Por várias razões, os mais jovens talvez não dimensionem a plenitude da crise institucional e sistêmica que o mundo enfrenta atualmente. A principal delas é que nasceram dentro da crise e só conheceram esta crise, como se fosse uma condição natural, como se nunca tivesse havido algo significativo e importante fora do caos atual. Depois, porque a crise é global e anulou todas as alternativas que favoreciam uma contemplação de futuro (teleologia): “não há tempo a perder pensando no amanhã” – esta também é uma dificuldade para se estabelecer uma regulamentação global para os níveis de exploração do meio ambiente. Os jovens crescem pensando que só existe o presente e que precisam viver com a máxima intensidade possível. Em parte, isto também se deve ao fato de que as tecnologias e os fluxos vitais do sistema econômico impuseram uma dinâmica nunca vista. Com mudanças profundas e muito rápidas, a sensação é de que os dias duram pouco, cada vez menos e daí se fortalece a “necessidade de se consumir a vida”. Também os níveis de consumismo e de mercantilização dos chamados “valores arraigados” e/ou princípios decorrem dessa troca de significados e que nos imprime uma quase-sensação de instantaneidade: temos de namorar, consumir, viver, trabalhar, estudar em ritmo de intensa velocidade. O desenvolvimento tecnológico, em especial a informática e a Internet são os propulsores evidentes dessa instantaneidade: o mundo está, literalmente (e sem retórica), ao alcance de um click. Assim, velhos e jovens sentem este ritmo instantâneo como uma imposição, como se fosse sua segunda natureza, sua pele artificial. Porém, pela óbvia razão de ter vivido parte de sua vida produtiva em outro ritmo, só os mais velhos podem sentir que “os dias passam muito mais rapidamente do que no passado”. De certa forma, os jovens não têm padrões, parâmetros, exemplificações ou paradigmas alternativos para “se” comparar. Portanto, os desafios para as grandes estruturas, a começar do Estado, são inúmeros e enormes. Para muitos, o Estado já morreu, nós é que levaremos ainda uns duzentos anos para fechar o velório. O que nos leva a pensar no Estado da perspectiva de suas variações/adaptações mais recentes, para melhor entender os nossos problemas individuais e coletivos. Com este objetivo, de se esclarecer um pouco os tipos de Estado (nem todos a serem seguidos evidentemente), seguem algumas das formas contemporâneas assumidas, especialmente de meados do século XX aos nossos dias.
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Estado de não-Direito:pode-se entender como um desvio oportunista das funções jurídicas precípuas do Estado de Direito, mas sem se configurar como Estado de Exceção, pois produz leis injustas. No Brasil ainda enfrentamos a corrupção pública por meio do que se chamou popularmente de Estado Paralelo.
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Estado de Sítio:é o modelo estatal clássico de ultima ratio (no exemplo do Egito, há a defesa institucional do poder concentrado em grupos hegemônicos) e está em praticamente todos os Estados democráticos atuais.
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Golpe institucional:é possível defenestrar um grupo político manipulando-se o Estado de Direito, mas sem impor as regras do Estado de Exceção. O caso mais recente vem do Paraguai, quando Legislativo e Judiciário se aliaram para decretar um golpe constitucional contra o chefe do Executivo.
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Estado Democrático de Direito Social: quando os direitos fundamentais sociais são entendidos como a essência da segurança jurídica da própria democracia. Teve uma fase de afirmação nas constituições de Espanha e Portugal, na década de 1970, foi a inspiração da Constituição brasileira de 1988, mas não se aguenta mais diante do modelo de capitalismo. No Brasil, foi reduzido como modelo jurídico com a imposição da regra da “reserva do possível”.
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Estado Penal:trata-se da forma mais habitual de usurpação da democracia e de manipulação do Estado de Direito, impondo-se, por exemplo, a negação de princípios fundamentais do direito e uma ampla criminalização das relações sociais. O Estado Previdenciário cedeu seu lugar ao Estado Presidiário.
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Capitalismo Monopolista de Estado:o capitalismo do século XX foi marcado pelo fim da era concorrencial no mercado e na produção. No século XXI, além desse fator, impôs-se a ampla hegemonia do capital financeiro, ameaçando-se drasticamente as fronteiras e a soberania estatal.
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Estado Liberal:marcado pelo individualismo jurídico (“para cada ação um autor”), encontrou seu auge na década de 1990. Juridicamente, hoje em dia, encontra-se cindido entre a defesa da internacionalização do capital e a coletivização dos conflitos. Também foi denominado de Estado mínimo. No Brasil, o Estado Democrático de Direito não vingou em toda sua extensão, em grande parte, devido às chamadas políticas neoliberais: iniciadas no Chile, de Pinochet, afirmou-se mundialmente com Margaret Thatcher, na Inglaterra.
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Estado de Exceção Permanente e Global: a forma embrionária e ao mesmo tempo a fase mais bizarra foi o nazismo. Na atualidade, como expressão do seu Império, os EUA impõe uma forma de pax americana (criando-se leis de ocasião que reforcem sua hegemonia) e que ameaçam amplamente os direitos humanos e a democracia: legaliza-se a tortura, a impunidade dos soldados mercenários, a violação da privacidade do próprio povo norte-americano). Na condição de Estado dos Estados, os EUA desrespeitam frontalmente o direito internacional.
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Globalização e povos sem Estado: a globalização encurtou todas as fronteiras e diferenças, aproximou ou forçou a aproximação de povos e de suas culturas. Em resposta, muitas minorias étnicas se viram ameaçadas em sua sobrevivência e isto acirrou a xenofobia, o regionalismo e a luta pela sedição (como na Espanha e em áreas da África). Também problemas geopolíticos foram e ainda são fortes entraves ao reconhecimento de outros Estados, como na Palestina.
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Estado Teocrático:além de negar a laicização do poder público, impõe-se por meio da adoção de uma religião oficial, misturando-se regras políticas com regramento moral. O melhor exemplo atual é do Irã, mas o tema nos leva a pensar na importância do direito comparado para melhor compreender a nós mesmos.
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Estado Controlativo: poderia ser uma manifestação do Estado Penal, mas sua principal característica é investir maciçamente no controle social. Do passado mais longínquo (controlar a vida porque esta se tornou lucrativa) ao momento presente, em que o controle quase-absoluto sobre a vida é muito mais rentável, o Estado se coloca com indutor de insegurança social para vaticinar um controle social abusivo. Momentos clássicos foram os regimes totalitários, mas são os Estados neoliberais e excludentes que vigiam todo seu espaço público. São Paulo, por exemplo, concentra 78% dos 1,5 milhão de equipamentos de vigilância do país. Expostas no espaço público da região metropolitana, as câmeras podem filmar uma pessoa 28 vezes num único dia. Em Londres, que tem 1,5 milhão de equipamentos, a mesma pessoa seria filmada 300 vezes. O principal motivo é que em São Paulo somente 15 % das câmeras são externas e, em Londres, mais de 50% delas são públicas e interligadas[1]. Alguns ainda poderiam qualificar como uma atualização do modelo definido na filosofia política do século XIX como Estado Ético (ou Estado Judicial, controlativo da vida privada).
Vinício Carrilho Martinez
Professor Adjunto II da Universidade Federal de Rondônia
Departamento de Ciências Jurídicas
Doutor pela Universidade de São Paulo
Domingo, 24 de novembro de 2024 | Porto Velho (RO)