Segunda-feira, 22 de julho de 2013 - 12h57
Vinício Carrilho Martinez (Dr.)[1]
A legitimidade requerida ao Poder Político não é um item abordado nem na Declaração de Montevidéu (1933), nem na de Bogotá (1948), mas, em conjunto com a legitimação (incluindo aí a aceitação político-ideológica e as instituições de direito), seriam requisitos de afirmação do Estado independente. De modo simples, ocorre que se o governo é veementemente checado, obstruído pela falta de legitimidade política interna, isto pode acirrar uma crise institucional de governabilidade e, no limite, levar ao questionamento interno do Poder Público e de sua soberania. Sendo assim, a ingovernabilidade se transforma em assunto de Estado – do maior interesse – e, portanto, tem assento na agenda política dos Estados. Trataremos da legitimação do Estado, mas inicialmente cabe investigar o que se pode entender genericamente por legitimação.
O que é legitimação
Veremos a legitimação como critério que autoriza a existência do Estado e valida suas intervenções; o que supera, portanto, o critério de legalidade do próprio Estado. Por isso, logo de início é importante ter clareza quanto aos fatos políticos e ideológicos: o que autoriza a existência do Estado não é – ou pode não ser – o mesmo fundamento que virá autenticar sua funcionalidade. O Estado pode ter surgido em resposta à necessidade de organizar a segurança e os meios de sobrevivência a um grupo social; porém, sua permanência, legitimando-se em termos de continuidade, dependerá de quanto essas necessidades forem satisfeitas e da sua capacidade de adequação a outros desafios e ao exercício político contínuo.
No senso hipotético da justiça, como diriam nossas esposas ou amigos(as): o Estado é legitimado pelo estabelecimento de um mínimo de igualdade formal e real, o cuidado e a proteção aos hipossuficientes, e a harmonia social em todos os seus aspectos. Sob o critério da governabilidade e da legitimidade, como requisitos de validação do aparato estatal, é crucial afirmar que o critério da valoração dos regimes políticos decorre da legitimidade. O problema crucial da política, porém, é o da legitimidade que se liga aos procedimentos e resultados. Daí que o regime político se identifica com a noção de Estado (status-stare = estar firme).
De qualquer forma, porém, esta relação conceitual será tensa, porque: enquanto o Estado tem por característica a permanência; o governo é provisório. A estrutura do Estado é impessoal e o governo exerce provisoriamente o Poder Político, com inclinações pessoais, representativas de uma parte das concepções ideológicas (partidos políticos). Assim, será correto dizer que o governo faz parte do Estado, que é mais abrangente. De todo modo, é correto afirmar que o Estado se legitima com a ação producente, diligente do seu governo. A legitimação do Estado tem por desafio explicar e convencer as pessoas da existência legítima, necessária, apropriada do Estado e do Direito. Mas, por que obedecemos ao Estado e seguimos suas leis?
Da avaliação à validação
O que fundamenta a legitimidade, de certo modo, herdada por todos nós como critério de avaliação? Genericamente, pode-se dizer que seja a busca de felicidade, da justiça, do bem-estar social, da liberdade e igualdade, da paz social, da segurança individual e social (jurídica). O mais seguro é afirmar que o Estado é legítimo se é capaz de utilizar da própria razão de ser, da Razão de Estado, com a finalidade da pacificação social. Mas, nesse caso, a validação do Estado não decorre de uma avaliação negativa, ou seja, de que a sociedade incorre em um estado tal de instabilidade que necessita urgentemente da presença reguladora, tutorial do Estado? (Doehring, 2008, p. 144).
Primeiros passos
Confunde-se justificativa com legitimação, mas há que se entender que toda justificação (como fundamentação) precede a explicação (legitimação). Caberia esta indagação: por que o Estado é necessário? A justificativa é uma argumentação baseada nos pressupostos, nos argumentos que solidificam as pretensões do Estado. Com vistas à legitimação, cabe perguntar: por que manteremos o Estado organizado desse modo ou com este fim? A justificativa é inicial e a legitimação é decorrente.
O que justifica o Estado é a necessidade de uma organização do social a fim de que as forças políticas sejam exploradas de modo coletivo, como organização efetiva, e para que nenhuma das partes se insurja com energia maior do que o poder central que deveria representar todas as partes em disputa. O que legitima o poder central unificado é a necessidade de se manter a base legal do Estado – com a pretensão de que o Estado atue como poder legal; um Poder Político juridicamente organizado.
Assim, pode-se ver uma correlação entre legalidade e legitimidade, sobretudo a partir da perspectiva de um complexo de relações sociais organizadas sistematicamente em uma unidade de poder e que seja passível de conversão em um conjunto de relações jurídicas ordenadas: o poder como unidade de ordenação. A legitimação está além da legalidade técnico-jurídica, necessitando de uma justificação moral. Esta legitimidade engendra poder, assim como o poder do Estado é tanto maior quanto mais forte é o reconhecimento voluntário prestado pelos cidadãos: “Só goza de autoridade aquele poder de Estado a que se reconhece que seu poder está autorizado” (Heller, 1998, p. 309). A autoridade do poder central até pode se basear na legalidade, contanto que se fundamente na legitimidade. Por sua vez, a legitimidade está baseada em critérios políticos relevantes – pelo prisma da Realpolitik –, sejam os critérios adotados pelo Estado para infundir as políticas públicas, sejam os critérios de motivação política adensados pelos cidadãos ao julgar o êxito ou o fracasso do Estado. Portanto, não deixa de haver uma relação entre Estado e Governo.
A legitimação mais óbvia que se requer para o Estado decorre da argumentação de que devemos proteger valores integrais da vida comum do homem médio (segurança, liberdade) e instituições formativas (família), além de grupos sociais normativos, como os decorrentes das demais atividades sociais (trabalho, política, sindicalização). Isto ainda não incorpora em definitivo a presença e o desenvolvimento da ideia de que o Estado expressa o Poder Público – visto que, para este caso, será necessário que se produza um direito especial –, no entanto, o ato de vontade inaugural ou de consentimento posterior já terá sido dado. Isto é, se o Estado já se formou, o que assegurará sua existência e permanência, com um mínimo de aceitação, respeito institucional e cumprimento de sua designação normativa, social, produtiva, cultural? Há um momento – na série de fatos históricos – que desembocará na formação do Estado, como poder central, e há uma argumentação (lógica, jurídica, ideológica ou religiosa) ou imposição de meios (força física, dominação carismática – quase mágica do governante) que deve se seguir a este ato de vontade inaugural do aparato estatal. Muitos Estados têm no mito o elemento agregador das vontades individuais, todavia, será na racionalização do poder que encontrará forças para sobreviver.
A primeira parte da equação se refere ao suposto pacto ou contrato social que daria fomento ao Estado (contrato político) e do qual ainda decorre um contrato jurídico (norma fundamental, poder constituinte, Constituição). A segunda parte do problema se refere à legitimação essencial ao Poder Político unificado, seja pelo discurso de que o Estado é o único capaz de organizar a sociedade, operacionalizando-se o melhor desenvolvimento das habilidades e capacidades humanas, seja pela mera imposição da vontade do mais forte. De qualquer forma, na paz ou na conquista, o Estado precisa ser apresentado aos súditos ou cidadãos como algo necessário, oportuno e as pessoas precisam acreditar piamente nisso, a ponto de abrirem mão de direitos fundamentais (a liberdade em tempos de paz) e a vida (durante a guerra, defendendo exatamente este Estado). Em suma, a legitimação do Estado trata da justificativa (como desculpa necessária) acerca da urgência e relevância de sua existência. Neste sentido, o Estado Legítimo é aquele que não admite a existência de facções políticas internas que rivalizem com o próprio Estado.
O Estado é necessário ao funcionamento da sociedade
A legitimação do exercício da dominação do Estado, como requisição do ordenamento jurídico, estabelece como tarefa política a promulgação de normas jurídicas vinculantes para outros homens. Para estabelecer regras jurídicas que estabeleçam limitações aos interesses dos indivíduos e ser cumprido neste dispositivo, sem dúvida, é preciso que haja disposição para ser dominado, limitado nas ações. Esta chamada “dominação suprafamiliar” não é legítima em si e a disposição para ser cumprida precisa ser “fabricada”. A dominação é fabricada, efetivamente, e nos resta saber se será efetiva, porque decorre de uma construção política.
O Estado não nasce de um contrato social inevitável, como se fosse um ato único, pois desenvolve-se progressivamente de baixo para cima. As relações de poder se estabelecem porque os homens tornam-se dependentes um dos outros. Esta falibilidade humana leva ao Estado, mas o Estado será controlado a fim de que o poder seja justificado. A divisão em funções e órgãos coincide com este objetivo. Assim, o Estado racionaliza o poder – para atender a necessidade de se justificar – e a justiça corrige o próprio Estado. É importante que no interior da sociedade o poder seja distribuído e ordenado para que as pessoas que exercem o poder sejam controladas por elas mesmas.
Para esta corrente do funcionalismo institucional, o Estado resulta da divisão social do trabalho e da interdependência entre os homens: “O Estado deve garantir que o poder existente seja exercido racionalmente, quer dizer, de acordo com a justiça, ele deve racionalizar o poder” (Fleiner-Gerster, 2006, p. 85). Nesta linha também racionalista, o Estado é resultado da socialização do homem, de sua capacidade de organização e do sentido comunitário. Em suma, como parte do processo civilizatório, trata-se do Estado Racional (Weber, 1985).
A dominação estatal também deriva de um contrato original fictício, como se decorresse de uma norma fundamental. De todo modo, o Estado se formou para o livre desenvolvimento; é difícil imaginar que o Estado tenha sido gerado para produzir o Mal. Mesmo a crítica marxista verá no Estado um Mal porque atua como instrumental de opressão/espoliação utilizado ditatorialmente pela burguesia como classe dominante (Engels, 1984). Em todo caso, há uma distância entre nascer mal e ser usado para o Mal.
A crítica que se pode fazer é só no sentido de que há uma espécie de recurso político latente, inerente, como zoon politikón, até mesmo como se esperássemos por um tipo de Estado latente ou em potencial, gestacional. Agora, assegurar que o germe do Estado está na família é certamente um exagero, pois nem todo aglomerado de tribos ou famílias – por maiores que sejam ou que tenham sido – irá dar lugar a algum Estado. A origem da família, da propriedade privada e do Estado, na trilogia proposta por Engels (1984), estaria em desacordo com a Antropologia Política.
Por isso também, a legitimação do Estado ocorre com o reconhecimento popular e que autoriza o exercício do poder. Considera-se, portanto, que a comunidade deve ser guiada por leis comuns, como se fosse um sentimento comunitário. A sociedade precisa ser/estar convencida de que o poder está sendo exercido para o seu bem: o Estado não pode figurar apenas como ideologia ou projeto de poder, uma vez que acabaria confundido com o governo. No Estado Legítimo, a obediência consentida é básica, não porque se teme as sanções, mas sim porque se considera a obrigação de obedecer disposições legítimas, moralmente defensáveis.
Na história da Humanidade, o direito e a justiça antecedem ao Estado: “Há princípios jurídicos elementares, reconhecidos por todos os povos, que não podem ser violados nem mesmo pelo soberano [...] Assim, o soberano não está acima do direito, mas inserido no direito” (Fleiner-Gerster, 2006, p. 89). Ao formular o ordenamento jurídico, nem o Estado nem o soberano podem violar os princípios gerais reconhecidos. Esta seria, inclusive, uma das garantias de que a soberania não seria transformada em tirania da maioria. Tanto o soberano quanto o Estado (na verdade, trata-se da mesma realidade) devem observar sempre e de maneira geral os princípios jurídicos racionais e justificáveis. A dominação do Estado será legítima se for explicada racionalmente, se for justificável pela razão. Como Princípio de Autoridade, oEstado tem de ser crível; mais do que verossímil. A razão, portanto, para o funcionalismo jurídico (iluminista) é determinante.
O abuso do Estado, quando confrontado à razão, autoriza a perda do direito de governar: um governo irracional, não-razoável, não é digno dos homens. Já liberto da ignorância, o homem moderno sabe perfeitamente o que é e para que serve o poder. A capacidade de aprendizado dos governados condiz com a necessidade de se corrigir constantemente a efetividade do Poder Político. Neste sentido, a justificação do Estado é uma constante que decorre de uma maior adequação do poder aos anseios sociais, isto é, a legitimação advém da justificação do poder obtida em conformidade com as relações sociais; também por isso, o poder é uma relação social: “O Estado diferencia-se de uma quadrilha de ladrões pelo fato de que deve administrar, no interesse dos homens, a parte de autonomia humana que lhe foi confiada” (Fleiner-Gerster, 2006, p. 90-91)
A legitimidade é uma ficção política e jurídica
Uma forma típica de se entender a legitimação do Poder Político é a partir da própria consciência com que pautamos a produção/existência do direito positivo como marco na vida civil da imensa maioria das pessoas. O Estado é uma abstração jurídica – tal qual é o direito uma ficção[2]– que decorre de uma realidade política efetiva. Diante da necessidade de se organizar politicamente uma realidade social prévia, criou-se a abstração jurídica (a ideia) de que seguindo as regras a vida comum seria mais fácil. Neste sentido, a legitimação a partir da norma fundamental proposta por Kelsen ganha destaque:
A norma fundamental tem numa teoria normativa do Direito a mesma função que a soberania numa teoria política ou, caso se queira, potestativa do direito: tem a função de fechar o sistema [...] Enquanto o poder soberano é o poder dos poderes, a norma fundamental é a norma das normas [...] o tema kelseniano da norma fundamental é perfeitamente simétrico ao tradicional do poder soberano [...] Exemplificando, para a teoria normativa é a norma fundamental que institui o poder de produzir normas jurídicas válidas num determinado território e em relação a uma determinada população. Para a teoria política, é o poder constituinte que cria um conjunto de normas capazes de vincular o comportamento dos órgãos do Estado e, em segunda instância, dos cidadãos (Bobbio, 2008, p. 210-211).
A norma fundamental é potestativa (potestas, poder) do direito porque lhe confere força, combustível para se tornar realidade, para intervir com eficácia; além disso, como visto, tem a função de fechar o sistema, dar contornos de reconhecimento ao que é legítimo, reivindicativo e por vezes limitativo. Se a norma fundamental é a norma que não precisa de justificação, a própria justificativa para a legitimação do Estado é fictícia, quase uma lenda. Acreditar, creditar, dar credibilidade ao Estado, à soberania, ao direito é o que asseguraria sua efetividade, ou seja, a realidade política e jurídica do Estado e do Direito decorre da aceitação de que a ficção jurídica – a crença no direito – é melhor, mais acertada à condução das relações políticas. De tal modo que o Estado e o direito existem, são eficazes, porque acreditamos em sua existência. O Estado é uma razão que se fia na convicção, crença; o Estado é uma concretude política construída sobre uma ficção jurídica. De nossa crença, a ficção do direito se torna realidade. Da ficção jurídica de que o caminho do direito é o mais correto, o mais adequado, ou seja, o único caminho a seguir, decorre a própria ideia de poder reinante no Estado de Direito[3]. Portanto, trata-se de um ato de boa-fé que assegura a existência do Estado e a efetividade do direito ou, em sua ausência e descrença, o que incrementa o surgimento de formas sociais proto-jurídicas, como o crime organizado e o chamado Estado Paralelo. Como racionalidade do Poder Político, a justificação do Estado está em garantir que a razão regulamente a vida comum e as relações políticas: a Razão de Estado.
Em outro exemplo concreto, pode-se dizer que o Estado como Poder Público confere fé pública a seus órgãos e servidores – como pretensão de legitimidade – para agir de acordo com o melhor interesse público. Assim, a fé pública é uma atribuição conferida pelo Estado a fim de se manter a atuação dentro de níveis de credibilidade adequados. A fé pública é uma espécie de longa manus, em que o próprio Estado se vê representar, atribuindo-se, portanto, direitos e deveres inerentes a esta função pública que é derivada, mas própria, do poder central. O servidor deve agir de acordo com o interesse público e suas ações – como reflexo da fé pública – deverão espelhar o que o “soberano/Estado dirá” ser o mais adequado para aquela situação. Com a fé pública ainda se atesta a veracidade, a autenticidade, a confiabilidade das informações ofertadas e dos documentados produzidos. A fé pública atribuída ao Poder Político é a chancela de que o Estado propugna agir bem, como ente racional. A fé pública não é mitológica, é racional, nascida das necessidades de auto regulação e de padronização das ações públicas. A Razão de Estado, sob este prisma, é um ato de fé, sem dúvida, mas como fé pública construída sobre as bases da razão. A fé pública, como derivação da Razão de Estado, é parte da razão cartesiana do poder.
Não deixa de ser curioso, irônico (uma ironia jurídica), o fato de que o positivismo esteja pautado em uma crença, no subjetivismo, na convicção de que o direito (como ficção) será realidade se acreditarmos na primazia da norma fundamental e na soberania do Poder Político: tão supremo que não admite superlativos. Na vida prática, não será difícil verificar que, para muitas pessoas, o Estado é uma ironia política e jurídica. Em todo caso, é uma ficção jurídica
que se confirma pela incidência da razão prática e isso atesta legitimidade ao Estado e ao direito – não obstante o fato de que, nesse panorama, a legitimação do Estado seja um problema não resolvido em toda a sua complexidade.
Teoria culturalista do Estado
Em termos de funcionalidade, o Estado é menos poder de império e mais poder de decisão. Veja-se que nas últimas décadas do século XX surgiram a teoria cibernética (sistema de auto-regulação), o tecnicismo neopositivista e a teoria dos modelos. O que sugere um Estado Cibernético. Mas, mesmo sob a avalanche de concepções estatais funcionalistas, organicistas, neopositivistas, pode-se assegurar que o Estado e seus direitos formam realidades distintas que se comunicam e se distanciam, mas que são realidades culturais que se entrecruzam na linha do tempo. O direito é tomado em contato direto com as relações sociais, uma vez que o direito não se limita a preceito normativo ou como mera coordenação de normas reguladas e expelidas pelo Estado. Quando se diz que o direito é norma, diz-se apenas como ele surge, quais são as técnicas empregadas ou como está o sucesso ou recesso da consciência coletiva. O direito não é produto da mente, nem extensor de princípios axiomáticos; o direito é um organismo vivo com história: direito é norma, mas não apenas norma positiva. O direito é norma eivada de cultura e decorre da seiva socializada pelas criações humanas.
Quando se diz que o Estado é norma, esvazia-se de conteúdo, de ação, de razão prática, da própria existência como poder; portanto, desautoriza-se a requisição material de que o Estado deve ser legitimado no mundo da vida e diante das demais instituições que conformam determinada sociedade. O Estado é um organismo com história e o governo é apenas uma de suas atribuições. O Estado não é mera técnica de resultados e, assim, sua legitimidade exige mais do que a descrição das conexões e funcionalidades do poder administrativo. Para a justificação do Estado é preciso considerar o momento normativo, porque não se pode ser indiferente ao conteúdo das valorações (e das validações, como os critérios utilizados para a autorização moral para o próprio Estado existir). Até porque, as valorações suportam e efetivam o aparato do poder e ao mesmo tempo é a excelência do homem.
Por outro lado, a conotação axiológica (a Ideia de que o Estado é Absoluto) ou a visão estritamente teleológica (realização dos fins sociais) não são suficientes e mesmo que tais valores sejam reconhecidos racionalmente como fonte de sua conduta. Contudo, apenas como relação hierárquica de normas, o Estado se esvazia da própria justificação, da realidade fática e da valoração axiológica, simbólica e ideológica e que precisam ser explicadas, justificadas para serem aceitas e empregadas.
Desse modo, o que explica e garante o Estado NÃO é apenas o poder; NÃO é o fim da convivência; NÃO é o ordenamento jurídico. O Estado encontra legitimidade na orquestração entre fato/valor/norma. Neste sentido, o Estado se expressa por um sistema normativo obtido a partir do nexo de complementariedade entre fato (poder) e valor (os próprios critérios de justificação): “...atualização dos valores comunitários por intermédio do Poder, e da legitimação concomitante do Poder graças à atualização dos valores vividos pela comunidade” (Reale, 2000, p. 375-6).
O Estado se legitima em torno dessa unidade sistemática (sistêmica: como um sistema entre Estado, Sociedade e Direito), devendo-se pensar a razão de ser do Estado como assentada numa unidade coerente de co-implicação ou complementariedade. Isto ainda condiz com sua realidade histórico-cultural e com a compreensão dos fatos enquanto normatividade referente a valores. A legitimação do poder, nesses termos, refere-se a relações entre autoridade e obediência, com vista a fins comuns – como uma conexão entre:
Por fim, para que o Estado melhor se legitime, não é demais esperar pela execução das funções precípuas, inerentes a todo Estado. Isto porque o Estado tanto mais se autoriza, quanto mais próximo da realização efetiva de suas principais funções/atribuições. Sumariamente definidas como funções do Estado:
A lei como substrato da legitimidade
Quer seja como ideário político, pessoal ou amplamente ideológico, quer seja como objetividade jurídica, a legitimidade depende da aferição valorativa quanto à relação entre as proposições e programas frente à efetividade das ações políticas. Neste sentido, mesmo sob a base valorativa, a razão prática será um item objetivo da avaliação. E assim a própria legalidade poderá ser um critério de atribuição de legitimidade ao Estado; um Estado que segue leis (consideradas legítimas pelo seu povo) é a encarnação do Governo das Leis. O poder legal, definido pelo domínio de critérios formais, técnicos e jurídicos, é suporte da legitimidade política.
A legalidade procura estabelecer regras claras e duradouras, como obras da razão, a fim de que sejam normas jurídicas razoáveis, lógicas, coerentes – de acordo com um estado geral de confiança – para dissipar o sentimento de intranquilidade, dúvida, desconfiança e sujeição. Neste que seria o Governo das Leis. E não será mais legítimo o Governo das Leis, preferível, então, ao Governo dos Homens? Em suma, legalidade e legitimidade traçam a linha de acomodação do poder ao direito que o regula, como poder legal em harmonia com os postulados jurídicos. Com o que se vê no direito legítimo a própria crença, a ficção jurídica posta a serviço da Sociedade: “A legitimidade é a legalidade acrescida de sua valoração” (Bonavides, 2012, p. 121 – grifos nossos). Portanto, a legitimidade – ainda que acrescida da valoração pessoal – é muito mais do que um teorema do poder. A legitimação do poder não é um penduricalho da democracia, é a essência de todo o poder consentido. Sem legitimidade, o poder pode até se prolongar, mas será defenestrado no primeiro sinal de fraqueza. Em outras formas de exercício do poder, uma fraqueza até moral do dirigente, pode ser corrigida, contornada, mas em regime político ilegítimo a menor mentira do poder terá força de reconvenção de todo o pacto jurídico. Por fim, há algumas distinções de forma e de conteúdo que devem ser refeitas:
Isto recoloca a legitimidade diante da necessidade e da finalidade do Poder Político. Especialmente quando tomamos o Estado como o instrumento máximo de institucionalização de todo o Poder Político.
Bibliografia
BOBBIO, Norberto. Direito e poder. São Paulo : Editora da UNESP, 2008.
BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. São Paulo : Malheiros, 2012.
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 31ª ed. São Paulo : Saraiva, 2012.
DOEHRING, Karl. Teoria do Estado. Belo Horizonte : Del Rey, 2008.
ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. 9ª ed. Rio de Janeiro : Editora Civilização Brasileira, 1984.
FLEINER-GERSTER, Thomas. Teoria geral do Estado. São Paulo : Martins Fontes, 2006.
HELLER, Hermann. Teoría del Estado. 2ª ed. México : Fondo de Cultura Económica, 1998.
REALE, Miguel. Teoria do direito e do Estado. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2000.
WEBER, MAX. O Estado Racional. IN : Textos selecionados (Os Pensadores). 3ª ed. São Paulo : Abril Cultural, 1985, p. 157-176.
[1]Professor do Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Rondônia.
[2]O direito existe porque acreditamos que assim é melhor e que sem o direito as regras sociais poderiam ser fragilizadas na coordenação da vida comum do homem médio.
[3]Quantos bilhões de pessoas mantém essa crença no Estado e no direito? Quantas pessoas são descrentes do Estado e do direito porque essas ficções político-jurídicas não estão presentes em seu dia a dia? Tanto é verdade que, no caso concreto, para se instalar uma unidade da política pacificadora, no Estado do Rio de Janeiro, os policiais fincaram uma bandeira nacional, como se dissessem: “A partir de agora, acreditem, o Estado brasileiro será parte da realidade de todos.
[4]Senado: garante o equilíbrio da federação: é um órgão de representação do Estado e não do povo - há três Senadores, para cada Estado. A Câmara Federal representa o povo brasileiro distribuído pelos Estados. Por exemplo, os senadores paulistas representam os interesses do Estado de São Paulo e os deputados federais de São Paulo representam o povo de São Paulo — que não é necessariamente paulista.
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