Terça-feira, 11 de dezembro de 2012 - 15h03
Modernos problemas antigos
A teoria da soberania estatal foi formulada justamente para assegurar “segurança”. Entenda-se como a segurança jurídica do capital, a segurança física do nobre diante do servo, do cidadão ante o excluído, do burguês contra o não-proprietário. Nessa mesma época, o poder deixou marcas profundas na mentalidade do homem médio. Aliás, o poder (que deveria ser social) confundiu-se com o Estado. O Renascimento[1], na verdade, é apenas o nascimento; marca o nascimento do Estado Moderno. Com a segurança máxima também adveio a tese de que os instrumentos absolutistas do poder deveriam ser manejados como garantia fática do próprio direito, ou seja, o direito pode arregimentar meios de exceção e alegar, no espírito das leis, que isto se deve ao direito de impor o próprio direito. Talvez, tendo-se algumas mudanças ou inversões mais bruscas na rota da luta pelo reconhecimento (agora perdendo terreno para a mera conservação do poder)[2], possamos dizer que lá onde havia um estado da Razão, veio a vigorar ainda mais fortemente uma Razão de Estado. Mais especificamente, datam de 1793 as primeiras bases do Estado de Exceção, e que tanto nos assombram desde então (Agamben, 2004). Todavia, a chave teórica para o entendimento de seu alcance e dimensão iremos encontrar em meados do século XX, no esforço retórico-constitucional de Carl Schmitt (2006).
O Estado de Exceção Permanente que visualizamos em alguns de seus tentáculos guarda sua primeira experiência na “revolução legal”, sob a égide do nazismo, e suas intensas manipulações anti-jurídicas ou de não-direito,promoveu um verdadeiro retrocesso no Estado de Direito Clássico e, por isso, iremos melhor compreendê-lo como Estado de (não)Direito. Em resumo, entenda-se aqui um Estado de Exceção que não só afrontou, mas que negou violentamente a estrutura-base do Estado de Direito, bem como qualquer princípio geral do direito e da Justiça. Como mero processo de negação e de exclusão, esse Estado de Exceção, como negação da Justiça, é o quadro legal que mais ameaça a “regularidade da vida social”. Hoje, o crime organizado é um Estado dentro do Estado e os criminosos sabem disso melhor do que nós - como diz Marcola: “Vou dar um toque, mesmo contra mim. Peguem os barões do pó! Tem deputado, senador, tem generais, tem até ex-presidentes do Paraguai nas paradas de cocaína e armas. Mas quem vai fazer isso? O Exército? Com que grana? Não tem dinheiro nem para o rancho dos recrutas. O Exército vai lutar contra o PCC e o CV? Estou lendo o Klausewitz, “Sobre a guerra”. Não há perspectiva de êxito… Nós somos formigas devoradoras, escondidas nas brechas… A gente já tem até foguete anti-tanques… Se bobear, vão rolar uns Stingers aí… Pra acabar com a gente, só jogando bomba atômica nas favelas… Aliás, a gente acaba arranjando também “umazinha”, daquelas bombas sujas mesmo. Já pensou? Ipanema radioativa?”. O crime organizado surgiu no Brasil como uma resposta ácida, irônica, debochada à negação e exclusão social. O crime organizado é filho direto da Lei de Segurança Nacional, nasceu em meio ao Estado de Sítio. Aliás, neste sentido há um paralelo possível com a globalização do terror, nascida do enfrentamento ao Império estadunidense. Quando Marcola cita Sun Tzu e Klausewitz não faz paródia, intelectualismo, a liderança do Mal cita a alma do crime politizado pela ditadura militar. No Brasil, o crime organizado nasceu da aplicação do anti-direito pelo Estado de Exceção aos que não admitiam ver a democracia ser abatida pela ditadura militar. A anomalia criada pela exceção ao direito justo nos legou a anomia social que nos ameaça enquanto sociedade organizada.
Batalha de Argel – uma decupagem do Estado de Sítio
Depois do que já expomos, não seria necessário, mas procuraremos fazer a desconstrução de um Estado de Exceção para, talvez, esclarecer de vez qual a estrutura organizacional que o crime organizado se apropriou. Este olhar por dentro, chamaremos de decupagem[3], uma vez que nesta atividade utilizamos o filme A Batalha de Argel[4], do diretor Gillo Pontecorvo, e rodado em 1966: a ação se passa entre 1954 e 1957, em Argel, Capital da Argélia, então sob domínio francês. É evidente desde o princípio a provocação de um sentimento de terror lancinante. No filme, misturam-se, imiscuem-se e superam-se em (des)continuidade, tanto a guerra civil, a luta de classes, quanto a formação de lideranças e o fanatismo, espontaneísmo, terrorismo. Historicamente, dentro e fora do Brasil, relacionam-se descolonização, Estado de Sítio, tortura, ilegalidades, luta pelo reconhecimento, contradições entre modernidade e tradição, religiosidade e Estado Laico, animosidades e (in)tolerância, negação, legitimidade e identidade cultural, povo e massa, burguesia e proletariado. Há que se lembrar que a guerra de libertação (1954-1962) tinha como principais partidos envolvidos a FLN (Frente de Libertação Nacional) e o MNA (Movimento Nacional Argelino): o filme retrata somente as ações do primeiro. Mas, consta que o jornal L'Humanité denunciou a execução de 50 civis (mulheres e crianças argelinas), na Vila de Zef (um episódio semelhante ao de My Lai no Vietnã). De certo modo, ainda como resquício dos embates (posteriores) entre pró-ocidentais e muçulmanos, em dezembro de 2007, na Argélia, 37 pessoas foram mortas em atentados suicidas.
O filme começa com cenas do final, mas logo depois apresenta imagens de perseguições, tortura e decapitação de prisioneiros políticos da resistência (Frente de Libertação Nacional). Esta organização é retratada, inicialmente, como sendo composta em sua maioria por bêbados, prostitutas e mendigos. Por isso, precisava se qualificar, “profissionalizar” e assim passou a punir quem desobedecesse às regras fixadas, como não beber e não usar drogas. Também sofria com informantes plantados pelo Exército francês, alguns foram fuzilados pela FLN: a frente política mantinha forte presença muçulmana e ainda controlava a vida civil do povo. Entre os argelinos convertidos, os casamentos eram celebrados pela FLN. Desde o início, viam-se duas Argélias distintas, uma rica e moderna (Bairro Europeu), para os franceses, e outra no subúrbio pobre (nas encostas), para os argelinos. No momento seguinte, os resistentes passaram a assassinar policiais franceses com tiros nas costas para roubar suas armas[5]. Como primeira represália, o Exército francês passou a exigir que fossem informados de todos os feridos suspeitos ou com armas de fogo e que dessem entrada nos hospitais — a venda de medicamentos para esse tipo de ferimento também estaria rigidamente controlada.
Mulheres com véu, trajadas como muçulmanas por não serem revistadas, e crianças eram utilizadas para atacar policiais desprevenidos. Para exercer maior pressão, alguns argelinos que não aceitavam a cooptação da FLN (ou porque eram corruptos) acabavam condenados e executados pelos milicianos: a todos era imposto o dever de resistência. Passaram, então, a atacar delegacias e barreiras policiais e foi aí que entrou em vigor o toque de recolher. Não era só uma guerra colonial ou de descolonização (historicamente, depois tornada guerra civil, opondo duas visões de mundo argelinas), mas muito mais um embate entre povos e culturas. No fundo, demarcando-se as duas civilizações, mas isolando-as igualmente ante o terror que já se generalizava. Assim, em resposta à morte dos policiais civis ou à paisana, os militares franceses também organizaram atentados contra bairros argelinos populosos, à noite, vitimando muitas crianças. A reação popular foi imediata, marchando em passeata, com espontaneísmo, mas os próprios militantes da FLN contiveram a ação desorganizada — talvez temendo por um massacre ainda maior. Depois, de modo sincronizado, mulheres da FLN que se passavam por ocidentais, plantaram bombas em três atentados: uma no saguão da empresa aérea Air France. O segundo atentado foi no Hipódromo, em que muitos morreram ou se feriram e as crianças argelinas que ali estavam a trabalho foram perseguidas. O último atentado que chocou a população francesa ocorreu em uma discoteca, matando e ferindo muitos jovens. Havia uma média de 4,2 atentados por dia e essas mulheres podiam/podem ser consideradas como as precursoras das mulheres-bomba da Al-Qaeda. A preparação de um insurgente, na vida política, e de outro, no estágio probatório do crime organizado, na vida real, não é muito diferente:
Muitos insurgentes construindo bombas e executando ataques no Iraque são adolescentes cheios de ódio. Diya Muhammad Hussein, 16, é um deles [...] São homens e jovens como Diya Muhammad Hussein que estão travando a guerra no Iraque. São eles que enterram as minas e organizam as emboscadas que matam soldados e civis. Diya se diz um mujahedeen, um lutador pela liberdade. O governo iraquiano, as tropas de coalizão e a população, exaustos com anos de violência, chamam-no de terrorista. A bomba de Diya poderia ter matado várias pessoas, dizem os Marines [...] Diya tentou detonar sua mina novamente, um dia depois de sua primeira tentativa, mas quando viu policiais iraquianos com os Marines na patrulha, ele decidiu não apertar o botão. Ele não queria matar seus compatriotas [...] O homem que o havia incitado a cometer o ataque chamou-o de covarde em uma sala de conversa na Internet [...] Ele foi preso quando deixou o cibercafé para jogar bola com Ahmed [...] Diya levou a polícia a um arsenal extraordinariamente grande de armas guardadas em barris de plástico enterrados em jardins [...] Diya passou pelo que se pode descrever como carreira clássica de insurgente iraquiano. Há cerca de um ano, seu pai decidiu levar sua mulher e 11 filhos para longe de uma violência crescente em Rawah e mudou sua família para uma parte rural do país. Ali, na pequena aldeia de Hassah, Diya conheceu Maad, combatente experiente. O homem mais velho ganhou a confiança de Diya e ficou contando como os americanos eram ocupantes infiéis. Combatê-los era o dever de todo iraquiano, disse ele [...] Como teste de iniciação no grupo de muhajedeen, ele teria que detonar uma mina. Ele se lembra de que lhe disseram que um dia poderia atacar os Marines com um ataque suicida, mas que não levou essa oferta a sério. "Achei a noção estranha, até engraçada" (grifos nossos)[6].
As semelhanças com o Iraque ou qualquer outro país ocupado que lute pela liberdade e reconhecimento não terminam aí. No filme, o direito à sedição se choca com a excipioex post facto[7]— com a chegada dos paraquedistas (a força especial francesa, treinada na Resistência, contra os nazistas) dá-se início, na prática, ao Estado de Sítio. O grupo seria chefiado por um tenente-coronel, premiado membro do movimento de resistência antinazista, durante a ocupação alemã da França. Teria por missão “chefiar forças civis e militares e exercer poderes especiais concedidos por decreto oficial”. A ideologia dos poderes especiais pregava que “dos 400 mil árabes residentes em Argel, apenas uma minoria queria se impor pelo terror e violência”. Quando o assunto é poder, especialmente poderes de exceção, não cabe arrependimento, porque tudo é feito em nome da grandeza da Nação e da segurança da Razão de Estado[8]:
O GENERAL francês Paul Aussaresses[9], 89, é a memória viva dos atropelos aos direitos humanos praticados durante a ditadura brasileira (1964-1985). Ex-agente do serviço secreto da França, veterano das guerras do Vietnã e da Argélia, Aussaresses colaborou com o regime militar no Brasil, ensinando aos oficiais técnicas de tortura e também de combate à guerrilha. "No curso, os estagiários representavam o papel dos torturadores e dos torturados", afirmou o militar reformado, no livro "Je N'ai Pas Tout Dit - Ultimes Révélations au Service de la France" (Eu não contei tudo - últimas revelações a serviço da França), que acaba de ser lançado em Paris [...] Em suas revelações, Aussaresses revelou que o governo Médici forneceu armas e aviões para o golpe militar que derrubou o presidente chileno Salvador Allende, em 11 de setembro de 1973. E vai além, ao relatar que o ex-presidente João Baptista Figueiredo, então chefe do SNI (Serviço Nacional de Informações), o telefonou para dizer que seus homens haviam torturado e matado um "francês subversivo", em referência a Laurent Schwartz [...] Aussaresses [...] Não se furtou a reiterar tudo o que disse no livro e acrescentou que não se arrepende de nada, mesmo que seu livro anterior o tenha levado a responder a um processo por "apologia de crimes de guerra". "Acho que Figueiredo apreciou minha conduta em relação aos brasileiros. Minha colaboração foi frutuosa para eles e para nós", disse [...] FOLHA - No livro o sr. narra o episódio de tortura de uma mulher que veio ao Brasil para, segundo o general Figueiredo, espionar o senhor. Figueiredo o fez vir de Manaus às pressas para mostrar a moça, já irreconhecível depois das sessões. Ele depois o informou que ela morrera no hospital. Nunca questionou o método bárbaro usado para obter informações daquela mulher? AUSSARESSES- De jeito algum! A morte dessa mulher era um ato de defesa [...] FOLHA - Quais são os fundamentos que justificam o uso da tortura numa guerra ou como no caso do Brasil, nos anos 60 e 70? AUSSARESSES - Acho que, se podemos evitá-la, nada a justifica. FOLHA - E quando é que não se pode evitá-la? AUSSARESSES - Quando a ação terrorista adversa quer ter efeitos de propaganda e tem por vítimas sobretudo mulheres e crianças. Penso que, se a tortura pode evitar a morte de inocentes, ela se justifica. É meu ponto de vista. Não a aprecio, não a aprecio, não a aprecio[10]. FOLHA - Na Argélia, o sr. e o general Jacques Massu estavam de acordo com todos os métodos de informação, inclusive a tortura? AUSSARESSES - Totalmente de acordo. Mas quando houve o ataque de Philipeville, Massu ainda não estava comandando os pára-quedistas. Descobri que ia haver um ataque porque havia compras diárias de uma enorme quantidade de farinha de cuscuz num armazém. E tudo era comprado em dinheiro. E as notas de dinheiro vinham da França, do salário dos operários argelinos. Foi meu serviço de informação que descobriu tudo [...] FOLHA - Hoje, após a queda do Muro de Berlim e o fim da União Soviética, qual seria o grande perigo para um país como a França? AUSSARESSES - A organização terrorista maometana, árabe, os islâmicos[11]. FOLHA - O senhor se arrepende de algo que fez? AUSSARESSES- Não me arrependo de nada (grifos nossos).
No filme, o comando das forças especiais também sabia que a FLN era uma organização em pirâmide, formada por vários setores e que estes eram, por sua vez, formados por outras ramificações triangulares, tendo-se acima um Estado Maior (EM).
EM (Estado Maior)
(1)
Líderes de confiança
/ \
(2) (3)
(células intermediárias)
/ \ / \
(4) (5) (6) (7)
(grupos de assalto)
Este formato piramidal (ou tênia, como se referia o Tenente-Coronel) seria reformulado, posteriormente, pela Al-Qaeda, cortando-se as ligações entre os grupos derivados, ramificados, exatamente para (com a autonomia das células) impedir que se conhecessem os demais grupos e, sobretudo, as lideranças. Os paraquedistas sabiam que sua principal tarefa e tática era conhecer o adversário, buscando informações e que o método aplicado seria basicamente o interrogatório, “feito de tal forma a sempre se obter uma resposta”, diria o próprio tenente-coronel: “Conhecê-los é eliminá-los”, pois “o aspecto puramente militar do problema é secundário”. “Na nossa situação, demonstrar falsa humanidade leva ao desânimo e à confusão”, diria por fim. O que seria falsa humanidade, não usar a tortura?
De Sartre a Marcola
As forças especiais, então, agiriam com carta branca sempre que uma ocorrência singular justificasse o uso dessas medidas. Mas, também poderiam criar esta situação, se nada ocorresse. Na sequência, a ONU colocou a questão em debate e a FLN programou uma semana de greve geral, mas sem ações armadas, para demonstrar força e organização. O apoio integral da população à greve demonstraria que não se tratava de uma minoria. Os líderes rebeldes sabiam que o terrorismo era só o estopim da ação política, depois o povo deveria se engajar e a greve serviria para isso. No filme, entretanto, a ONU não declarou intervenção ou embargo de qualquer tipo na Argélia. O Exército reagiu à greve declarando guerra e passou a atacar os muçulmanos para que saíssem de suas casas e retornassem ao trabalho: começaram a forçar o embarque dos grevistas em caminhões para que fossem, literalmente, forçados ao trabalho. O tenente-coronel citaria Dien Bien Phu (da Indochina), a fim de se justificar aos jornalistas: “O terrorismo leva à insurreição armada, assim como a guerrilha leva à guerra”. Em seguida, ainda perguntaria aos repórteres: “Por que será que os Sartres sempre nascem do outro lado?”. Finalizaria dizendo que não gostava de Sartre (e certamente também não de Camus), mais especialmente se estivesse como adversário. Isto seria apenas uma dica, porque os interrogatórios com tortura continuaram e as lacunas da pirâmide da organização começaram a ser preenchidas: as ações invasivas de repressão eram noturnas. O povo continuava a apoiar a greve geral e as lojas foram destruídas pelas forças armadas, como forma de intimidação, para depois receberem pão. O tenente-coronel comparava a FLN a uma tênia que crescia infinitamente e sabia que tinham de chegar à cabeça, ao EM, pois os milhares de pedaços mortos nada significavam, posto que eram repostos pelo comando central.
O líder e intelectual dos rebeldes, Bem M’Hidi, mesmo preso, sabia perfeitamente que a violência não esgotaria o problema, para nenhum dos lados: “Começar uma revolução não é difícil. Mais fácil ainda é continuá-la e, o pior de tudo, é vencê-la. Mas é depois, quando tivermos vencido, que começarão as reais dificuldades”. Em uma entrevista pública, ao responder uma provocação, disse que trocaria as cestas com bombas levadas por mulheres muçulmanas, pelos aviões franceses que despejariam Napalm em vilarejos inocentes (uma possível referência aos 50 mil mortos da Vila de Zef ). Desta forma, pequenos atos e discursos subversivos eram instigados. Na entrevista, Bem M’Hidi disse, ainda, que a FLN teria mais chances de vencer a guerra do que os franceses de mudarem o rumo da história. No final, perguntou ao tenente-coronel: “O espetáculo acabou?”[12]. O militar, então, lhe disse: “Antes que produza o efeito contrário”. De volta ao cárcere, Bem M’Hidi teria sido mantido amarrado com braços e pernas afastados, para que não tentasse o suicídio, mas, mesmo nessas condições, teria feito uma corda de tiras de camisa para se enforcar[13]. O jornalista francês perguntou ao próprio tenente-coronel: “Como poderia?”. O militar lhe respondeu que era preciso perguntar ao porta-voz do Ministro, porque ele não fizera tal declaração e acentuaria: “Da minha parte, tive a chance de apreciar a fibra moral, a coragem e o compromisso de Bem M’Hidi com os seus ideais”.
O militar iria acrescentar que o sucesso nas operações dependeria dos métodos usados (“os fins justificam os meios”), mas outro jornalista o interpelou sobre as torturas e este, cinicamente, lhe respondeu: “A tortura não consta do meu vocabulário”. Disse ainda que a FLN orientava os insurretos para que guardassem silêncio por 24 horas, após sua prisão, para que os remanescentes pudessem fugir[14]. Diante da questão, o militar devolveu a pergunta sobre que métodos empregar, uma vez que os procedimentos jurídicos levariam meses para ter efeito. Todavia, a conclusão (confusão) mais notável e transparente entre legalidade e Estado de Exceção, viria numa breve sentença: “A legalidade pode ser inconveniente” (grifos nossos). As avaliações, por vezes, mais se pareciam com provocações, quando, por exemplo, disse: “A FLN nos quer fora da Argélia e nós queremos ficar”. E acrescenta, dizendo que: “Todos os jornais, mesmo os comunistas, queriam sufocar a rebelião”. Por isso, avalia que os paraquedistas não são loucos, nem sádicos. Ainda acusou seus detratores de se esquecerem do papel da Resistência contra os alemães (numa referência direta a ele mesmo)[15]. Como consolo, faz uma auto-referência a sua própria ação: “Somos soldados. Nosso dever é vencer”.
Os métodos variavam entre afogamento, choques elétricos, “queimaduras com maçaricos”, espancamentos, pau-de-arara, e sempre com um preso observando o outro ser mutilado, antes que chegasse a sua vez[16]. A guerrilha continuava a atirar com metralhadoras em civis franceses que andavam pelas ruas. Quando os combatentes eram cercados, o militar francês ameaçava: “Não quero estar em seu lugar quando for preso”. Entretanto, logo a seguir, mostrar-se-ia zeloso do Estado de Direito: “Terão um julgamento justo” (mas como, se os procedimentos jurídicos eram muito lentos?). Os rebeldes pediam o acordo por escrito, para que ganhassem tempo de reação, armando novas armadilhas, com mais bombas. Esta luta colonial foi o resultado de 130 anos de ocupação francesa na Argélia. Ao final, no filme, dois anos depois de desbaratada praticamente toda a organização central da FLN, eclodiu uma imensa e intensa manifestação popular, aos gritos de: “Estamos manifestando pela liberdade”. Eram milhares e a polícia atirava para matar, inclusive usando tanques de guerra. Mas, é como se todo o povo lutasse pela “independência e liberdade” — não havia mais tênia, mas crescia um rizoma[17]. A Frente de Liberação Nacional dominou a política argelina desde a independência e, em25 de Setembro de 1962, nascia o Estado da Argélia ou a República Democrática e Popular Argelina. De acordo com a Constituição de 1989, a Argélia é uma república socialista. Vimos no filme, como vemos na realidade em que esse tipo de Estado se impõe, como se usa/abusa das leis marciais. A marca da exceção nos ajuda a responder a pergunta do comandante argelino: Por que os Marcolas nascem sempre do outro lado? Hoje, sabemos que cada povo tem o intelectual que merece: Sartre ou Marcola. Em todo caso, o crime organizado recebeu essas e outras lições muito antes das nossas autoridades e especialistas. O receio maior, como já foi dito, é o de que legítimo processo de indignação e de autonomia troque de mãos, em meio à guerra civil, e assim seja manipulado pelo crime organizado.
O sitiado bate a sua porta
No Brasil, não temos esse sentimento de indignação, mas o que precisamos é reter (para deter) esta rotina que conforma a cultura do poder de exceção, seja valendo-se e aplicando todos os recursos necessários à Razão de Estado e ao Estado de Exceção, seja renomeando-os sob uma alcunha jurídica qualquer. Este é o caso que apontamos para o uso da tortura, apelidada por um ex-secretário americano de “rendição extraordinária”. Por isso, o sitiado também é um sujeito à procura do reconhecimento, é um ativista, um resistente ao Estado de Exceção Permanente. Sua resistência restabelece a cultura política abalada pela negação trazida pelo cerco. O sitiado é alguém que luta contra a condenação, mas não pela absolvição (deve reconhecer seus crimes), mas sim pelos direitos negados, surrupiados. O sitiado sabe que só voltará a ser quem era se, bravamente, impuser sua insurreição; agora, não como direito, mas sim como ação. O sitiado luta pelo direito de ser um sujeito político. O sujeito sitiado luta por reconhecimento de direitos, por exemplo, porque sabe perfeitamente que na vida real tudo não passa de jogo político, em que o Estado de Direito tende a ser manipulado para servir aos interesses práticos de quem se locupleta do poder. Este “caminho lutado e enlutado” é, literalmente, morrer pelo direito de sedição. Às vezes, o sitiado está exilado, pela “má-sorte” ou porque procurou longe o que não tinha em casa; em alguns casos, vive cercado em campos de refugiados, em outros, põe nas palavras o desejo incontido de retornar para casa, como Gonçalves Dias, em Canção do Exílio. Em suma, como vimos, o direito de sedição nada mais é do que o direito civil (não-militar) e político de se opor, organizadamente, à Razão de Estado, sempre que haja suficiente falta de legitimidade ao poder ou que se manifeste sob o despotismo ou tirania[18]. Istojános diziaCarpentier:
Y a las 8 p.m. el General Nabilán se dirigió en efecto a la Nación, hablando de los Heróes de la Independencia, de la Libertad recobrada, de la Justicia Social venidera, de la Bandera, del Ejército depositario de las más gloriosas tradiciones, y otras cosas por el estilo [...]
Assim, politicamente, percebemos esta “camuflagem institucional da violência”, em forma de política organizada para o sistema. Juridicamente, por sua vez, revelou-se como um transbordamento do medo nos institutos jurídicos da exceção. Mas, atualmente, o Estado deu outra guinada à brutalização das relações sociais, exercendo não só a coerção, como a pressão direta e indireta (física e psíquica), política e jurídica. Fato que levou especialistas a designarem esta fase da soberania como uma luta do Estado (o bem) contra a criminalidade social (o mal) e, assim, a Razão de Estado se converteu em Estado Penal (Wacquant, 2003).
O crime organizado para o uso da violência extrema é uma resposta virulenta ao Estado Penal. O que aprendemos ou deveríamos ter aprendido com o caos trazido pelo capital desequilibrado, pelo esgotamento dos modelos institucionais, mas não reais da cidadania, é que o crime organizado é uma resposta negativa, desconstrutiva advinda diretamente da crise de civilização, do fim do direito como utopia. Não se trata de algo passageiro, apesar de ter uma dose bem acirrada de incompetência administrativa, na versão de Marcola: “Grana. A gente hoje tem. Você acha que quem tem US$40 milhões como o Beira-Mar não manda? Com 40 milhões a prisão é um hotel, um escritório… Qual a polícia que vai queimar essa mina de ouro, tá ligado? Nós somos uma empresa moderna, rica. Se funcionário vacila, é despedido e jogado no “microondas”… ha, ha… Vocês são o Estado quebrado, dominado por incompetentes. Nós temos métodos ágeis de gestão. Vocês são lentos e burocráticos. Nós lutamos em terreno próprio. Vocês, em terra estranha. Nós não tememos a morte. Vocês morrem de medo. Nós somos bem armados. Vocês vão de três-oitão. Nós estamos no ataque. Vocês, na defesa. Vocês têm mania de humanismo. Nós somos cruéis, sem piedade. Vocês nos transformam em superstars do crime. Nós fazemos vocês de palhaços. Nós somos ajudados pela população das favelas, por medo ou por amor. Vocês são odiados. Vocês são regionais, provincianos. Nossas armas e produto vêm de fora, somos globais. Nós não esquecemos de vocês, são nossos fregueses. Vocês nos esquecem assim que passa o surto de violência”. Portanto, não se trata apenas do fato de que o crime compensa, porque há impunidade, trata-se da certeza de que o crime social é a regra geral.
A “normalidade” é uma anomia
A aplicação do método do realismo político pelo crime organizado indica a seus mentores que não há saída fora do crime, visto que o crime recompensa e que a normalidade social é, no fundo, uma anomia sem tamanho, sem lastro: “Solução? Não há mais solução, cara… A própria ideia de “solução” já é um erro. Já olhou o tamanho das 560 favelas do Rio? Já andou de helicóptero por cima da periferia de São Paulo? Solução como? Só viria com muitos bilhões de dólares gastos organizadamente, com um governante de alto nível, uma imensa vontade política, crescimento econômico, revolução na educação, urbanização geral; e tudo teria de ser sob a batuta quase que de uma “tirania esclarecida”, que pulasse por cima da paralisia burocrática secular, que passasse por cima do Legislativo cúmplice (Ou você acha que os 287 sanguessugas vão agir? Se bobear, vão roubar até o PCC…) e do Judiciário, que impede punições. Teria de haver uma reforma radical do processo penal do país, teria de haver comunicação e inteligência entre polícias municipais, estaduais e federais (nós fazemos até conference calls entre presídios…). E tudo isso custaria bilhões de dólares e implicaria numa mudança psicossocial profunda na estrutura política do país. Ou seja: é impossível. Não há solução”. É mais do que certo que o crime não é solução para nada. Nem faz sentido discutir isso. No entanto, há sentido no bojo da “normalidade” que só faz gerar anomalias, criaturas anencéfalas que adoram e adotam o poder? Onde procurar pelas soluções? Quais os sentidos que podem nos agregar em um convívio mínimo sem que as criaturas devorem os criadores?
Sua política de resultados implica em saber que o crime é uma forma de guerra civil e que as lideranças são cultas, que se cultua o entorno social, como a cultura de que se vai obter resultados compartilháveis pelo grupo. Sua logística está na distribuição racional, sua estratégia se coloca na base do reconhecimento e da legitimidade das práticas rotineiras e das lideranças. Neste mesmo sentido, por exemplo, é impressionante a relação guardada com o realismo analítico de um texto como a Arte da Guerra (Sun Tzu, 2002), a leitura preferida e até presenteada por Marcola: “Vocês é que têm medo de morrer, eu não. Aliás, aqui na cadeia vocês não podem entrar e me matar… mas eu posso mandar matar vocês lá fora…. Nós somos homens-bomba. Na favela tem cem mil homens-bomba… Estamos no centro do Insolúvel, mesmo… Vocês no bem e eu no mal e, no meio, a fronteira da morte, a única fronteira. Já somos uma outra espécie, já somos outros bichos, diferentes de vocês. A morte para vocês é um drama cristão numa cama, no ataque do coração… A morte para nós é o presunto diário, desovado numa vala… Vocês intelectuais não falavam em luta de classes, em “seja marginal, seja herói”? Pois é: chegamos, somos nós! Ha, ha… Vocês nunca esperavam esses guerreiros do pó, né? Eu sou inteligente. Eu leio, li 3.000 livros e leio Dante… mas meus soldados todos são estranhas anomalias do desenvolvimento torto desse país. Não há mais proletários, ou infelizes ou explorados. Há uma terceira coisa crescendo aí fora, cultivado na lama, se educando no absoluto analfabetismo, se diplomando nas cadeias, como um monstro Alien escondido nas brechas da cidade. Já surgiu uma nova linguagem. Vocês não ouvem as gravações feitas “com autorização da Justiça”? Pois é. É outra língua. Estamos diante de uma espécie de pós-miséria. Isso. A pós-miséria gera uma nova cultura assassina, ajudada pela tecnologia, satélites, celulares, internet, armas modernas. É a merda com chips, com megabytes. Meus comandados são uma mutação da espécie social, são fungos de um grande erro sujo”. Seu realismo político é subversivo porque parte do ofício de quem não pode perder tempo com burocracia e vaidades que só têm validade nas carreiras galonadas. Seu realismo astuto associa a necessidade de sobrevivência diante do corpo ameaçado do Estado e que, exatamente por isso, pratica o Estado de Sítio Social. Como sitiados, os generais do crime organizado ganham seu reconhecimento porque são sitiados. O que aprendemos com o anti-direito do crime organizado e com o Estado de não-Direito que vigora na arena social, é a observação realista de que precisamos urgentemente de um Estado de Direito.
De quem é a condição humana?
O que devemos aprender, a reaprender com o humanismo de que já se ocupou o direito, é que o direito não nasce do anti-direito; a Justiça não provém da injustiça; a paz não decorre da violência e assim sucessivamente. O que precisamos aprender é que sem dignidade, dentro e fora dos presídios, não há sociabilidade, não há harmonia e nem a mínima condição humana. Filosoficamente, precisamos nos reinventar, recuperar alguns dos sonhos coletivos e que se perderam, precisamos de algumas promessas, mesmo as descumpridas pelo Iluminismo, para alimentar algumas esperanças. Para Honneth, pode-se ver a religação do uno com o todo, pela interação provocada pela alteridade:
O nexo existente entre a experiência de reconhecimento e a relação consigo próprio resulta da estrutura intersubjetiva da identidade pessoal: os indivíduos se constituem como pessoas unicamente porque, da perspectiva dos outros que assentem ou encorajam, aprendem a se referir a si mesmos como seres a que cabem determinadas propriedades e capacidades. A extensão dessas propriedades e, por conseguinte, o grau da auto-realização positiva crescem com cada nova forma de reconhecimento, a qual o indivíduo pode referir a si mesmo como sujeito; desse modo está inscrita na experiência do amor a possibilidade da autoconfiança, na experiência do reconhecimento jurídico, a do auto-respeito e, por fim, na experiência da solidariedade, a da auto-estima (Honneth, 2003, p. 272).
O “direito-de-ser-do-Outro” vem a ser o “direito-de-ser-em-si-para-si-e-para-o-Outro”, como solidariedade com autonomia. Os sujeitos são realmente seres sociais, mas não só pelas determinações sociais (não só porque nos fazemos pela sociedade em sua trama de relações/contradições), mas ainda mais porque o ser social “se-faz-para-a-sociedade”: uma ética da auto-conservação intersubjetiva ou uma eticidade de forte presença e manifestação interativa. Em síntese esse direito-de-ser-do-Outro tem a ideia de direitos como tensor moral[19].
Os padrões de reconhecimento do direito penetram o domínio interno das relações primárias, porque o indivíduo precisa ser protegido do perigo de uma violência física, inscrito estruturalmente na balança precária de toda ligação emotiva: consta das condições intersubjetivas que possibilitam hoje a integridade pessoal não somente a experiência do amor, mas também a proteção jurídica contra as lesões que podem estar associadas a ela de modo causal. Mas a relação jurídica moderna influi sobre as condições da solidariedade pelo fato de estabelecer as limitações normativas a que deve estar submetida a formação de horizontes de valores fundadores da comunidade. Por conseguinte, a questão sobre em que medida a solidariedade tem de entrar no contexto das condições de uma eticidade pós-tradicional não pode ser explicada sem uma referência aos princípios jurídicos (Honneth, 2003, p. 278).
Neste padrão se insere a luta por reconhecimento dos direitos, no âmago do curso do processo civilizatório[20]— na geração de direitos, conferindo à passagem dos direitos individuais aos globais, mas reconhecendo-se, intermediariamente, os grupos, as etnias e as relações comunitárias. Mas de que direitosestaremos tratando se, para reconhecer o direito é preciso, antes, provocá-lo?
Assim se vê o que precisa ser modificado, e ainda que o como esteja muito nublado. Também vimos que o direito positivo chama mais a atenção para os limites do que para o potencial engendrado. Na busca por avivar a ética e as relações comunitárias, sem dúvida, deve ser destacada a experiência da “democracia como forma de vida” (ideal). No entanto, isto esbarra na vivência do capitalismo, em que os valores do capitalismo se apresentam então como forma de vida hegemônica. O Estado de Direito que pretendemos reconstruir promete subverter a anomia. Mas, também é preciso reverter a anomalia que se tornou regular.
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