmente a profundidade do conhecido produzido. Todavia, o que alguns chamam de pós-modernidade, outros apenas veem como reflexo prolongado da própria modernidade, um tipo de ultramodernidade, uma radicalização da modernidade, um para além da modernidade (não esgotada), sem ser pós-moderna. Poderia ser interpretado como um elo entre as duas fases, como uma sub-fase entre os clássicos modernos e a ausência de outras referências clássicas, já na era pós-moderna. Não é um misto entre ambas, mas só uma transição, um elo a mais que se apresenta. Sem dúvida é uma era perturbadora e que convida à reflexão aguçada, talvez exagerando — quanto às incertezas e mobilidades das respostas — a ideia de uma dúvida metódica, periódica, constantemente presente. Uma dúvida massacrante, pois quase não se tem tempo para relaxar e aproveitar, saborear o pouco que se aprendeu ou o que se sabe. Mas, a dúvida metódica não é um tema clássico de Descartes?
Pois bem, será que o pós-moderno rompeu com o racionalismo, com o cartesianismo por completo? Será que o mundo atual dominado pela razão instrumental é menos matemático, previsível, predizível do que supõe o pós-moderno? Este controle é o exercício pleno da inflexão do capital no século XXI. Portanto, uma racionalidade muito bem prevista pelo capital instalado. Antes de passarmos propriamente ao conceito clássico de pós-modernidade, como apresentado por Lyotard, vejamos mais uma demonstração de que o pós-moderno é só a alta modernidade que se anima a exigir mais e mais controle:
Não vivemos ainda num universo social pós-moderno, mas podemos ver mais do que uns poucos relances de emergência de modos de vida e formas de organização social que divergem daquelas criadas pelas instituições modernas [...] pode facilmente ser visto por que a radicalização da modernidade é tão perturbadora, e tão significativa. Seus traços mais conspícuos — a dissolução do evolucionismo, o desaparecimento da teleologia histórica, o reconhecimento da reflexividade meticulosa, constitutiva, junto com a evaporação da posição privilegiada do Ocidente — nos levam a um novo e inquietante universo de experiência (Giddens, 1991, p. 58).
Dussel traz um resumo da ideia de desbloqueio, desacordo que deve haver na base do diálogo – como verdadeiro caminho da comunicação e do conhecimento, isto é, como metáfora (no sentido grego de transporte ou caminho):
Estaria havendo uma certa cegueira para descobrir os possíveis elementos negativos, ou aqueles pressupostos que, como sabemos, sempre permitem a irrupção do desacordo (do não-acordo, do "desacordo", de Lyotard). Como ponto de partida gerador de toda uma nova argumentação. Em outras palavras, na racionalidade - até mesmo na de nível transcendental ou universal - seria indispensável incluir - como elemento de sua definição e como razão-de-ser crítica - a virtual "exterioridade" (em grau diverso) de cada pessoa, de cada participante dessa comunidade, como sendo um outro em potência: o Outro, não "um outro" diverso da sua razão, mas ao contrário, como sendo a "razão" do Outro; a outra razão que "interpela" e a partir da qual um princípio ou enunciado sujeito a ser desvirtuado pode chegar a ser retificado (Dussel, 1995, p. 61).
A função narrativa se dispersa em nuvens de elementos simbólicos, valendo-se do que seja pragmático. O homem perde ingenuidade, mas também se vê incapaz de projetar espaços comuns. Com o relativismo abundante, com teias e areis movediças, estamos cada vez menos sensíveis às análises das contradições. Afinal, avocar a consciência crítica acerca da realidade é uma postura moderna.
Modernidade
A Modernidade Tardia está nesta encruzilhada, é um conceito/realidade amplo e complexo — complexus: “algo que se tece em conjunto” (Morin, 2000) — de utopias/entropias; contradições e distopias; afirmações ou “promessas descumpridas da democracia e da modernidade” (Bobbio, 1986). Tanto é uma fase de retomada quanto de negação, de afirmação e de interrogações, mas, é do domínio do real ou, melhor dizendo, pertence ao mundo real/virtual[2].
Além disso, os bens culturais agora também poderão se movimentar com mais independência em razão da laicização e da secularização do espaço público. Isto é o que vemos com os indícios trazidos pelo tema insurgente da modernidade já no século XVII. Também por isso se prefere as expressões Ultramodernidade e Modernidade Radical (Giddens, 1991) à ideia de pós-modernidade (Sevcenko, 1987) ou mesmo Modernidade Tardia. A Modernidade Tardia, em uma ampla hermenêutica, ainda corresponde à mudança da luta por conservação em luta pelo reconhecimento (Honneth, 2003). Assim, é um mix entre negação e vir-a-ser; é a negação ou a véspera da utopia; é a entressafra entre o esperar, calcular (estratégia) e a ação (da tática à prática); é uma espera, mas como um quefazer: “Não te esperarei na pura espera / Porque o meu tempo de espera é um / Tempo de quefazer” (Freire, 2000 - frontispício). É um ir e vir pela história, a exemplo da entropia, que atua como eixo da Teoria do Caos (e da pós-modernidade: indeterminação, instabilidade, dúvida metódica), mas que tem suas bases na termodinâmica de Newton[3] (Prigogine, 2002)[4].
Portanto, não se trata nem da teleologia, nem do fim da história; sequer de uma filosofia da história ou mesmo da modernidade, uma vez que, todo o século XX e o breve século XXI indicam e fazem sobressair o realismo cotidiano das variadas formas de luta e de conflituosidades que cercam o poder no âmbito do Estado Moderno (tanto lá, no pós-Renascimento, quanto cá, diante dos dilemas da Modernidade Tardia). Se observarmos através de um largo lapso histórico, podemos dizer que a Modernidade Tardia remonta à Rota da Seda, visto que sem esta não teríamos o Renascimento, o Iluminismo, o Estado-Nação e o Mercantilismo como forças do capitalismo e da sociedade moderna.
Talvez, tendo-se algumas mudanças ou inversões mais bruscas na rota da luta pelo reconhecimento (agora perdendo terreno para a mera conservação do poder) — especialmente com a criação (legislação) de formas e meios de agir de exceção, no Iluminismo que já se via convertido em Jacobinismo — possamos dizer que lá onde havia um estado da Razão, veio a vigorar ainda mais fortemente uma Razão de Estado. Mais especificamente, datam de 1793 as primeiras bases do Estado de Exceção, e que tanto nos assombra desde então (Agamben, 2004). Entretanto, a chave teórica para o entendimento de seu alcance e dimensão iremos encontrar em meados do século XX, no esforço retórico-constitucional de Carl Schmitt (2006). Desse modo, ainda podemos analisar o trabalho em seu argumento central e, muito genericamente, quanto à metodologia empregada. Como visto, a racionalização burocrática auferida pela Razão de Estado, hodiernamente, é uma das vestes do Estado de Exceção Permanente vigente na ordem global da Modernidade Tardia.
O problema é que a instantaneidade também acirra a incerteza e a insegurança. Na formação da mentalidade se perde a confiança nos sistemas estáveis. De modo simples, esse conjunto de ação e de repouso que descrevemos, talvez se aproxime do que Bachelard denomina de paciência científica (a não-pressa em inquirir e debater com o tema), procurando-se na dúvida constante o caminho seguro para o crescimento do espírito científico.
Com o tempo, aprende-se a ruminar sem que os outros percebam — e ruminar essa verdade em construção é sempre um processo inquietante e prazeroso, como verdadeiro prato que não esfria. Desse modo, sempre teremos uma pesquisa quente e convidativa: aqui, comer não é gula, nem pecado, e nem há prato requentado. Como não se retira uma ideia original (produtiva e criativa) a fórceps, a pesquisa é feita em paz (não há angústia, só ansiedade), com o sujeito de bem com o objeto. Por isso, a ideia da força é substancialmente substituída pela força das ideias (parafraseando Florestan Fernandes): não vigora o argumento da força, mas sim a força argumentativa. Isto, é óbvio, é como saborear a força da verdade, e também é o que inebria ainda mais quem já se sente tão possuído por esse estranho e irresistível desejo do objeto. Entretanto, mesmo sendo um trabalho que estimula um desejo que nos arrebata, ao mesmo tempo, é lento e no melhor estilo pinga-gotas. Portanto, é esse trabalho de conta-gotas que deverá minar muito mais rapidamente as ditas verdades estabelecidas, até mesmo porque, quando ruir, será uma queda estrondosa. O que também evita o dissabor de que outra verdade retumbante seja apreciada em seu lugar — simplesmente porque o trabalho de formiguinha deveria evitar as tais verdades retumbantes, extasiantes, absolutas, os tais métodos totalizantes[5], assim como as verdades políticas totalitárias.
Epistemologia política transformadora
Um pouco no contra fluxo, pode-se afirmar que o problema científico atual não é de ordem epistemológica (de validação do conhecimento), gnosiológica: não há problema de validação do sujeito pesquisador. Nosso problema é de natureza política. Não há um conhecimento empírico da vida cotidiana que impeça o desenvolvimento científico. Não há nada no mundo da vida comum ou na ordem da cultura que obstaculize o conhecimento racional, libertador, esclarecedor.
A catarse intelectual e afetiva – de que nos fala Bachelard (1996) – é ainda mais necessária para remover os restolhos políticos. Esta catarse, a revolução cultural, o salto qualitativo, o recolhimento do Princípio do Terceiro Excluído (dialético), precisam chegar ao establishment. As elites culturais precisam remover as dificuldades políticas, econômicas, institucionais que nos condicionam.
Nossos obstáculos epistemológicos são do presente, ou seja, da política – e apenas este passado/presente da política é que nos condiciona como cerceamento ontológico. Os “erros reificados” são o exemplo das teorias sociais racistas que, há pouco tempo, afirmavam não ser possível pensar nos Trópicos. Nossos tristes trópicos são políticos, não epistemológicos.
“No novo homem ainda vive o velho homem” e isto é resultado da política elitista – especialmente da política que não nos permite realizar a pesquisa e a reflexão do mundo que nos cerca. Não há ciência sem pesquisa, é óbvio, e se a política impede a pesquisa, logo, é a política responsável por um falso dilema epistemológico.
O que Bachelard teria a oferecer é o desafio para que se atrevesse a pensar (um sapere aude, um conhecimento ousado). Atrevendo-se a pensar além das coisas, ou seja, além do pragmatismo jurídico. No espírito científico de Bachelard precisamos oferecer à razão jurídica, razões para evoluir. Para a ciência, o problema do direito está na ineficácia da pesquisa empírica. A pesquisa empírica não é o melhor dote do jurista. E com isso também acaba por desprezar o realismo jurídico que nos assinalou Michelet (1988). Na base do realismo de Bachelard precisamos “delinear os fenômenos”, ordenar, oferecer a seriação dos acontecimentos decisivos da experiência jurídica.
Afinal, o pensamento jurídico precisa alcançar onde o cientista chega – entre o concreto e o abstrato; para só depois alçar voos mais altos para o concreto/pensado, em que o conceito conhece a força da práxis.
O problema político não concede tempo ao conceito, porque o jurista tem de responder ao poder e à sociedade cada vez mais rapidamente. Com isso, não há tempo para a ciência; pois é preciso a abstração para desobstruir o espírito.
De modo prático, o problema político impede o acesso ao livro escrito e isso gera o falso dilema epistemológico do “livro não compreendido”. Pois, quanto mais livros não lidos, é óbvio, mais livros serão incompreensíveis. Então, talvez tenhamos um problema/desafio de epistemologia política, em que a política é barreira de passagem à episteme. E este não é um problema jurídico?
Pois sim, trata-se da negação do direito subjetivo: “Mesmo na mente lúcida, há zonas obscuras, cavernas onde ainda vivem sonhos” (Bachelard, 1996, p. 10). O problema político formou elites culturais, como “prova da sonolência do saber” e da avareza do homem erudito que não compartilha o conhecimento. Armazenado em tanques isolados, este tipo de cultura rumina velhas lições e se vê vítima do “ouro acariciado”.
Perdemos rapidamente o tempo para a objeção, cultivamos a alma professoral e que impõe as demonstrações de sua autoridade no princípio dedutivo. No pensamento jurídico, como de resto na intelectualidade passiva/repetitiva de lições filosóficas especulativas, é cultivar almas em dificuldade, aplicando-se aos jogos indutivos imperfeitos, portanto, seguros de que a abstração é um dever. Mas uma abstração que flua da realidade, da visão empírica dos fatos que afligem o homem médio.
Para Bachelard – e isto em tudo se aplica ao direito –, é preciso derrubar o utilitarismo, voltar o espírito ao humano. Um humanismo como construção não apenas lógica, mas política e social; como inclusão participativa: da representação do poder à abstração do direito. Este pensamento abstrato é o que identifica o próprio direito.
Na presença do Outro, desligados da mesquinharia do interesse individual, o pensamento se liberta da opressão das necessidades concretas, imediatas, limitadas. Na presença do direito, o pensamento se abstrai da realidade finita e se abre como uma janela em que observamos a existência de outras pessoas.
O pensamento abstrato se caracteriza pela capacidade do sujeito de direito absorver a legitimidade externa às suas necessidades e interesses. A externalidade social que está no sujeito de direitos, mas que o suplanta, é o componente social do direito e o núcleo do pensamento abstrato, como núcleo ético, de interesse da sociedade.
Teleologia política: é preciso refazer-se
Por fim, é preciso entender que mesmo para os clássicos a aprendizagem e a sociabilidade tem curso durante toda a vida, ainda que haja uma fase, idade mais marcante e visível em termos de influência na personalidade moral, na cognição. A socialização é um processo de toda a vida, portanto, não um momento que se esgota na formação inicial. O que ainda permite dizer que a expressão socialização primária não está de todo modo correta, uma vez que, como processo, não há um setor primário e outro secundário, há um processo, um fluxo contínuo e ainda que variado em termos de aprendizagem e de socialização (que é a aprendizagem das normas abstratas). Mas, e hoje, ainda teríamos tempo para o aprendizado, diante da fluidez e descontinuidade do próprio conhecimento?
Na presença de um mínimo de entropia social observamos um eterno recomeço, quando novamente o homem dá início à procura de transformar o meio em cultura, agindo através do trabalho social. Enfim, cultura é a capacidade humana de responder organizadamente às necessidades e assim transformar a natureza coletivamente, trabalhando e fabricando a inteligência social. Afinal, a cidadania é uma conquista diária, nunca assegurada em definitivo, nem na política, nem no direito. A cidadania é uma espécie de combinação entre direitos, liberdade e garantias – as garantias necessárias para que o direito tenha alcance e fruição com ampla liberdade.
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[1] Podemos estabelecer um paralelo entre o Homem Bicentenário, de Isaac Asimov (1997), e a crítica ao robô-alegre, produto da massificação iniciada na década de 1950, de C. W. Mills (1975). Andrew é o robô que quer ser humano e, portanto, não foi um robô-alegre como o que criticava Mills, mas sim um robô-herói. Andrew foi o primeiro herói da pós-modernidade ou apenas um amante do humanismo. Em todo caso, deve-se frisar que este debate sobre o humanismo é afeto à temáticas da modernidade, sendo um tema indiferente hoje em dia, em decorrência do individualismo, imediatismo, consumismo, cinismo, niilismo.
[2] Para uma definição do conceito, veja-se: http://www.gobiernoelectronico.org/node/5831.
[3] E que Marx conhecia e teria aliançado à dialética que transforma quantidade em qualidade. Entropia e luta de classes podem estar associadas em analogia, mas como metáforas do ciclo vicioso/virtuoso entre passado-presente e presente-futuro.
[4]“Por que existe a entropia? Antes, muitas vezes se admitia que a entropia não era senão a expressão de uma fenomenologia, de aproximações suplementares que introduzimos nas leis da dinâmica. Hoje sabemos que a lei de desenvolvimento da entropia e a física do não-equilíbrio nos ensinam algo de fundamental acerca da estrutura do universo: a irreversibilidade torna-se um elemento essencial para a nossa descrição do universo, portanto devemos encontrar a sua expressão nas leis fundamentais da dinâmica [...] De qualquer forma [...] é do caos que surgem ao mesmo tempo ordem e desordem” (Prigogine, 2002, pp. 79-80).
[5] Ouve-se até em cursos de pós-graduação o sujeito se referir ao “método mais metódico” (sic).
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Vinício Carrilho Martinez (Dr.) Cientista Social e professor da UFSCar Márlon Pessanha Doutor em Ensino de CiênciasDocente da Universidade Federal de