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Gente de Opinião

Vinício Carrilho

O Avesso do Direito


            Será que encontraremos alguma coisa de Brasil aqui, neste direito ao avesso?

O livro inaugural de Camus, O Avesso e o Direito, tem valor de depoimento. Camus considera que é o livro que tem mais “amor verdadeiro” (1995, p. 17), observando-se pelo olhar de uma filosofia da compaixão. Reconhece que a fonte de sua arte está no livro juvenil – escrito aos 22 anos –, um mundo de pobreza e de luz em que viveu por muito tempo. Lembranças que o preservariam de dois graves males: ressentimento ou satisfação.

            A pobreza nunca foi sua desgraça, porque é nela que se espelha a riqueza. Alega que se corrigiu da indiferença porque, circunstancialmente, foi colocado entre a miséria e o sol: “O sol ensinou-me que a história não é tudo” (Camus, 1995, p. 18). Mas também não é o nada inanimado do museu de cera: “Na África, o mar e o sol nada custam” (Camus, 1995, p. 18). Portanto, a barreira está no preconceito e na burrice (irmãos siameses). Não há como se impor princípios mais fortes do que o próprio caráter (daí a opção pelo sol e não o devaneio pela história dos outros; normalmente a dos vencedores).

Primeiro a condição humana, solidificada pelos dias ensolarados e cansativos da sobrevivência; depois o flerte com a ontologia: do concreto ao abstrato da vida. Isto Camus aprendeu em casa, com a lição dos pais: a não ter inveja. O pai foi morto em combate, a mãe era lavadeira. Porém, só em Paris reconheceu claramente seus valores, confrontando-se com a miséria dos subúrbios frios e sem sol. A colônia lhe deu o sol e o calor, a metrópole o frio e o distanciamento. Carregaria essa mácula para sempre. Camus não sabia possuir (um Mujica das artes). Sua liberdade terminava com o acúmulo dos bens. Assim, apreciava a casa vazia dos árabes ou dos espanhóis. Dizia preferir trabalhar – e morrer – no quarto de hotel. Porque a felicidade burguesa o entediava e assustava.

Não se deleitava com o sucesso da própria obra, mas sim com o momento germinal da escrita – o ato em si –, instante em que se cruzam a imaginação e a inteligência: “Esses instantes passam assim como nascem” (Camus, 1995, p. 25). O ofício de escritor lhe trouxe o dever da verdade: ridícula fraqueza. Ironizando-se, vivia na sociedade do riso. Entretanto, também ironicamente, trazia o espectador que tem um encontro consigo: “As solidões reúnem aquilo que a sociedade separa” (Camus, 1995, p. 27). Por isso, não seduzia seus adversários ou críticos; o só que alimentaria o jogo das vaidades: “Desfrutar de si é impossível” (Camus, 1995, p. 29). Pois: “só vivemos verdadeiramente algumas horas de nossas vidas” (Camus, 1995, p. 30).

O homem lhe parecia a injustiça em movimento: a honra é a virtude dos injustos. E como homem imperfeito também precisava da sua. Antes dessa consciência – homem maduro ou aos 22 anos – caminhava com embriaguez. Desde o primeiro trabalho, retratou o admirável silencio de uma mãe e o esforço de um homem para reencontrar o equilíbrio entre o amor e a justiça. Esta é sua pátria, em que a morte é um silêncio feliz.

1º Conto: A Ironia

            Conhecera uma mulher paralisada do lado direito: “só tinha no mundo a metade de si mesma, quando a outra já lhe era estranha” (Camus, 1995, p. 39). (A exceção ora paralisa, ora mutila a sociedade). Outrora agitada e tagarela, estava reduzida a não-falar e à imobilidade. No entanto, outro rapaz se interessava pela velha mulher – via ali uma verdade. Só, ficava num canto como um cachorro intimidado. Rabugenta por tudo que passara, adquiriu uma voz de mercado. Analfabeta, seus dias se rendiam a Deus; a filha, contudo, irritava-se porque rezava tanto.

Entretanto, não lhe fazia companhia. Estava a velha mulher entregue, imersa na “miséria do homem de Deus” (Camus, 1995, p. 41). Ignorante de outros símbolos, a idosa dizia que não gostava de cinema; quando, em verdade, nada compreendia. Talvez por isso, com o tédio iminente, como medo do téte-a-téte com Deus, ansiava pela presença do rapaz. Este, por sua vez, querendo sair com os demais, sentia uma contradição feroz: condolências com a senhora e vontade de esbofeteá-la para soltar sua mão. (Nisto se apresenta o duplo do fascismo: adoração pelo sentimento vago; ódio pelo indivíduo). Com o medo próprio da morte, a mulher pôs-se a chorar – e a filha disse, com todos já na rua: “Ela gosta de ficar no escuro” (Camus, 1995, p. 44). (Na exceção, não cabe o método do claro-escuro).

            Ainda na Ironia, um velho se lamentava que os jovens pouco sabem sobre a idade: “e que é preciso perder tudo, para saber um pouco” (Camus, 1995, p. 46). (Na exceção, perde-se tudo, sem nada ganhar). Ele falava, contava e falava de novo, mas isso não poderia durar. Não seria mais escutado. (Na exceção, à exceção de poucos, ninguém fala). O velho se sentia inútil, incômodo, insidioso. Não queria voltar para casa, mas no bar ninguém o queria; apensar de gostar do silêncio de sua casa: “o cérebro vazio” (Camus, 1995, p. 47). (A distopia da exceção tem de remover a esperança). Por fim, acabaria preferindo andar e tomar topadas pelo caminho, porque em casa se sentiria horrorizado consigo mesmo. (A exceção não reconhece a Ágora). Sentia-se esmagado ao pensar que no amanhã só haverá o mesmo. (Na exceção não há história dos homens, só louvor aos mitos). Nesse estágio da vida, diante do sorriso indiferente do céu, já caído, o velho fechou os olhos: “Ele é de lua! Tudo estava dito” (Camus, 1995, p. 50).

            Outra idosa se junta ao enredo, cuidadora de filhos e de netos. Com a consciência de matriarca, aos 70 anos, exibia rigidez e intolerância. Tivera nove filhos. Porém, os netos em idade de juízo viam nela apenas uma atriz. Também sofria de vômitos dolorosos e sempre desmaiava após discussões de família. Um dia ficou de cama e chamaram o médico: no primeiro o doutor dia viu um mal-estar; no segundo, câncer de fígado; no terceiro, icterícia grave. O neto mais novo continuava a ver nisso apenas uma dramatização mais requintada. O menino tinha na avó a prior repressora: “E há uma espécie de coragem desesperada na lucidez e na recusa de amar” (Camus, 1995, p. 53). (A exceção não permite a recusa e nem a indiferença). A senhora levou sua representação até à morte. O neto nada sentiu, só chorou no enterro porque todos choraram “e, então, do outro lado, toda a luz do mundo” (Camus, 1995, p. 55). Três mortes diferentes, mas com o mesmo sol aquecendo os ossos.

2º Conto: Entre o Sim e o Não

            Os paraísos são os que se perdem – até que o emigrante (ou banido, pelo Estado de Exceção) volte para sua pátria (Camus, 1995, p. 57). É a emoção pura, como a flexão de um gesto – e esta é a felicidade: “o sentimento piedoso de nossa infelicidade” (Camus, 1995, p. 59). É como um homem que volta para sua casa e revê seu quarto, assim como era na infância. Mesmo ali, o céu ainda precisaria ser apreciado pelos pobres, em frente de casa.

A mulher volta para a casa da mãe, com a morte do marido no campo de batalha. O problema é que só fala da falta que sente pelo pai dos filhos. O filho que volta da escola ama sua mãe, contudo, ela nem saberia como retribui. Os netos são filhos da avó, porque a mãe trabalha fora por muitas horas. Espera-se, no fundo, que o menino cresça e, com seu reconhecimento, evite-se a dor. No final, o que conta é que o menino que faz os deveres, fica mais velho, torna-se homem.

A jovem mãe, surda, fora pega de surpresa e brutalizada por um desconhecido em sua casa e terminaria com uma grave comoção cerebral. Para o menino, agora homem, a casa parecia oca. O amor que sentia pela mãe estava corporificado, vivendo um elo com a “velha mulher pobre, de destino comovente” (Camus, 1995, p. 66). Quando experimentava o sentido profundo do mundo, era sempre a simplicidade que lhe vinha. Quando despojados, “a vida inteira resume-se a uma imagem” (Camus, 1995, p. 68). Vive-se aquela hora entre o sim e o não, sem esperança mas também sem desgosto de viver. (O Estado de Exceção faz o tempo parar, num eterno suspense, em tempos de suspensão dos sentidos verdadeiros). Ele não sabia mais se vivia ou se só recordava. Sentia uma indiferença serena e primitiva. Contudo, no fundo, era uma bela luta pela lucidez, como se afastar da conversa mole de que o condenado à morte vai pagar sua dívida com a sociedade; pois sim, “vão cortar-lhe o pescoço”. Pronto. Estaria revelado o realismo dos que preferem “olhar o seu destino nos olhos” (Camus, 1995, p. 72).

3º Conto: Com a Morte na Alma

            Em Praga, lançado nas ruas, sem falar a língua, desligava-se da vida. Seus habitantes não transpiravam nada de sua existência. (Aliás, esta é certamente uma das principais características do regime de exceção: não revelar a essência do poder). Seu dinheiro quase não dava para o hotel e as refeições dos próximos seis dias. No modesto restaurante, as pessoas pareciam não ter idade e nem cor. (É o efeito de suspensão, do Estado de Exceção). Comunicando-se por duas ou três palavras em alemão, sentia-se incomunicável. Estava, então, com medo de ficar reduzido aos seus miseráveis pensamentos: “Todo país onde não me entedio é um país que nada me ensina” (Camus, 1995, p. 77). A comida ruim – a certeza de ser feroz e covarde – também provocava náusea e angústia.

Por isso, decidiu dormir mais tempo e explorar metodicamente a cidade. Tentava transformar a revolta em melancolia. (A exceção, por certo, aniquila a revolta possível e tem na melancolia um endereço indefinido; mesmo em se tratando do fato de que a revolta é o sentimento mais indesejado, a melancolia, ao contrário, poderia provocar o sonho da utopia). Havia então uma “face macilenta da inquietação” (Camus, 1995, p. 80). Esperava em vão que seu coração ficasse menos sólido; à espera de que a música do mundo entrasse mais facilmente. Pelas manhãs, ao revés disso, era colocado bruscamente de volta à realidade sem cenário que o atormentava. (O cenário da exceção é surreal).

Neste cenário insólito, um vizinho de quarto morrera trancado sem que soubesse. Há dias sem pronunciar uma única palavra, o coração parecia explodir em prantos. Até que acabou salvo pela ajuda externa: a chegada dos amigos. (Na exceção, em que vigora a Quinta Coluna, a ajuda só pode ser externa – assim como o reforço da traição).

De Praga foi a Viena, mas levava na bagagem a sensação de ser prisioneiro de si mesmo. Depois, na Itália, sentiu que o país fora feito para sua alma: “A paixão encaminha-se progressivamente para as lágrimas” (Camus, 1995, p. 86). Recebeu em Vicenza todos os sinais do amor, “para quem não sabe ficar só – isto é, todo mundo” (Camus, 1995, p. 87). O sibilo das cigarras é um mistério do céu, de onde caem a indiferença e a beleza. Ali percebeu a importância do sol para sua vida, além do amor pelo mundo da pobreza de sua infância. (A exceção é difícil e paradoxal). Ficaria feliz, por fim, porque há idealistas para colocar as coisas em ordem.

4º Conto: Amor pela Vida

            Em Palma, pensava e sentia que a desconcentração na alegria define a verdadeira civilização. Sem os cafés e as viagens não haveria viagem. E privados das máscaras, como estrangeiros, “estamos totalmente na superfície de nós mesmos” (Camus, 1995, p. 97). Os espanhóis lhe pareciam personagens de Giotto; encontrava ali otimismo e sentido social. Em Ibiza tinha vontade de amar, como se tem vontade de chorar: um tempo de desejo sem objeto. (A exceção objetiva a todos, por isso não há desejos). Esperava o momento em que sua sede renasceria.

5º Conto: O Avesso e o Direito

            Uma mulher à beira da morte recebe uma modesta partilha da irmã e resolve investir na aquisição do seu próprio túmulo, “de tal forma que se tomou de um verdadeiro amor pelo seu túmulo” (Camus, 1995, p. 104). Já tinha o nome gravado em ouro. E nas visitas dominicais pensava que estava morta aos olhos do mundo: “A vida é curta, é pecado perder tempo” (Camus, 1995, p. 107). O que conta é ser humano e simples. O que conta é ser verdadeiro e agraciar a Humanidade. A personagem deseja apenas ser consciente; ainda que as pessoas não queiram que seja lúcido e irônico. Pois, a grande coragem ainda está em manter os olhos abertos. Ele escutava a ironia, a garantia da liberdade, mas sabia que na exceção não há sol.

CAMUS, Albert. O Avesso e o Direito. Rio de Janeiro – São Paulo : Record, 1995.

Vinício Carrilho Martinez

Professor da Universidade Federal de São Carlos

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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