Sábado, 19 de janeiro de 2013 - 07h40
Há alguns anos, um determinado hospital na capital paulista atendia um baleado por mês, na região da cabeça. Hoje, esse mesmo hospital da periferia atende de oito a dez baleados na cabeça e no pescoço. Atira-se para matar com muito mais veemência do que no passado recente. Antes, anunciava-se o assalto – muitas vezes nem mesmo com arma de fogo. Hoje, ao menor sinal de suposta reação, há o disparo e a decretação da morte. Por que se mata com tanta facilidade?
Mata-se porque estamos em plena guerra civil, em meio à luta de classes com o que se chama na sociologia clássica de lumpemproletariado. Esta classe ou fração de classe social é formada por todo tipo de miseráveis produzidos pela sociedade capitalista e que, no Brasil e em boa parte do mundo, pega em armas para não morrer de fome e/ou vítima da própria violência que pratica. Formaria grande parte do que o sociólogo alemão Karl Marx classificou como exército industrial de reserva, ou seja, aqueles milhões de bandidos, criminosos, facínoras ou simplesmente miseráveis, desocupados, desempregados, famintos que ameaçam ocupar o lugar da classe trabalhadora que teima em reivindicar seus direitos trabalhistas.
Historicamente, o lumpem dirigiu a revolta dos escravos contra o Império Romano, guiados por um gladiador de nome Spartacus. Lutavam, em Roma, contra o que o jurista italiano Giorgio Agamben retratou do direito romano: Homo sacer. Um obscuro instituto da lei romana, em que uma pessoa se vê excluída totalmente dos direitos civis. Na mitologia judaico-cristã, está atrelado ao mito de Caim, o primeiro degradado filho da Terra. Com a imposiçao do desterro, Caim perde o humus, a ligação com sua terra natal, o liame com sua gente e com os significados culturais.
Caim perdeu o direito à herança cultural e assim a qualquer direito: o ser humano, como ser da Terra, tem direitos inerentes à natureza humana. Uma vez que perca esta identidade, a cobertura do direito que protege a origem do homem em sua filiaçao cultural e a determinação de um território, o indivíduo perde esta condiçao humana. Sem o direito, o humus, não germina a vida social e, portanto, o Homo sacer pode ter a morte física decretada por qualquer um, exatamente porque a morte espiritual já foi decretada há muito.
Na citação do romance Caim, do nobel português José Saramago: “os futuros historiadores tomariam a seu cuidado eliminar da crônica da cidde qualquer alusão a um certo pisador de barro chamado abel, ou caim, ou como diabo fosse o seu nome, dúvida esta que, só por si, já seria considerada razão suficiente para o condenar ao esquecimento, em definitiva quarentena, assim supunham eles, no limbo daqueles sucessos que, para tranquilidade das dinastias, nao é conveniente arejar (2009, p.70-71 – grifos nossos).
Todavia, o lumpem também teve papel decisivo na Revolução Francesa de 1789, como seguidores de Hobbes – uma gente decisiva e decidida a não-perder o acesso à história. Os netos e bisnetos desses sujeitos voltaram a ser invocados, como mercenários, por Napoleão Bonaparte (1769-1821). Chamados de Decembristas, formavam fileiras com milhares de soldados-mercenários. Nas revoluções operárias de 1848, na Europa, o lumpem esteve aliado ao proletariado, bem como Comuna de Paris (1871), considerado o primeiro governo popular da história.
Porém, com o tempo, passou a ser sinônimo de quinta coluna, esquecendo-se de toda e qualquer atuação positiva que pudesse ter tipo no passado. A expressão remonta ao general nacionalista espanhol Emilio Mola Vidal, um dos líderes fascistas na Guerra Civil Espanhola (1936-1939). O general avançou sobre a Madri dos revolucionários com quatro colunas de soldados, sendo a quinta formada por traidores que atuavam de dentro da cidade. Essa história foi imortalizada pelo jornalista e escritor estadunidense Ernest Hemingway, em peça teatral homônima: Quinta Coluna.
O prêmio nobel de literatura (1962) John Steimbeck imortalizou o lumpem como pessoas simples, degredados da vida pública e econômica, sem eira nem beira, mas inofensivos para a sociedade. Foram os personagens principais de uma irmandade altruísta no romance A Rua das Ilusões Perdidas, em que mendigos, maltrapilhos, famintos se apoiavam na comida e na bebida (talvez, mais nesse quesito). De certo modo, é uma homenagem ao grande Balzac, escritor francês do romance “Ilusões Perdidas”. Contudo, na literatura auto-retrato do escritor e presidiário francês Jean Genet, ele próprio como personagem central, o lumpem foi descrito como anti-herói anti-moralista: homossexual, mais do que tudo Genet lutou na prática e na teoria contra a moral burguesa, também conhecida como ética judaico-cristã.
Ainda no século XX, como fração de classe social do proletariado, o lumpem foi atuante na Revolução Mexicana de Emiliano Zapata, nas décadas de 1910-1920, e na Revolução Russa de 1917. No mesmo México, retornaria à cena revolucionária sob a liderança do Sub-comandante Marcos. Os zapatistas, como ficaram conhecidos, guiaram a revolta de camponeses, do próprio lumpem, dos pobres e massacrados pela ditadura político-institucional mantida pelo Estado mexicano e pelo Partido Revolucionário Institucional (PRI), por mais de sete décadas.
No breve século XXI, a Paris de 2005 viu as estruturas tremerem com a revolta popular contra o racismo, a discriminação, a negação de direitos aos pobres, miseráveis e, sobretudo, dos imigrantes do famoso Quartier Latin. (Os franceses ainda têm seu famoso Victor Hugo, com o clássico Os Miseráveis. Em 1825, após assistir à execução de um presidiário, Victor Hugo ainda escreveria O Último Dia de um Condenado).
Nas revoltas denominadas de a Primavera Árabe, o lumpem esteve dos dois lados da luta, a favor e contra a pax americana: a nomenclatura jurídica que interessa ao controle social e que tranqüiliza o capital, desconstruindo as forças que ameaçam a ordem e o progresso das elites. O lumpem tanto auxiliou a desbaratar a ditadura militar de mais de 30 anos de Hosni Mubarak, em 2011, quanto ainda presta serviços ao Império, contra o governo sírio, sendo apoiado por mercenários da empresa Blackwater, dos EUA. Como se vê, histórica e ideologicamente, o lumpem nunca esteve de um único lado nas várias frentes da guerra civil entre trabalho e capital.
No Brasil atual assumiu um lado próprio, pois quer o capital que lhe foi negado a todo custo – até porque essa é a referencia global – e está em luta contra os trabalhadores, os remediados e os burgueses. Outra diferença notável é que a classe trabalhadora, via de regra, luta pelo controle dos meios de produção e o lumpem tem lutas bem mais imediatistas. Revolucionária, a classe trabalhadora é progressista, luta por sua liberdade e contra todas as formas de opressão; o lumpem, ao contrário, é indeciso e costumeiramente atua de forma retrógrada, reacionária.
O proletariado luta pelo direito – o direito popular –, o lumpem apenas atropela todo e qualquer direito. A parca formação intelectual não lhe permite apreender as diferenças epistemológicas entre direito posto e luta pelo reconhecimento do direito. Não consegue diferenciar entre o direito que separa proprietários e não-proprietários (ele mesmo, o lumpem) e o direito que se quer construir com base na Justiça Social.
No Brasil de hoje, a classe trabalhadora reclama da falta de remuneração adequada, da quase-nenhuma distribuição de renda, do precaríssimo crescimento econômico, do não-desenvolvimento econômico; já o lumpem perdeu as poucas esperanças, se é que as teve algum dia, de trabalhar, de produzir inserido na ordem econômica oficial.
Reclamamos que a educação dos trabalhadores forma um imenso exército de analfabetos funcionais; o lumpem nunca foi à escola ou, se foi, agora a depreda. Os trabalhadores morrem nas filas dos hospitais públicos, o lumpem improvisa (ou seqüestra) médicos e equipamentos hospitalares para curar as feridas de bala, nos morros, favelas e periferias. Se der entrada em hospitais públicos, evidentemente, será preso.
Diante da atual estrutura de classes no Brasil, a guerra civil que assistimos tem o lumpem armado com fuzil AR-15 ou calibre .40, de um lado, e a sociedade nacional de outro. Não se trata de impor um novo estigma social, apenas de constatar e contabilizar uma obviedade social. Reformas penitenciárias, criminais e até mesmo sociais podem abrandar a crise de civilização que nos assola, ao combater a violência, mas sempre seriam uma fraude à dimensão do dilema.
Sem que se integre esta classe social, apelidada por Fernando Henrique Cardoso de “inimpregáveis” – incorporando-se um real significado econômico –, não há como fechar a fábrica que alimenta a criminalidade. Se não há como prender de 10 a 15 milhões de pessoas – é preciso reverter a lógica econômica –, então, resta-nos modificar séculos de privilégios das elites, revolucionar a distribuição de bens e de valores e assim incluir esses milhões de brasileiros.
Note-se que o lumpem realmente recusa o bolsa-família e as migalhas da indigência social: o tráfico é muitíssimo mais lucrativo. Por isso, sem que se promova uma profunda revolução institucional na cultura, na educação, na economia e no direito (colocando fim à criminalização de uma classe social), o lumpem vai acirrar muito mais esse quadro de guerra civil (em que muitas outras mulheres grávidas levarão tiros no rosto, na porta de casa).
O que se chama popularmente de banalização da violência – como se houvesse uma violência que não fosse banal – é o mais puro estrato da guerra civil secular do país. Somente no século XX, a história política do lumpem, do ex-escravo, do pobre e do miserável, do total excluído de significados, remonta à revolta da chibata (1910) e avança ao tempo da criação do crime organizado, quando a ditadura militar encarcerou criminosos comuns com ativistas políticos (décadas de 1960-1970).
O crime organizado no Brasil, alicerçado/escoltado pelo lumpemproletariado quer sim o poder e vemos isso quando CV e PCC financiam a formação de juízes, com dinheiro do tráfico, assim como bancam a campanha de senadores, a contratação dos melhores advogados (sic), para atuarem em defesa da organização criminosa e não da pessoa do preso.
Tal como em outras guerras civis, toda luta de classes tem de ser entendida como luta pelo controle do poder político que acompanha e estabiliza o capital. Para as classes sociais engajadas, conscientes do seu papel social (a exemplo do proletariado), a ordem dos fatores sociais e políticos é importante, porque revela partes de uma longa estratégia.
Para o lumpem, não só não importa o que venha antes – se o dinheiro subtraído ou o apoio político e jurídico – como a correntinha, o anel, o celular são confundidos com o próprio capital ou surgem como reflexo meio imediato desse mesmo capital. Sua dimensão cultural reduzida à recolha social, não lhe permite dimensionar as grandezas absolutamente distintas que estão presentes no anel e no capital em si.
De certo modo, é como se não soubessem o que é o capital, mas valorassem o bem de que querem se apossar. Talvez só conheçam o valor-dinheiro (e nisso se parecem com as elites burguesas), talvez desconheçam o significado da palavra butim, mas sem esta revolução social burguesa (uma vez que não há possibilidade de outra), que difunda o Estado de Direito nos extremos da pirâmide social, o lumpem não dará trégua e seremos abatidos no fogo amigo e inimigo. Aliás, se o crime organizado conta com verdadeiro Estado Paralelo, quem é amigo ou inimigo?
Este é o significado do direito que adiamos construir – como marco de uma sociedade burguesa, elitizada, classista, racista – e que hoje, como Estado de Direito para todos, é a evidente e única resposta jurídica e sociológica possível para a guerra civil que nos elimina indiscriminadamente. Nossa guerra civil é produzida por esta modalidade de luta de classes e, para que se resolva este descompasso, é preciso fechar as portas da fábrica da miséria humana brasileira.
Bibliografia
SARAMAGO, José. Caim. São Paulo : Companhia das Letras, 2009.
Vinício Carrilho Martinez – Doutor pela USP
Professor Adjunto II do Departamento de Ciências Jurídicas
Universidade Federal de Rondônia - UFRO
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