O chamadodireito penal do inimigo, via de regra, associa o criminoso ao inimigo de Estado e procura nas chamadas teorias contratualistas do Renascimento (séculos XIV-XVI) a justificativa para o uso/abusivo do poder de repressão social. Nessas análises, os juristas costumam se associar ao pensamento de Hobbes (absolutista?) e Rousseau (irrealista?). Outro dia veremos que tais juristas empregam mal os clássicos do Renascimento, hoje indicaremos que – em paralelo a Hobbes e Rousseau – Pascal já denunciava esses abusos cometidos em nome do poder de Estado. A sentença endereçada ao tirano, aquele sujeito que viola o contrato social a fim de manter suas forças, não deixa dúvida: “Todos os homens se odeiam naturalmente uns aos outros”. Sua sugestão seria utilizar a razão em prol da vida social que se quer construir com ética e justiça, porém, também o homem mau procura por esta razão, ou seja, anseia pelo reconhecimento dos outros homens: “A maior baixeza do homem é a busca da glória”.
Mecanismo: uma regra de poder
No Renascimento houve um evento científico demasiadamente significativo e que, além de explicar logicamente, cientificamente o mundo (os fenômenos sociais e naturais), ainda explicaria a lógica do poder. O poder precisa de justificação e de legitimação contínuas, a fim de que se mantenha articulado, tenha uma utilização racional, equilibrada. Este movimento foi chamado de Mecanismo e se expressou de modo claro na Teoria da Soberania de Hobbes ou em máximas como “o saber é poder”, do filósofo e jurista Francis Bacon. No Mecanismo, há uma mescla entre racionalidade e empirismo, mas um constante alerta ao poder desmedido e que hoje seria denominado de Estado Penal (e seu direito penal do inimigo). O movimento do Mecanismo promoveu a razão necessária ao Estado Moderno, como Mecanismo de superação do “estado de necessidade da natureza”. O Mecanismo ofereceu o aporte do argumento lógico ao “poder instrumental” do Leviatã e, assim, empregou um sentido científico à dominação política e projetou a “dominação técnico-racional”, em compasso com o discurso do Estado de Direito:
O Mecanismo é uma filosofia da natureza segundo a qual o universo e qualquer fenômeno que nele se produza podem e devem explicar-se de acordo com as leis dos movimentos materiais. , escrevia Descartes a Plempius, . A fórmula será constantemente retomada no seu século: tudo na natureza se faz por (Alquié, 1987, p. 59).
Porém, no mesmo século XVII, o Mecanismo tinha uma fórmula simples: Tudo na natureza ocorre por meio de figuras e dos seus movimentos. É deste fluxo que advém a ciência clássica. Também é neste sentido que se pode dizer que o Mecanismo promoveu uma revolução na ciência sem ter sido uma teoria científica — distinguiu-se como uma nova racionalidade e por trazer outra forma de apreensão dos fenômenos. O próprio surgimento do Mecanismo se deu com uma descontinuidade, mas o sentido laico e comum é a necessidade de explicar os fenômenos da natureza exclusivamente pelas leis dos movimentos da matéria — e esta não tem alma. Esse típico pensamento mecanicista (tendo o cartesianismo por referência: a dúvida por método) logo ganhou a consciência do homem comum. Mas o Mecanismo não foi só uma ilustração filosófica, foi uma obra de concretude técnica ou, mais precisamente, de obras mecânicas (além da própria mecânica, enquanto parte da física):
MECÂNICA – tradicionalmente a teoria das máquinas, em particular as cinco “máquinas simples”: a alavanca, a cunha, a roldana, o parafuso e o molinete. Transformada durante a revolução científica para incluir teorias de colisão e outros problemas associados com corpos em movimento (Henry, 1998, p. 139).
O que também se percebe hoje com mais clareza é que o próprio Renascimento não foi uma era homogênea, recheada de grandes gênios e em meio a cursos revolucionários contínuos. Houve sim, como longo processo de amadurecimento e de profundas transformações, certos momentos ou fases em que dialogavam plenamente o moderno e o arcaico, o novo e as tradições, as mudanças e o sectarismo, a alquimia e a química, a RETA RAZÃO e o pensamento mágico:
“MIRABILIA” — literalmente, “coisas maravilhosas”. Usado para denotar máquinas ou autômatos que costumavam ser mostrados na corte em exibições, cerimônias, espetáculos teatrais e ocasiões similares e que pretendiam produzir, por meios ocultos, efeitos impressionantes ou surpreendentes, mas apenas divertidos (Henry, 1998, p. 22).
Esta mescla ou era de transição entre épocas tão díspares, até que se conhecesse todo o potencial do Renascimento, também conheceu obscuridades ou incertezas (aliás, muito apropriadas quando se trata de ciência):
Entretanto, o autor daquele livro seiscentista de ‘química’ empregava largamente uma simbologia de derivação alquimista, defendia a existência de uma real analogia entre as propriedades do arsênico e do antimônio e o comportamento dos animais (a serpente e o lobo) com cujos nomes as substâncias eram simbolizadas: ou seja, identificava (como tipicamente ocorre dentro do ‘mundo mágico’) as propriedades e as características dos objetos usados como símbolos com as propriedades e as características dos objetos ou das coisas reais simbolizadas (Rossi, 1992, pp. 331-332 – grifos nossos).
Esta análise — do livro Schema materialum pro laboratorio portabili sive Tripus Hermeticus fatidicus pandens oracula chymica, de Johann Joachim Becher (1689)— revela que havia magia no Renascimento, que o próprio desencantamento do mundo (como racionalidade progressiva) não é um processo uno, homogêneo, onipresente. Na verdade, ainda que talvez seja o período mais fulgurante da história humana (maior ainda do que as civilizações grega e romana), o Renascimento foi um processo tortuoso, contraditório e extremamente beligerante. Para Galileu, por exemplo, só a razão (consciência dos fatos) leva à verdade; no debate entre ciência (moderna) e fé deve prevalecer o argumento lógico (principalmente porque se deve aplicar essa lógica às próprias Escrituras):
Eu acrescentaria somente que, se bem que as Escrituras não possam errar, os seus intérpretes e expositores poderiam, entretanto, incorrer por vezes em erros, e de várias maneiras [...] Pois nem toda afirmação da Escritura amarra-se a uma obrigação tão severa como cada efeito da natureza [...] E quem quererá colocar um limite à capacidade do espírito humano? Quem ousará afirmar já ser conhecido tudo o que existe de cognoscível no mundo? (Galileu, 1988, pp. 18-19-20 – grifos nossos).
Entretanto, permaneceu vivo e se destacou esse espírito de desconfiança, ou melhor, de não-apostasia diante do conhecido e do conhecimento – ainda mais se o conhecimento fosse aplicado ao poder. Se a ação política não é em si matematizável, diante das próprias condições da realidade que permeia o realismo político, especialmente na relação entre objetivos e efeitos, ao menos pode ser melhor escalonada, promovendo uma adequação entre meios e fins. Nisto, a atividade política será, enquanto prática social, uma ação política fria, realista, calculista e, portanto, isenta de piedade, uma vez que o erro em política é sempre derrota e a derrota equivale à morte política: vita mea, mors tua. Ou seja, mesmo em se procurando pela ética na vida social, a construção do realismo político de Maquiavel não deveria causar tantos transtornos de entendimento, uma vez que sua ética-pagã nada mais expressa do que o fato de que a política é fria, calculista e isenta de piedade.
Pascal: a lógica aplicada à ética
Sob essa influência, mas em período subsequente, surgiu A. Comte-Sponville Pascal(1623- 1662): filósofo, místico, físico e matemático. Pascalfugiu à regra de sua época, valendo-se de uma maior sensibilidade. A frase mística o coração tem razões que a própria razão desconhece é uma síntese de sua doutrina filosófica: entre raciocínio lógico e emoção. Pascal foi um gênio matemático e também criou a primeira calculadora mecânica. Além de sua intensa atividade científica, ainda se dedicou a trabalhos de natureza filosófico-religiosa e, como teórico, destacou-se como um dos mestres do racionalismo e do irracionalismo. Pascal, o político-matemático, era um pensador de notável lucidez e desiludido, capaz de ver com radicalidade e certo revolucionarismo moderno. Pascalnão aceitou integralmente o Mecanismo, porque o entendia como um fator de reducionismo da realidade humana[1]. A técnica deveria ficar à mercê do homem, ser seu instrumento (e não o contrário). O homem é finito, inacabado, “aberto às experiências do mundo da vida” e não é tarefa nada fácil dar respostas definitivas quando o assunto é a “natureza humana” e o seu “universal”. De todo modo, esta “visão utilitária” da arte, da literatura, da política e da ciência florescerá até o século XVIII, incluindo os Enciclopedistas.
Ainda aprendemos, desde o Mecanismo, que a força inaugural da política sob a Razão de Estado repousa na virilidade; como uma das condições da virtù e, logicamente, como parte do mito da Razão de Estado está assentada em pressupostos da guerra e da violência. Por vezes, essa constatação deixou Pascal desesperado, neste momento se refugiava da sociedade que o cercava, mas sem se esconder no niilismo ou no individualismo apolítico. Há uma virtù em Pascal e, talvez, seja a de ser profusamente realista e sem utopias, desilusões, mágoas ou rancores — o que, certamente, é raríssimo de se ver no cotidiano da vida real. Como nos diz, pela razão dos efeitos: “A concupiscência e a força são as fontes de todas as nossas ações: a concupiscência produz as voluntárias: a força, as involuntárias”. (Pascal, 1994, p. 08). A concupiscência (seduzir o Outro pela caridade[2]) na vida diária poderia produzir ações controladas, condicionadas pela lógica (adequação entre meios e fins) e isto, para muitos, seria sinônimo de bom senso; mas, em política, como atividade fria, distante dos sentimentos[3], simplesmente implicaria em sedução, oratória, impressionismo ou dominação. Também podemos dizer que não lhe impressionava o maniqueísmo ou o messianismo puritano, como idealista sem realidade, pois não há mal sem o bem e vice-versa. Ao lermos o primeiro trecho de uma citação Pascal, temos a impressão de que parece retomar o lendário mito do homem, lobo do homem:
Todos os homens se odeiam naturalmente uns aos outros. Faz-se o possível para utilizar a concupiscência em benefício do bem público; mas isso é fingimento, e uma falsa imagem da caridade; pois, no fundo, é apenas ódio [...] fundamentaram na concupiscência e dela extraíram regras admiráveis de governo, de moral e de justiça; mas esse fundo infame do homem, esse fingmentum malum, está apenas coberto: ele não foi tirado [...] Injustiça. — Não encontraram outro meio de satisfazer a concupiscência sem prejudicar os outros (Pascal, 1994, p. 10-11).
Assim, o filósofo-matemático nos faz lembrar novamente de Hobbes e seu Homo homini lupus, porém não se deve confundir o individualismo do Renascimento nem com o hedonismo de um Epicuro, por exemplo, da Grécia clássica, nem com o niilismo ou cinismo abjeto atual. Isto fica ainda mais claro no próprio Pascal quando se refere à conquista e à glória:
A maior baixeza do homem é a busca da glória, mas este é também o maior sinal de sua excelência; pois, não importa as posses que tenha na terra, a saúde e a comodidade essencial que possua, ele não estará satisfeito se não for estimado pelos homens. Julga tão grande a razão do homem que, mesmo tendo alguma vantagem na terra, não estará contente se não estiver vantajosamente situado também na razão do homem (Pascal, 1994, p. 18).
Ódio ou luta de classes? O silogismo se apoia em metáforas! Em todo caso, deste realismo político, além da prática da navegação precisa, exata, ainda temos como derivado o Materialismo e o Positivismo (como perspectiva política, religião ou método). Este Homem Novo, marcado pelo individualismo, no período propriamente do Renascimento, não permitiu ver o Outro, mesmo sob constantes alertas morais, porque o EU era muito mais importante ao capital e sua expansão, do que o apego ao comus e ao ethos:
O eu é odioso [...] Em suma, o eu tem duas qualidades: ele é injusto em si, ao fazer-se o centro de tudo; ele é incômodo aos outros, ao querer sujeitá-los: pois cada eu é o inimigo e gostaria de ser o tirano de todos os outros[..] Cada um é para si, pois, ao morrer, tudo está morto para si. E daí cada um acreditar ser tudo para todos [...] Um homem que se põe à janela para ver os que passam, se eu estiver passando, posso dizer que ele se pôs aí para me ver? Não, pois não em pensa em mim em particular. E quem ama alguém por causa de sua beleza, ama-a de fato? Não, pois a varíola que matará a beleza sem matar a pessoa, fará com que não mais a ame (Pascal, 1994, pp. 12-12 – grifos nossos).
Contudo, esta lógica seria demasiadamente refeita a partir do que se chamou de a acumulação primitiva do capital, sobretudo, entre as duas grandes revoluções industriais. E deste modo temos que a lógica do poder, especificamente aquela que cria homens odiosos, frustrados e em luta acesa em sua ignomínia, são homens sem virtù e sem virtude ou porque tem a única “virtude” de se aliar à lógica do capital. O caso preciso estaria em adequar técnica e ética aplicadas ao poder, sobretudo para que o círculo vicioso se transforme em ciclo virtuoso.
Bibliografia
ALQUIÉ, Ferdinand et. al. Galileu, Descartes e o Mecanismo. Lisboa : Gradiva, 1987.
GALILEU, Galilei. Ciência e fé. São Paulo : Nova Stella Editorial ; Rio de Janeiro : MAST, 1988.
HENRY, John. A Revolução Científica: e as origens da ciência moderna. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Ed. 1998.
PASCAL, Blaise. Pensamentos sobre a Política. São Paulo : Martins Fontes, 1994.
ROSSI, Paolo. A ciência e a filosofia dos modernos: aspectos da Revolução Científica. São Paulo: Universidade Estadual Paulista, 1992.
WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro : Zahar Editores, 1979.
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