Quinta-feira, 18 de outubro de 2012 - 05h18
A vida social, o contrato social, a ideia de solidariedade, a afirmação de que o homem é um animal político que se realiza na sociedade, a noção de que o direito nos integra a uma vida em comum, a construção epistemológica do Outro, para além de nós mesmos, a sociabilidade em que formulamos o “pensamento abstrato” e por meio deste damos concretude à própria coletividade necessária à vida social, tudo isso, é fantasia, virtualidade, um universo paralelo criado pela mente humana a fim de abrigar interesses tão distintos e vontades absolutamente conflitantes entre os homens. Inventamos tudo isso, como uma Matrix, uma rede social de acolhimento simplesmente porque é mais fácil sobreviver às adversidades trazidas pelas diversidades sociais e naturais. Viver como Robson Crusoé é esperar pela condenação à morte, mas não de solidão e sim por incapacidade de defesa individual. Sozinhos, somos alvos fáceis, de pouca força para resistir aos demais animais. Animais sociais, como formigas, cachorro selvagem africano, lobos, cupim, abelha, castores são mais inteligentes porque diagnosticaram sua fragilidade e trataram de se agrupar em torno de alguns interesses em comum.
De certo modo, quando se diz que o direito é uma ficção, refere-se à artificialidade criada pelo homem em sociedade para conduzir aos demais em torno de um consenso que (nem sempre, quase nunca) deriva do interesse global. No fundo, se há necessidade de acreditarmos no direito é porque precisamos ter a esperança de que alguém ou algo (o direito) estará ao nosso lado, atuando em nossa defesa, protegendo-nos e resguardando nossos interesses legítimos. Realmente, é uma ficção, porque para a imensa maioria não há provas suficientes, nem razoáveis, de que o contrato social estabelecido com base jurídica será melhor, mais justo, equilibrado do que, por exemplo, se o poder estivesse baseado unicamente no uso da força. Basta pensar na vida de milhares, milhões de pessoas comuns, anônimas, e que o mais perto que chegaram das instituições (defensoras da moralidade civil) foi no contato com a polícia. Ora, o aparelho repressor do Estado – e por sua vez também o sistema prisional – não exemplificam, sistematizam, legitimam o uso da força física nas sociedades modernas? Então, é de se concluir que, mesmo sabendo-se que em tese a policia deveria ser “legalista”, na vida prática dessas pessoas nem sempre as abordagens são acompanhadas de um “por favor”, “obrigado”. Portanto, há muito sentido quando se diz que o direito é uma ficção.
Por falar da realidade em paralelo criada pelas crenças sociais, após a exibição do filme Matrix, em 1999, muito se teorizou sobre a possível simulação da realidade em que vivemos, sendo que esta realidade paralela teria sido criada por computadores evoluídos. No futuro, supostamente, teríamos condições de saber se vivemos realmente ou se nossa vida é mera representação, sendo totalmente manipulada por cientistas sem escrúpulos. Curiosamente, ainda se trata disso com investimentos públicos. O que nos interessa é indagar se a democracia, a República, a Federação, novamente o direito como ficção, as demais instituições sociais, se tudo isso também não formaria a base social das criações de cientistas sociais, juristas, gestores mal intencionados, interessados apenas em nossa dominação. Como na Matrix, nosso conhecimento restrito nos impede de verificar a extensão da realidade política e social e, assim, seguimos acreditando que as instituições da sociedade moderna são boas, sérias, ajustadas aos nossos interesses e direitos. Não conheço quem poderia dizer em santa consciência que o Estado brasileiro (assim como a imensa maioria dos Estados nacionais) defende o interesse público. O Estado busca o bem comum? Mas como, se o direito editado por esse Estado separa socialmente os proprietários dos não-proprietários, os ricos dos pobres, os “melhores” de todos os que não tiveram sorte? Por que há presos que cometeram crimes famélicos e a corrupção do dinheiro público nunca implica no confisco dos recursos roubados? Como dizem os pesquisadores de Matrix: “A verdade será finalmente revelada quando os físicos unificarem o micro e o macro, e encontrarem nossas limitações percepto-sensoriais que nos impedem de enxergar a realidade” (Em: http://olhardigital.uol.com.br/negocios/digital_news/noticias/para-pesquisadores,-realidade-em-que-vivemos-pode-ser-simulacao).
Para o filósofo genebrino J.J. Rousseau, no Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade, o homem (na sua perfectibilidade) precisa da “ajuda das circunstâncias”, para que o estranhamento (obstáculo e adversidades) obriguem os demais homens (se querem sobreviver) a lançar mão de todas as suas forças e faculdades. Esta superação das necessidades, para Rousseau, é a própria fonte da evolução humana em seu processo humanizatório, civilizatório. Em suas palavras: “O primeiro sentimento do homem foi o de sua existência, sua primeira preocupação a de sua conservação. As produções da terra forneciam-lhe todos os socorros necessários, o instinto levou-o a utilizar-se deles” (Rousseau, 1988, p. 64). Já a sociedade civil, contrariamente, lhe aparecia como resultado do modo de produção, mais especificamente com o surgimento da propriedade privada: “O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo” (Rousseau, 1988, p. 62 – grifos nossos). Rousseau ainda cita o filósofo inglês John Locke para dizer que “sem propriedade não haveria afronta”. Em seguida à formação da propriedade, houve a formação da família como célula da sociedade e depois as nações, e com esse aglomerado veio a vaidade e a inveja: com a civilidade também veio a crueldade. Ou seja, a sociedade civil e o Estado Policial foram criados para defender a propriedade privada e não a vida do indivíduo comum, sem posses. Além disso, a ganância soube prosperar na divisão social do trabalho e na apropriação individual:
“...desde o instante em que um homem sentiu necessidade do socorro de outro, desde que se percebeu ser útil a um só contar com provisões para dois, desapareceu a igualdade, introduziu-se a propriedade, o trabalho tornou-se necessário e as vastas florestas transformaram-se em campos aprazíveis que se impôs regar com o suor dos homens e nos quais logo se viu a escravidão e a miséria geminarem e crescerem com as colheitas” (Rousseau, 1988, p. 69).
Com isto, Rousseau antecipou uma refutação ao sociólogo francês Émile Durkheim, para quem a divisão social do trabalho é a força-mestra do crescimento humano e social. Para Rousseau, ao contrário, a desigualdade social também tem origem na produção — esta foi a origem da metalurgia e da agricultura:
Desde que se tornaram necessários homens para fundir e forjar o ferro, precisou-se de outros para alimentar a estes [...] Somente o trabalho, dando ao cultivador um direito sobre o produto da terra que ele trabalhou, dá-lhe consequentemente direito sobre a gleba pelo menos até a colheita, assim sendo cada ano; por determinar tal fato uma posse contínua, transforma-se facilmente em propriedade (Rousseau, 1988, p. 70).
Portanto, o conhecimento técnico aplicado à produção (razão instrumental) trouxe a propriedade privada. A própria distinção entre essência e aparência (na vida social) veio da astúcia, desse “fausto da razão instrumental” e da decorrente relação de propriedade. Como podemos deduzir, o contrato social sempre foi mais vantajoso ao rico do que ao pobre, uma vez que só o rico tinha algo a perder: a conservação de si mesmo e da propriedade. Da retórica (“linguagem instrumental”) veio a ideologia em favor da propriedade. Então, dessa razão instrumental, a serviço da propriedade, ainda se viu instituir o Estado Policial (forma de Estado que melhor se ajusta à defesa dos interesses sociais predominantes), e foi assim que a propriedade transformou uma “usurpação sagaz”[1]em direito inalienável. Isso teria nos impedido de fugir desse “destino da modernidade”, pois não se “escapou ao jugo” e nem “subtraiu-se ao gládio”. Em seguida, advieram as guerras nacionais e a ideia da segurança nacional apoiada no edifício político-institucional da Razão de Estado[2]: “Daí nasceram as guerras nacionais, as batalhas, os assassinatos [...] viu-se, por fim, os homens se massacrarem aos milhares sem saber por que e cometerem-se mais assassinatos num só dia de combate e mais horrores na tomada de uma única cidade do que se cometera, no estado de natureza, em toda a face da terra, durante séculos” (Rousseau, 1988, p. 74).
Neste sentido, formava-se a segurança nacional da propriedade, ou seja, a Razão de Estado nada mais seria do que a razão dos ricos e de suas propriedades. Mas tudo ao contrário do que Rousseau gostaria de ver, pois, o governante foi feito para que pudéssemos evitar a tirania: “Incontestável, pois, e máxima fundamental de todo o direito político, é que os povos se deram chefes para defender sua liberdade e não para serem dominados. ‘Se temos um príncipe’ dizia Plínio a Trajano, é ‘para que nos preserve de ter um senhor” (Rousseau, 1988, p. 76). Esperava-se assim desde o começo alcançar a ética na política – mesmo o homem sendo um animal anti-social. Contraditoriamente ao “estado de natureza”, a alteridade é o deslocamento da própria personalidade individualista.
É por isso que toda ficção ou simbologia necessita de uma dose muito grande de crença coletiva e com o Estado e o direito não seria diferente. Quando, sem ingenuidade ou abduzidos pela ideologia oficial, diremos que o Estado não está mais à deriva? Teoricamente, é possível sustentar que nunca teremos um Estado que não seja em paralelo, como na realidade de Matrix; na prática, ao menos podemos esperar que o Estado e a sociedade não estejam afundando.
(ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. 4ª ed. Col. Os Pensadores. Vol. II. São Paulo : Nova Cultural, 1988).
Vinício Carrilho Martinez
Professor Adjunto II da Universidade Federal de Rondônia
Departamento de Ciências Jurídicas
Doutor pela Universidade de São Paulo
[1]Fazer crer aos demais que uma certa demarcação de terreno era legítima e poderia ser apropriada pelo autor.
[2]Entendendo-se agora a Razão de Estado como princípio de conquista e de anexação de territórios, a fim de aumentar o poderio do Estado conquistador. Na história da formação dos Estados, cada autor é um fautor.
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