Sábado, 20 de outubro de 2012 - 17h12
Há muitas formas de se pensar o direito a partir do ideário da Justiça.
Realmente, talvez não haja questão mais complexa, difusa, divergente do que traçar/definir o direito como garantia da Justiça. Para a maioria dos juristas, aliás, a Justiça é objetivo do direito. Para a minoria dos juristas, mais presa ao formalismo, dogmatismo, positivismo jurídico, o objeto do direito são as normas jurídicas, quer dizer que a “ciência do direito” deveria estudar a lei – o restante, a exemplo da Justiça, poderia ser consequência da investigação realizada. Só por este debate que inicial aqui apresentado se percebe a dificuldade de se ter definições mais claras do que se espera para a Justiça. Ainda bastaria pensar que para alguns, sem que a Justiça Social seja uma realidade, simplesmente é falha toda a missão; para outros não, pois o objetivo da Justiça é “dizer o direito” e não resolver todas as mazelas e desigualdades sociais.
Então, o que é Justiça? Pode-se pensar como conjunto complexo que regula/articula:
No Brasil, a partir da Constituição Federal de 1988, a solidariedade construída como instrumento da Justiça é uma orientação constitucional:
- é objetivo fundamental (artigo 3, I e III)
- é diretriz de política externa (art. 4, IX)
- é ditame de justiça social (art. 170)
- é princípio da ordem social (art. 193)
Como instrumento da Justiça, o direito precisa se afirmar em alguns caracteres ou idealizações com base na construção de uma realidade social compartilhável:
Ainda pode-se dizer que o direito:
Há ainda dois marcos generalistas, ontológicos, isto é, que acompanham a história institucional, mental, social, moral, cultural da Humanidade:
Todavia, no caso específico da correlação entre direito e Justiça, em que os preceitos legais são advertidos e contrariados (ou afrontados) pela discrepante realidade do sistema penal brasileiro, é necessário (re)inventar uma abordagem axiológica constitucional mais justa e ajustada à modernidade: “E daí a urgência de um Direito Constitucional ‘altruísta’ como novo nomos da Terra, capaz de contestar o princípio da soberania e os interesses da razão de Estado como fundamento exclusivo da legitimidade política e da liberdade” (Carducci, 2003, p. 59). Portanto, proporcionalmente, as equações sócio-jurídicas a que se conformam as sucessivas gerações de direitos coadunariam interesses individuais e meta-individuais. Historicamente, o que temos é uma remodelação da própria jurisdição constitucional que congrega, perfeitamente, direitos individuais e coletivos. A partir de exemplos concretos, como o Código de Defesa do Consumidor e as individualidades presentes no Cooperativismo, pode-se/deve-se pressupor a relevância do próprio direito à Justiça.
O direito à Justiça como construção jurídico-estatal
Seguindo-se o filósofo do direito estadunidense, John Rawls, o direito congrega uma concepção própria, específica, de Justiça. A determinação de um ponto de partida equidistante entre todos os membros da sociedade definiria melhor a chegada, limitando-se as desigualdades decorrentes, ao eliminar a desigualdade inercial. Delimitando-se a “posição inicial” de todos, mais igualitariamente, a definição das próprias regras não seria injusta, afinal, em posição equilibrada, todos os membros ativos da sociedade decidiriam em conjunto o complexo social, institucional, jurídico que querem para si. Como não sabem a posição final que caberá a cada um nesta sociedade, as estruturas sociais seriam criadas de modo mais imparcial – não adianta edificar vantagens em determinados setores se ninguém sabe quem seria responsável por sua direção. A esta situação de equilíbrio diante realidade e das oportunidades, John Rawls denomina de véu da ignorância: “A ideia de posição original deve ser tratada como um procedimento de apresentação e que, portanto, qualquer acordo alcançado pelos parceiros deve ser considerado ao mesmo tempo hipotético e não histórico” (2000, p. 220).
Todos ignorariam as vantagens, os privilégios, as desigualdades construídas, porque ninguém sabe definir sua posição no sistema de status. É como se ignorássemos a desigualdade. Como os atores sociais se reúnem para decidir que regras constituirão, sem saber qual posição cada um ocupará na estrutura social, nivelando-se todos (operários, capitalista, juiz, escravo), que regras escolheriam? O resultado de tal equipamento cognitivo, moral, jurídico, seria a estipulação da isonomia, o êxito em evitar as alianças e conchavos na escolha dos meios, salvaguardar a autonomia dos agentes contratantes, garantir a universalidade e imperatividade dos preceitos coletivamente definidos:
As partes, portanto, decidem de modo racional, por um conceito que maximize suas vantagens, porém a ignorância em relação a situação particular delas garante que este procedimento seja justo, por exemplo, as partes não sabem qual a sua concepção de bem, porem elas sabem que possuem uma. Assim, elas decidem por um conceito de Justiça que possibilite a realização de suas concepções de boa vida, independentemente de quais concepções são estas[1].
Ao eliminar as injustiças do presente, os atores estabelecem regras livres, independentes dos acordos que poderiam definir os privilégios do futuro. Lembrando-se, por fim, que a autonomia seria realmente o grande feito desta obra, pois a lógica da construção presente no auto+nomos assegura que cada um poderia dar normas a si mesmo.
Seu objetivo é demonstrar que a Justiça como equidade independe de ideias metafísicas (religiosas e filosóficas), ao passo que é uma construção lógica, necessária, racional; portanto, como projeto social, a Justiça precisa apenas acionar as forças políticas e sociais básicas ao seu acionamento. O que John Rawls deseja evitar é a concepção de Justiça como uma verdade universal ligada à natureza e à identidade essencial da pessoa: “A ideia é que numa democracia constitucional, a concepção pública de justiça deveria ser, tanto quanto possível, independente de doutrinas religiosas e filosóficas sujeitas a controvérsias [...] a concepção pública da justiça deve ser política, e não metafísica”(2000, p. 202). A teoria da justiça como equidade proposta pelo autor tenta arbitrar entre a tradição do pensamento liberal em Locke – a liberdade de pensamento e de consciência, certos direitos básicos da pessoa e da propriedade –, bem como em Rousseau: a igualdade das liberdades políticas e os valores de vida pública. O que leva Rawls a propor, num primeiro momento, dois princípios de justiça - a saber:
Separados, cada um dos princípios regem as instituições democráticas num campo particular, não só no que diz respeito aos direitos, às liberdades e às oportunidades, mas também às reivindicações de igualdade. E mais ainda: na segunda parte do segundo princípio há a garantia de valor dessas proteções institucionais. Tomados conjuntamente, esses princípios regem as instituições básicas que tornam efetivos esses mesmos valores. Para John Rawls, a sociedade constitui um sistema equitativo de cooperação social entre pessoas livres e iguais. Desse modo, supõe, a teoria da justiça como equidade atinge o seu objetivo – encontrar uma base pública para um acordo político – além de que se encontra posta uma concepção de política da Justiça, desde que publicamente aceita. Assim, afirma o autor:
...essa concepção proporciona um ponto de vista publicamente reconhecido a partir do qual todos os cidadãos podem verificar, uns diante dos outros, se suas instituições políticas e sociais são ou não justas. Ela lhes permite julgá-las apresentando razões suficientes e válidas, reconhecidas como tais entre eles e que são evidenciadas por essa própria concepção. Do mesmo modo, cada cidadão pode examinar as principais instituições da sociedade e a maneira pela qual elas se combinam para construir um sistema único de cooperação social, quaisquer que sejam a posição social ou os interesses mais particulares desse cidadão(Rawls, 2000, p. 210).
Como se vê: “o objetivo da teoria da justiça como equidade não é metafísico nem epistemológico, mas sim pragmático; pois ela não se apresenta como uma única concepção verdadeira e sim como uma base para um acordo político informado e totalmente voluntário entre cidadãos que são considerados como pessoas livres e iguais”(Rawls, 2000, p. 211). Nesse sentido, John Rawls refere-se ao princípio da tolerância para que as diferenças existentes entre ideias políticas em conflito, mesmo que não possam ser eliminadas completamente, possam conviver em beneficio da preservação de uma cooperação social fundada no respeito mútuo. A seguir, veremos outros fundamentos da teoria da justiça como equidade:
1. A sociedade constitui um sistema equitativo de cooperação entre pessoas livres e iguais – aideia de cooperação social pressupõe alguns elementos:
- a cooperação social é distinta de uma atividade coordenada apenas social e institucionalmente, a exemplo das ordens emitidas por uma autoridade central. A cooperação deve ser guiada por regras, publicamente reconhecidas, e por procedimentos que aqueles que cooperam aceitam e consideram como regendo sua conduta a par da razão;
- a cooperação implica a ideia de que os seus termos são equitativos, de que cada participante pode razoavelmente aceitá-los, com a condição de que todos os outros também os aceitem igualmente;
- a perspectiva de cooperação social exige que se tenha uma ideia da vantagem racional a que concorre cada participante, isto é, do seu próprio bem. Essa ideia de bem estar social especifica aquilo que todos os envolvidos na cooperação procuram atingir, quer se trate de indivíduos, famílias, associações ou mesmo o Estado-Nação (Rawls, 2000, pp. 214-5).
2. concepção política da pessoa – os cidadãos, na cultura política de uma democracia, consideram- se livres:
- os cidadãos consideram-se livres por serem capazes de rever e de modificar a concepção de bem em função de motivos pessoais e razoáveis, e podem fazê-lo se assim o desejarem;
- os cidadãos consideram-se a si mesmos como livres na condição de fontes originárias de reivindicações legítimas, independentemente se são derivados de deveres e/ou de obrigações;
- os cidadãos consideram-se livres por serem capazes de assumir a responsabilidade dos seus fins, ou seja, são considerados cidadãos aqueles indivíduos capazes de ajustar suas aspirações em função daquilo que podem razoavelmente esperar obter.
Haveria uma espécie de régua ou métrica em que o direito não poderia se abster de aplicação, pois abaixo desse nível mora a desigualdade desumanizante. Portanto, o limite atende ao estabelecimento de um maximin, um limite máximo, intransponível, em que se minimiza o prejuízo, estabelecendo o máximo a que se pode chegar na mitigação da igualdade, da validade atribuída à dignidade:
Na verdade, se as preferências gostos e similares são considerados irrelevantes para a justiça respeitosa e apenas eles são, então os valores finais dessa justiça são os feixes de bens de consumo dos indivíduos. [...] Portanto, as desigualdades de quantidades relevantes para a justiça são a priori antes multidimensionais que unidimensionais. Na verdade, justificativas importantes do interesse do estudo das desigualdades unidimensionais baseiam-se no caso multidimensional. Primeiro, a análise do caso multidimensional baseia-se em conceitos, propriedades e resultados do caso unidimensional. Segundo, a consideração de rendas, da sua igualdade e da limitação das suas desigualdades pode ser justificada por consideração por considerações e conceitos igualitários multidimensionais [...] Em particular, as várias propriedades que equivalem à retificação, à isofilia ou à dominância de curvas de concentração ou curvas de Lorenz foram estendidas a três conceitos: 1. Especificamente mais igual; 2. Renda (em todos os preços) mais igual; 3. Uniformemente mais igual [...] A relação entre essas três comparações é que “uniformemente mais igual” implica “renda mais igual”, que implica “especificamente mais igual” [...] A mais estrita dessas comparações, a relação (3), é a usada para a definição do maximin multidimensional que leva à superequidade eficiente e, portanto, à justificativa de equalizar as rendas ou restringir a sua desigualdade (KOLM, 2000, p. 394-6).
Como sempre, o problema está na premissa: em John Rawls seria o “véu da ignorância”; em Kolm, a estipulação da isofilia, a demarcação de quem, quando, onde se é “mais especificamente mais igual”. Na metáfora da botânica, a isofilia emprestaria aos seixos sociais a semelhança, a proporção necessária à lógica exigida pela ramificação social, para que fosse verdadeiramente equidistante, equilibrada, como na “igualdade de todas folhas de um mesmo ramo vegetal” (isofilia).
O que se depreende, finalmente, é que a Justiça é um processo social ou produto político, no sentido de que se parte de um conjunto de finalidades estipuladas/negociadas individual e coletivamente, ou seja, a Justiça é um conjunto de direitos que se constrói em meio ao debate e à negociação política dos interesses e demandas colocados no cenário global. Trata-se, sempre, de uma Justiça Política.
Bibliografia
CARDUCCI, Michele. Por um Direito Constitucional Altruísta. Porto Alegre : Livraria do Advogado, 2003.
KOLM, Serge-Christophe. Teorias Modernas da Justiça. São Paulo : Martins Fontes, 2000.
RAWLS, John. Justiça e Democracia. São Paulo : Martins Fontes, 2000.
Vinício Carrilho Martinez
Professor Adjunto II da Universidade Federal de Rondônia
Departamento de Ciências Jurídicas
Doutor pela Universidade de São Paulo
[1]Reis, Flavio Azevedo.A Posição Original em Rawls. Primeiros Escritos, V. 1, N. 1, P. 109118, 2009.
O que o terrorista faz, primordialmente?Provoca terror - que se manifesta nos sentimentos primordiais, os mais antigos e soterrados da humanidade q
Os direitos fundamentais têm esse título porque são a base de outros direitos e das garantias necessárias (também fundamentais) à sua ocorrência, fr
Ensaio ideológico da burocracia
Vinício Carrilho Martinez (Dr.) Cientista Social e professor da UFSCar Márlon Pessanha Doutor em Ensino de CiênciasDocente da Universidade Federal de
O Fascismo despolitiza - o Fascismo não politiza as massas
A Política somente se efetiva na “Festa da Democracia”, na Ágora, na Polis, na praça pública ocupada e lotada pelo povo – especialmente o povo pobre