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Gente de Opinião

Vinício Carrilho

Nuances ou Exceções


Atuante no mensalão e na defesa de Carlinhos Cachoeira, o advogado Márcio Thomaz Bastos alega em artigo de 24/12, publicado no site Consultor Jurídico[1], que a opinião pública julgadora desses casos não conhece suficientemente as nuances que os envolvem. Pois bem, pode ser realmente que o povo não conheça das nuances, das sutilezas, das filigranas, das astúcias e das fímbrias escapistas do processo. Pode até ser que o caso do mensalão tenha julgado advogados e partes ao mesmo tempo, como se todos fossem réus. Podemos concordar até mesmo com o fato de que não se julga sem provas – baseando-se a decisão em indícios – e que “o ônus cabe a quem acusa” (se bem que é verdade que “à defesa cabe provar a inocência do réu”). Também condenamos as práticas do Estado Penal brasileiro, especialmente a condição de seus presídios medievais. Ainda se discorda que os juízes e muito menos os tribunais possam julgar ouvindo a voz rouca das ruas. No entanto, é preciso esclarecer desde logo que não se pode admitir que o Estado de Direito se baseie em nuances.

Na verdade, não há muita diferença entre nuances e exceções e ambos são um desaire, uma vergonha para o direito e sua justiça. (Quem conhece Foucault, deveria ler Agamben). Quando o Estado abdica da justiça e se fia unicamente pelos resultados – e todo ministro sabe disso – as exceções são sempre invocadas; ora para se disfarçar o próprio erro (“considere-se que à exceção deste fato gravoso...”), ora para agir à sombra da lei (por que os Ministros da Justiça não debatem a exceção do RDD?). Em defesa de seus réus, todo advogado age e denuncia possíveis excessos (excesso na forma de exceção), mas nunca li Ministro da Justiça citar Wacquant para combater o Estado Penal que açoda os pobres. Se os ministros brasileiros conhecem Gramsci e Foucault, por que só reconheceram a realidade do Estado nacional agora? Além disso, o Foucault que nos interessa não é o de Vigiar e Punir, pois a solução encontrada pelo Estado Penal no Brasil é outra. No caso brasileiro, o Estado Penal é aplicado como manu militari: a legalidade no paredão do embrutecimento e do estranhamento político. Toda lei, portanto, congrega plenos poderes. Como nos ensinou Foucault:

O poder era, antes de tudo, nesse tipo de sociedade, direito de apreensão das coisas, do tempo, dos corpos e, finalmente, da vida; culminava com o privilégio de se apoderar da vida para suprimi-la [...] Poderia ter tomado, em outro nível, o exemplo da pena de morte. Por muito tempo, ela foi, juntamente com a guerra,a outra forma do direito de gládio; constituía a resposta do soberano a quem atacava sua vontade, sua lei, sua pessoa(Foucault, 1988, pp. 127-9 – grifos nossos).

 

No dizer de Capella, a processualística não pode ser substituída pela legitimação mítica do poder:

Tais expectativas, pelas que lutaram gerações de pessoas, aparecem ante as consciências de todos como aureoladas juridicamente, como hegemônicas. Justificar sua violação ou sua restrição exigirá, pois, um esforço (discursivo) especial por parte de quem atente contra elas: tal é, em realidade, sua magra couraça, mas, que ao mesmo tempo, facilita que os indivíduos insistam na legitimidade e na justiça de suas pretensões quando estas aparecem como o conteúdo de um direito de cidadania. Em realidade, para denegar essas pretensões legítimas, o poder há de recorrer, de um modo ou de outro, à doutrina do “estado de exceção”: uma doutrina que, levada ao limite, exige a legitimação mítica (Capella, 1998, p. 143 – grifos nossos).

 

Entretanto, esta processualística deve servir aos pobres também, salvo se queremos um Estado de Direito para as elites e um Estado de Exceção para os pobres. A gritaria contra a injustiça não deve se limitar a algumas ações penais, por mais midiáticas que estas tenham sido.

No Brasil, como se sabe, com a exceção do mensalão, vale a regra do gládio: “aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei”. Mesmo a exceção boa, é ruim, porque cria falso alento de que as coisas vão mudar, de que no futuro tanto os pobres quanto os ricos serão bem defendidos, que haverá justiça e imparcialidade para todos. Historicamente, a sanha punitiva perpetrada na Operação Mãos Limpas, na Itália dos anos 1990, foi desastrosa exatamente por isso. Criou-se a falsa expectativa de que todos os corruptos, mafiosos seriam punidos e presos. E não foram.

O que se quer chamar a atenção é para a diferença real entre a defesa da justiça que serve ao Estado Democrático de Direito e a justiça que interessa aos nossos clientes. A não ser que esses clientes sejam o povo pobre que deve frequentar desde sempre os presídios medievais. Será que vamos edificar novos presídios, para atender fins específicos da pena ou para se adequarem a novos e inusitados sujeitos?

É certo que o jacobinismo nunca foi bom companheiro, salvo no combate às exceções políticas e jurídicas defendidas pelo Estado absolutista – aliás, muitas dessas exceções vigoram ainda hoje, a começar pela lógica do Estado de Sítio (e que ministro algum defenderia seu fim). O Habeas corpus, uma invenção de 1215, defendeu a burguesia contra o arbítrio autocrático. Nunca foi muito eficaz em termos de defesa social, até porque nos regimes de exceção costuma ser restringido. É certo ainda que o direito liberal criado pela revolução burguesa na França de 1789 traria muitos benefícios: como o direito à ampla defesa. A tortura denunciada por Pietro Verri (2000), mais ou menos nesta fase, ainda se encontra a toda força nos dias atuais, como vemos na Baía de Guantânamo e nas prisões no Brasil.

Cesare Beccaria (1738-1793), em trabalho fundador acerca da humanização das penas, teceu teses fundamentadas no princípio de que as políticas públicas devem procurar o maior bem para o maior número. Condenou as práticas bárbaras de seu tempo: o uso comum da tortura e da instrução processual secreta, o capricho e a corrupção dos juízes, as punições brutais e degradantes. As penas devem ser proporcionais à importância da ofensa. Pietro Verri (1728-1797), discípulo de Beccaria, apresentou uma narrativa das barbáries do Estado, àquela altura em estrita consonância com a “Razão do Estado”. Mas iria mais adiante, apostando que se trata de um livro que luta por um quádruplo: razão, verdade, justiça, dignidade. Não há razão sem verdade, nem justiça sem dignidade (não é digno de fé quem não age pela verdade; não tem razão quem não é justo).

Observações Sobre a Torturaé um livro representativo do iluminismo do século XVIII, e relata a aplicação da tortura quando se buscavam os responsáveis para a peste que assolou a Milão de 1630. É uma narração intensa, perturbadora, angustiante, lutando contra a barbárie praticada pela tortura, pelo uso da força bruta, pelo obscurantismo, pela mediocridade, pela ignomínia, pela estupidez e pela crendice. De outro modo, é uma aposta na razão, no conhecimento, na inteligência, na arte do desvelamento. Verri cita Cícero (no discurso Pro Silla): “A tortura é dominada pela dor, governada pelo temperamento de cada um, tanto de espírito quanto de membros, ordenada pelo juiz, dobrada pela dor, corrompida pela esperança, debilitada pelo temor, de modo que entre tantas angústias não resta nenhum lugar para a verdade” (2000, p. 113). O maior problema é que o obscurantista não é capaz de entender o que diz Cícero (em sua síntese da razão), quanto mais a assertiva de que a dignidade é fruto dessa mesma razão[2].

Além desses, Thomas Paine (1737-1794) em seu Os direitos do homem(1989) será leitura obrigatória, bem como a linha da desobediência civil interposta por Thoreau na Defesa de John Brow (1966 &1987). Paine combateu na Revolução Americana e depois na Revolução Francesa. Seu lema pessoal era: “Onde não há liberdade, aí está meu país”. Ainda dizia: “A Lei é o Rei”. Historicamente, pelo pano de fundo, há a inicial Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, lastro da Revolução Francesa de 1789. Portanto, algumas das principais tentativas de enfocar a igualdade e a isonomia datam do Iluminismo (“humanizar o direito”).

 

Michelet: O saber revolucionário

Jules Michelet(17981874) era um historiador que nasceu sob a tradição da Revolução Francesa e assim trouxe desde tenra idade uma formação diversificada: o republicanismo ardorosotemperado com o romantismo, ambos transmitidos pela educação paterna. Tanto Michelet quanto o Positivismo (de Comte e de Condorcet) depararam-se com um fato/problema herdado do Iluminismo e da Revolução Francesa — uma nova crise: o presente é questionado (ou convulsionado, na França de 1848 e 1871) e o futuro interrogado (portanto, incerto).

Michelet pensava e comparava com os tempos de seu pai, artesão que cantava a romanza enquanto compunha. Percebera que a maquinaria retiraria todo o controle da produção dos operários, transferindo o funcionamento do sistema ao próprio ritmo da maquinaria e da grande indústria. Quando voltado à educação, Michelet era um combatente do período sangrento, criticando Robespierre e Saint-Just. A proposta destes é conhecida: “A França ainda não promulgou leis sobre a educação no momento em que escrevo, mas provavelmente nós as veremos sair do corpo dos direitos do homem. Tenho, pois apenas uma palavra a dizer: a educação na França deve ensinar a modéstia, a política e a guerra” (Saint-Just, 1989, p. 65 – grifos nossos). Ora, se a lei existe para que não se tenha guerra (ou não se faça “justiça com as próprias mãos”), por que a educação a ensinaria? Para que o povo pudesse se defender dos príncipes?

Para Saint-Just, assim como para todos os partidários do chamado realismo político, a política (ou o poder, seu substrato) é sinônimo da violência: como irmãos siameses. O mais irônico, entretanto, é que Michelet estava muito mais próximo do espírito da revolução do que Saint-Just, como se vê logo na Declaração de Intenções (preâmbulo) da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1793: as causas da infelicidade do mundo são o esquecimento e o desprezo pelos direitos naturais do homem. Afinal, para evitar a tirania, os cidadãos devem sempre comparar os atos do governo com a finalidade de todas as instituições sociais. Especialmente para que a administração pública estabeleça os deveres correspondentes a ela e ao legislador, o objeto de sua missão.

A Declaração de 1793 diz em seu artigo 9 – “A lei deve proteger a liberdade pública e individual contra a opressão dos que governam”. Ou, como se vê reforçado pelo direito de resistência à tirania, explicitamente, no artigo 11 – [...] “aquele contra quem se quer perpetrá-lo com violência tem direito de repeli-lo pela força”. O artigo 18 dirá que “A lei não reconhece nenhuma domesticidade”. Sentido também reforçado pelo artigo 27 – “Que todo indivíduo que usurpe a soberania seja imediatamente levado à morte pelos homens livres”. Seguido pelo artigo 33 – “A resistência à opressão é consequência dos outros direitos do homem”. Mais uma vez no artigo 34 – “Há opressão contra o corpo social quando se oprime um único de seus membros. Há opressão contra cada membro quando se oprime o corpo social”. Por fim, se era possível ser ainda mais taxativo, no artigo 35 – “Quando o governo viola os direitos do povo, a insurreição é para este e para cada porção deste o mais sagrado dos direitos e o mais indispensável dos deveres” (Brandão, 2001, pp. 47-52 – grifos nossos). Portanto, os direitos do homem de 1793 eram garantias do povo contra as elites do poder; os direitos do homem eram e são a garantia contra a impunidade.

Para Michelet, o novo humanista/socialista, preciso ter fé, vocação[3], paixão, dedicação para sair da menoridade e da subserviência: “A primeira pergunta da educação é esta: ‘Tendes fé? Inspirais fé? [...] Que a criança creia nas coisas que poderá, feita homem, comprovar pela razão” (Michelet, 1988, p. 219 – grifos nossos). Afinal, não se pode reconhecer nenhuma domesticidade ou menoridade provocada. Os melhores exemplos que encontrou vieram dos clássicos gregos e romanos, pois a crença de atenienses e romanos estaria presente e viva por toda a moderna cultura ocidental: “O ateniense acreditava que toda cultura vinha da Acrópole, que sua Palas, saída do cérebro de Zeus, jorrara a luz da arte e da ciência. E isso se verificou: aquela cidade de vinte mil cidadãos inundou o mundo com sua luz; morta ela ainda o ilumina” (Michelet, 1988, p. 220 – grifos nossos). A fé é digna da razão.

Na verdade, não há razão digna sem fé: “Mas a fé digna do homem é uma crença amorosa naquilo que a razão demonstra. Seu objeto não é esta ou aquela maravilha acidental, mas o milagre permanente da natureza e da história” (Michelet, 1988, p. 221).  Para ter fé, é preciso retomar o passado, as origens, os clássicos. Fé não é fanatismo, porque é um dom de amor e assim não é estéril. Só a Revolução investiu de coração na educação popular: “O único governo que se empenhou de coração na educação do povo foi o da Revolução. A Assembleia constituinte e a legislativa estabeleceram os princípios sob uma luz admirável, com um sentido verdadeiramente humano” (Michelet, 1988, p. 212).

O investimento na educação deu-se nos três níveis: fundamental, médio e superior. Mesmo os revolucionários de 1793 (já Jacobinos[4]e sanguinários) souberam verter em política pública o valor da educação, para um povo, para um Estado, para uma história que se inicia. Na Declaração de 1793, aassistência pública obrigatória aos cidadãos infelizes (artigo 21 – grifos nossos) surge associada ao fortalecimento maciço e massivo da EDUCAÇÃO PÚBLICA (artigo 22): “A instrução é necessária a todos. A sociedade deve favorecer ao máximo os progressos da razão pública e tornar a instrução acessível a todos os cidadãos” (Brandão, 2001, p. 50 – grifos nossos). Sem educação não há confiança no direito. É óbvio que, tanto lá quanto cá, sem educação não há razão pública, porque não há consciência política – só se conhecendo a menoridade, o assistencialismo e o patrimonialismo que tanto serviram e servem às elites do poder (novas e velhas). O objetivo da educação, então, seria transmitir e fortalecer a fé na Nação ou na formação do Estado-Nação que nasceria com a Razão de Estado (Michelet, 1988, p. 222). Mas uma Razão de Estado baseada na soberania popular[5](Brandão, 2001, p. 51). Portanto, a educação tem que ser direta e simples: objetiva e contextualizada. Mas, isto não significava perder a sensibilidade, tal qual perceber que os mais experientes deveriam ensinar nas primeiras séries. O mais curioso, entretanto, é que desde a Revolução Francesa estava inscrita a necessidade do aprender a ensinar:

Os homens da mais alta hierarquia do Estado e da ciência aceitaram as mais humildes funções do ensino. Lagrange e Laplace ensinaram matemática. Mil e quinhentos alunos, homens feitos, muitos já ilustres, concordaram em retomar os bancos escolares, aprendendo na Escola Normal a ensinar (Michelet, 1988, p. 214 – grifos nossos).

 

Este aprender a ensinar é tão móvel e movente do espírito de cada um que se predisponha que, também no exemplo da Revolução Francesa, aprendia-se ensinando e, com isso, produzia-se conhecimento por pura inspiração criadora da mente aberta:

Eles estudaram, como se combatia, e em três meses fizeram o curso de três anos [...] Imaginai o espetáculo de um Lagrange que, em meio à lição, estacava de súbito, sonhava... Esperava-se em silêncio. Por fim despertava e lhes entregava toda ardente, a jovem invenção, recém-saída de seu espírito. Faltava tudo, menos gênio. Os alunos [...] Recebiam pão junto com o pão do espírito. Um dos mestres (Clouet[6]) só aceitou como salário um pedaço de terra na planície de Sablons, onde viveu dos legumes que cultivava (Michelet, 1988, p. 215 – grifos nossos).

 

Esta Escola Normal (formação de professores) sofreu um revés, quase como se houvesse voltado ao ensino destinado à matematização da realidade ou à anterior metafísica. Porém, também os métodos da burguesia não seriam diferentes ou melhores (Michelet, 1988, p. 217). Neste momento específico, Michelet referia-se a Robespierre e a Saint-Just como abstratores de homens, pois simplesmente lhes abstraíam as vidas, nas guilhotinas de sua razão revolucionária muito peculiar. Portanto, o direito à educação é um direito à identidade. Michelet veria a Comuna de Paris. Com o olhar para o futuro, a educação transformadora (da Revolução de 1789) deveria se apoderar do passado: como se fosse à voz rouca das ruas que expressa a virtú do povo:

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(A Comuna de Paris DECRETA: O alistamento obrigatório é abolido; a guarda nacional é a única força militar permitida em Paris; todos os cidadãos válidos fazem parte da guarda nacional).
 

Hoje, sabemos que o juiz não deve ouvir a voz rouca das ruas, mas é ainda mais certo que sem sondar o espírito do povo, jamais se saberá qual é o espírito das leis. Por isso, pode-se dizer que Michelet foi fiel às leis, não aos reis:

“Como? O povo é assim?” [...] “Rápido, aumentemos a polícia, armemo-nos, fechemos as portas, passemos o ferrolho [...] Também nesse campo os criminalistas dominaram a opinião [...] Aí estão, artistas, vossos modelos... O bizarro, o excepcional, o monstruoso, eis o que procurais [...] A esses relatos pitorescos acrescentam teorias profundas pelas quais o povo, a dar-lhes ouvido, justifica a si mesmo a guerra movida à propriedade [...] Devo escavar a terra e encontrar as bases profundas desse monumento; a inscrição vejo-o bem, está oculta, escondida lá embaixo... Para escavar não tenho enxada, nem pá, minhas unhas bastarão [...] Queria chegar ao fundo da terra. Mas, desta vez, não é um monumento de ódio e de guerra civil que gostaria de exumar [...] “Legibus fidus, non regibus”. Fiel às leis, não aos reis [...] Para citar um exemplo, eles não quiseram ver que a questão penitenciária dependia da questão da instrução pública[7][...]Parece que os remédios específicos não faltaram. São cerca de cinqüenta mil no Bulletim des lois [...] A crítica do presente pelo passado, pela comparação variada dos povos e eras diferentes [...] A depressão e a degeneração são apenas exteriores. O conteúdo subsiste. Essa raça sempre teve vinho no sangue; até naqueles que parecem mais extintos, encontrareis uma centelha [...] Entraves exteriores e vida forte que reclama de dentro: esse contraste produz muitos movimentos falsos, uma discordância nos atos, nas palavras, que choca à primeira vista [...] A economia de palavras beneficia a energia dos atos [...] o que é sonho no jovem transforma-se no ancião em reflexão e sabedoria [...] As mulheres do povo, particularmente, forçadas mais do que as outras a ser a providência da família e do próprio marido [...] com o tempo chegam a atingir um espantoso grau de maturidade [...] Conheci algumas [...] já não pertenciam à sua classe, nem a outra qualquer: estavam acima de todas. Eram extraordinariamente prudentes, penetrantes, até mesmo em assuntos dos quais não se poderia suspeitar que tivessem qualquer experiência [...] Disso resultou uma mudança profunda nas ideias e na moralidade. O homem constrói sua alma de acordo com a situação material (Michelet, 1988, pp.115-129 – grifos nossos).

 

Como vimos, provém da Revolução Francesa o leque aberto que iria recobrir muitas outras perspectivas políticas, sociais, populares e comunitárias – vislumbra-se claramente, por exemplo, a afirmação teórica do chamado direito à revolução ou, simplesmente, sublevação, insurreição, destituição violenta do Poder Constituído. Vimos igualmente O espírito da Revolução de Saint-Just (1989) – um programa constitucional para a revolução, e que não deixa de configurar a institucionalização do mesmo processo. Assim como Kafka (1997) em combate ao Estado de Direito Nazista.

No fundo, nos crimes cometidos, vemos refletir-se a alma das pessoas e da sociedade em que vivem. Já com os tipos penais, e com as penas consequentes, temos o nível de organização da cultura, o formato que o povo conseguiu imprimir ao Estado. Por isso, os crimes e as penas são fontes ricas, preciosas, para quem quer demonstrar o que a sociedade é capaz de produzir e em que nível se encontra nesse longo processo civilizatório.

O objetivo do sistema penal, argumenta-se, deve ser o de encontrar penalidades severas o bastante para seguir as finalidades específicas de segurança e ordem; qualquer coisa além disso é tirania. A eficácia da justiça criminal depende principalmente da certeza da punição, mais que de sua severidade. Ou seja, a impunidade das elites é o pior exemplo a ser seguido em matéria de controle social. Afinal, punindo a corrupção passiva das elites do poder, o Estado de Direito sinaliza ao povo que não se trata de controle social de classe, a abater somente os mesmos pobres de sempre. Sem cuidar do povo não há defesa social equivalente e de nada adiantam os direitos fundamentais burgueses. Neste sentido, o Estado de Direito brasileiro ainda tem muito a aprender com os ideais de 1789: o fundamental realmente é ver além dos horizontes do poder. E mais, precisamos saber e ter bem claro que a história tem seu preço e, no caso específico da manjedoura do Estado de Direito, este custo foi passado à história como um legado de resistência:

Foi nas profundezas do submundo intelectual que esses homens se tornaram revolucionários: ali nasceu a determinação jacobina de exterminar a aristocracia do pensamento [...] O mundo dos subliteratos não tinha princípios; tampouco alguma instituição de tipo formal. Era um universo de gente à deriva — nada de cavalheirescos discípulos de Locke resignados às regras de algum jogo implícito, mas brutos partidários de Hobbes colhidos em meio à briga pela sobrevivência. Isso não ficava a menor distância de le monde que o café do salon (Darnton, 1987, pp. 31-33 – grifos nossos).

 

Bem ou mal, foram os jacobinos (afastados pelo nobre jurista) que construíram as bases do atual Estado de Direito. Ocorre, porém, que o Estado de Direito jacobino não era forrado somente para as elites do poder: o povo lutou, morre e matou pelo seu direito. Não será diferente o sentimento do povo brasileiro, mutilado por séculos em seus direitos básicos (e também quanto ao mensalão), e nisto se equivale aos seguidores traídos por Hobbes – para os mais pobres e para os mais sábios, devem ser punidos em primeiro lugar os governantes que sempre ingressam nas fileiras da impunidade.

Particularmente, penso que o bom advogado deve defender as cores da justiça e não apenas a bandeira de seus clientes, sobretudo se esses são os inusitados seguidores de Lo >Toda citação, mesmo indireta, não pode ser descuidada da honestidade intelectual.

  • No Brasil, a legalidade só é inconveniente quando bafeja as elites ou classes dominantes?

     

    Bibliografia

    AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo : Boitempo, 2004.

    BECCARIA, C. Dos delitos e das penas. São Paulo: Martin Claret, 2003.

    BRANDÃO, Adelino (org.). Os direitos humanos: antologia de textos históricos. São Paulo: Editora Landy, 2001.

    CAPELLA, Juan Ramón. Os cidadãos servos. Porto Alegre-RS : Fabris Editor, 1998.

    DARNTON, Robert. Boemia Literária e Revolução: o submundo das letras no antigo regime. São Paulo : Companhia das Letras, 1987.

    FOUCAULT, Michel. “Omnes et singulatim”- para uma crítica da razão política. Tradução de Selvino J. Assmann, do original IN : Dits et Écrits 1954-1988, Vol. IV. Paris : Gallimard, 1994.

    ______ Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes; 1977.

    KAFKA, Franz. O Processo. 9ª Reimpressão. São Paulo : Companhia das Letras, 1997.

    MICHELET, Jules. O Povo. São Paulo : Martins Fontes, 1988.

    PAINE, T. Os direitos do homem: uma resposta ao ataque do Sr. Burke à Revolução Francesa. Petrópolis: Vozes, 1989.

    SAINT-JUST, L. A. L. O espírito da revolução e da Constituição na França. São Paulo: Universidade Estadual Paulista, 1989.

    THOREAU, H. D. Desobediência Civil. Lisboa: Antígona, 1966.

    ______Defesa de John Brown. Lisboa: Antígona, 1987.

    VERRI, Pietro. Observações sobre a tortura. São Paulo : Martins Fontes, 2000.

    WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2003.     

    WEBER, MAX. Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro : Zahar Editores, 1979.

     

    Vinício Carrilho Martinez
    Professor Adjunto II da Universidade Federal de Rondônia
    Departamento de Ciências Jurídicas
    Doutor pela Universidade de São Paulo




    [1]http://www.conjur.com.br/2012-dez-24/retrospectiva-2012-direito-penal-brasileiro-encruzilhada.

    [2]Veja-se ainda em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5123.

    [3]Para Max Weber (1979), na Ciência como Vocação, a fé transmuta-se em vocação: trabalho.

    [4]“O Despotismo da Liberdade”.

    [5]A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 (a original) definia soberania de modo bastante distinto (artigo 3): “O princípio de toda soberania reside essencialmente na Nação. Nenhum corpo, nenhum indivíduo, pode exercer uma autoridade que não emane expressamente dela” (Brandão, 2001, p. 44). A diferença básica está em que o conceito de Nação corresponde a um todo orgânico, como se lhe faltassem irregularidades, oposições (direito de sedição), contradições. Já a ideia de povo pode (ou não) incluir (excluir) a realidade da luta de classes que, a seu tempo, Michelet bem visualizou.

    [6]NE: Louis Clouet (1751-1801) descobriu o princípio do aço fundido e impulsionou a fábrica de armas (Michelet, 1988).

    [7]Trata-se da nota de pé de página, n. 01, à página 121, de O Povo, de Michelet, conforme citado.

  • * O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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