Quarta-feira, 30 de outubro de 2013 - 00h08
Há muitos axiomas que podem/devem ser lembrados quando tratamos do Estado – e mais ainda se falamos do Estado Moderno – ou Estado Pós-moderno, como se quer atualmente. Um desses axiomas, bastante conhecido do brasileiro, refere-se ao peso do Poder Político porque é lento, ineficiente. No entanto, o axioma pode ser definido mais genericamente:
Ø O Estado(especialmente o Estado Moderno) precisa de tecnologias políticas e formas de gerenciamento das instituições e dos institutos, públicos e privados, que reforcem a estabilidade no trato do controle social, notadamente a fim de que haja maior racionalidade[2] nas próprias decisões políticas que interferem na vida comum do homem médio.
Ø O Estado, a exemplo do exercício do monopólio legislativo, não pode responder com a imposição de criminalizações e penalizações de acordo com o senso comum, como se fosse obrigado a agir em socorro ao clamor popular – e mesmo que muitas vezes isto tenha ocorrido, como vimos no Brasil com a tipificação dos chamados crimes hediondos.
Ao contrário do que supõe a sociedade, o senso comum, o Estado é gravidade e, sendo gravoso, inscreve as ranhuras do poder organizado por todo o tecido social, impinge sua imagem e define a textura do controle social. Ao controlar, o Estado imobiliza ou tende a impor a restrição da velocidade (liberdade) para acomodar os anseios individuais e as ânsias desmedidas por poder.
Polisé política, mas também é polícia; a política, portanto, é a capacidade de policiamento da vida privada, por aqueles que participam ativamente da vida pública. Ao citar Virilio, nos diz Deleuze: “o poder político do Estado é polis, polícia, isto é, vistoria” (Deleuze, 2005, p. 60). O Estado vistoria ou deveria vistoriar (inclusive, impondo custódia) a muitos que “fazem” política – mas, certamente, o Estado vistoria os cidadãos (inclusive os que são vítimas da política).
No Brasil, historicamente, o cidadão (sobretudo os mais pobres) é vítima da política e da polícia. Aliás, políticos de profissão diziam em seus slogans e bravatas de campanha que a crise brasileira não era caso de política, mas sim de polícia, pois, do alto de seu elitismo, queriam reprimir ainda mais os descontentes.
De forma geral, o Estado nasceu para transformar o Nomos, nosso apego ao sedentarismo e territorialismo, em normas costumeiras ou escritas e positivadas. Porque, ao normatizar o direito de um povo, o Estado normaliza as relações sociais, absorvendo-as como parte de sua soberania. A soberania interioriza, isto é, torna normal, interior, própria ao poder[3], o que antes era tido por exterior; o que era externo, estranho, é absorvido como “normal”, regular, sendo absorvido, internalizado como novo ente da soberania[4].
O poder da política, portanto, está em resolver as contradições, assim como o poder de polícia[5] deve conduzir à regularidade, portanto, livre das contrariedades. Normatizar é tornar, retomar (ou retornar) a normalização, a condição natural, normal.
Para Virilio, o Estado é vistoria (contra a velocidade/liberdade) e gravidade (como sedimentos e adensamento cultural), porque o Estado necessita de estabilidade: “as portas da cidade, seus pedágios e suas alfândegas são barreiras, filtros para a fluidez das massas, para a potência de penetração das maltas migratórias’, pessoas, animais e bens. Gravidade, gravitas, é a essência do Estado” (Deleuze, 2005, p. 60). O Estado posto e o direito imposto.
Vemos, então, que o Estado não foi feito para a liberdade e muito menos para libertar: “Nesse sentido, o Estado não para de decompor, recompor e transformar o movimento, ou regular a velocidade” (Deleuze, 2005, p. 60). O Estado tende à conservação, manutenção. O Estado precisa conter as digressões, movimentações, restringir a circulação, para não alimentar a dissensão: “Para qualquer Estado, não só é vital vencer o nomadismo, mas controlar as migrações e, mais geralmente, fazer valer uma zona de direitos sobre todo um ‘exterior’, sobre o conjunto dos fluxos que atravessam o ecúmeno” (Deleuze, 2005, p. 59).
À diferença do passado mais remoto, o Estado Atual precisa se atualizar, adaptar-se ao curso da velocidade tecnológica – e ainda que isto pareça muito remoto, se pensarmos na extrema dificuldade de o Poder Político lidar com as manifestações populares instigadas pelas tecnologias de tipo wiki.
Velocidade e Política
Como descreve Virilio, já em 1977, as tecnologias da informação são as tecnologias da velocidade, onde vence quem transmite mais informações por segundo. É um projeto tecnológico de profundas transformações sociais, onde a própria lógica econômica se vê remodelada. Teríamos passado da era da economia política para a velocidade política. A mudança histórica, de acordo com Virilio, no entanto, havia sido avistada há muito tempo: “O engenheiro é celebrado como ‘sacerdote da civilização’ (Saint-Simon)” (Virilio, 1996, p. 30). O Estado Sedutor ou Estado Pós-moderno, por sua vez, condiciona a política à razão imagética: “Com os computadores e a televisão, a tela passou a assumir a condição de espaço público” [6]. É a metáfora das infovias. Porém, para Paul Virilio, é aí que se dá o convívio da liberdade e da libertinagem, pois:
O espetáculo da rua é a circulação, o pilgrim’s progress, movimento de progressão, de procissão, simultaneamente viagem e aperfeiçoamento, marcha equiparada ao progresso rumo a alguma coisa melhor, peregrinação que inundou a Idade Média [...] A interrupção do fluxo (do progresso), a brusca ausência de motricidade cria, inelutavelmente, uma corrupção quase orgânica das massas. ‘Espaços neutros, espaços sem gênero’, escreve Balzac, ‘onde todos os vícios, todos os infortúnios de Paris encontram asilo’ (Virilio, 1996, p.22-23 – grifos nossos).
É óbvio, mas é bom lembrar: não há Estado sem povo, afinal sem o elemento material, vivo, não há base de sustentação do poder. Se o espetáculo da rua é o que o povo faz, logo, espaço público sem sair de casa não existe e sem povo que discorde, questione, também não.
Por outro lado, a regulação do espaço público não limita e inibe a liberdade necessária à participação política? Esta é outra idiossincrasia presente na atualidade, pós-moderna, do espaço público. Em todo caso, Virilio chama atenção para o fato de que ainda precisamos abrir o leque da interpretação do Poder Político, precisamos distinguir o empiriocriticismo reticente, sobretudo, quando confrontado com a hermenêutica de um direito balizado pela descontinuidade. É preciso ter clareza na formulação de nova argumentação jurídica, em que se destaca a soberania agora obrigada a lidar com o direito difuso e não mais com o positivismo acolhedor da consciência silente.
Bibliografia
DELEUZE, Gilles & GUATARRI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. V. Rio de Janeiro: Editora 34, 2005.
PRETTO, Nelson de Luca. Uma Escola Sem/Com Futuro. Campinas-SP : Papirus, 1996.
VIRILIO, P. O Espaço Crítico. Rio de Janeiro : Editora 34, 1993.
_____ Velocidade e Política. São Paulo : Estação Liberdade, 1996.
[1]Paul Virilio é um filósofo e urbanista francês, autor de vários livros sobre as tecnologias da comunicação.
[2] Chega-se a ponto de dizer que, sem tecnologia, não há inteligência – porque também não haveria mais conhecimento.
[3] Ao se tornar própria ao poder, acaba apropriada pelo Estado. Porém, para ser apropriada pelo Poder Político, enquanto soberania institucional, precisa ser expropriada enquanto soberania popular.
[4] Juridicamente, no Estado de Exceção, a exceção é internalizada como regra, de tal modo que o que era exceção torna-se regra. A exceção ainda inclui a exclusão, afinal, trata-se de uma forma de poder (exceção) que não reconhece os iguais.
[5] Não se trata de mera retórica, mas o poder da política institui o Poder de Polícia, como poder vigilante e regulamentar.
[6] Conforme referência de Pretto: América: depoimentos. São Paulo: Cia. das Letras; Rio de Janeiro: Videofilmes, 1989. p. 134.
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