Terça-feira, 20 de novembro de 2012 - 16h38
Queremos indicar que a formação das bases da Razão de Estado determinou a constituição social de um direito repressivo, excepcional. Esta histórica legitimação da luta de classes manifesta-se, atualmente, no direito penal do inimigo. Veremos ainda que o sonho da paz internacional almeja a construção de um Estado Penal Internacional.
O direito penal do inimigo retrata uma sociologia do Estado e do emprego de meios excepcionais de poder, meios absolutistas de dominação. Neste sentido, o Estado Penal que abriga o direito penal do inimigo promove a legalização da luta de classes, a tipificação de crimes de pessoas (o indivíduo é criminalizado por pertencer a um determinado grupo social) e a criminalização das relações sociais, sobretudo as relações socioeconômicas em que os não-proprietários ameaçam a soberania do capital. O direito penal do inimigo criado e legitimado pelo Estado Penal desconsidera, em sua retórica jurídica, a tarefa histórica de preservação do capital e, ao retomar os pressupostos do Estado de Direito, aprimora apenas seus elementos restritivos. O Estado Penal não considera os fundamentos libertários, humanistas, civilizatórios do que se convencionou chamar de Estado Democrático de Direito. Portanto, o direito penal do inimigo refaz o caminho do poder absolutista. Apoderando-se da teoria da soberania, como em Hobbes, tudo será possível, todos os recursos serão dispostos para defender o Estado. Desde Maquiavel, os fins justificam os meios para se solidificar o Estado e não exatamente o contrato social. No entanto, desde o Renascimento, a Razão de Estado se afirma como justificativa para a criação de um direito e de uma estrutura política internacional fortemente repressiva. Por fim, observa-se que o uso de força excepcional não atende a necessidades sociais, mas sim à conservação do poder de Estado.
O Renascimento Político e o Estado Moderno
ORenascimento é o período da civilização europeia que se destacou entre 1300 e 1650, a partir do norte da Itália, mas que se desenvolveu com uma visão caleidoscópica e cosmopolita. Além de retomar a cultura greco-romana, o período gerou progressos e realizações nas artes, na literatura e nas ciências. Na Renascença ou “renascimento das ciências e das artes”, o homem passou a ser o centro do mundo. Alguns de seus maiores marcos são: declínio do Feudalismo; tomada de Constantinopla pelos turcos em 1453; invenção da imprensa; expansão ultramarina do capital e descobrimento da América; centralização de Portugal – este, essencial para o desdobramento do Estado Moderno porque aprimorou a centralização do poder e o monopólio legislativo. Mas, Renascimento[1]vem de renascer? De certo modo sim, como a retomada dos clássicos do passado glorioso: Grécia e Roma. Exemplos: 1) virtus e virtualis (potência e prudência) foram transformadas em virtù, na obra de Maquiavel (1469-1527)[2]; 2) O antigo direito público romano se converte em direitos individuais (Inglaterra) e em direito consuetudinário (Direito Germânico). Todavia, de outro modo não, a exemplo da fundação da ciência moderna ou na centralização e organização do Estado Moderno e no desenvolvimento progressivo do capitalismo europeu. Nesta fase, ainda inaugural da forma estatal que se tornaria hegemônica, certamente, Maquiavel é um dos nomes mais importantes e influentes. Contudo, é preciso ter claro que seu modelo de Estado (republicano) não poderia limitá-lo a uma condição de mero estrategista político antiético. Maquiavel costuma ser mais associado ao adjetivo pejorativo (maquiavelismo) porque não adotou a moral platônica-judaico-cristã, mas na verdade perfilou-se como pensador à moral romano-pagã. E que valores pagãos ou que ética política pagã é essa?
Seus valores são a coragem, o vigor, a fortaleza na adversidade, a realização na vida pública, ordem, disciplina, felicidade, força, justiça e, acima de tudo, a asseveração dos reclamos adequados de cada um, e o conhecimento e poder necessários para obter sua satisfação; aquilo que, para um leitor renascentista, Péricles vira corporificado em sua Atenas ideal, Lívio encontrara na velha República Romana, e cuja decadência e morte Tácito e Juvenal lamentaram em seu próprio tempo (Berlin, 2003, p. 43).
Aqui estariam a força e a astúcia necessária aos fundadores de Estado e cultivadores da ética-pagã presente nas religiões da modernidade, como a ética protestante. Todavia, os agentes dessa transformação foram os homens de virtù de Maquiavel. Mas, de onde provém o espírito empreendedor desses líderes (gigantes para seus povos) que os leva a transformar uma tribo, uma casta ou um conjunto de estamentos em Nação? Este sentido de Nação, de pertencimento a uma comunidade integrada politicamente, seria o outro elo fundamental ao surgimento do Estado Moderno; com a fixação do território, o nacionalismo se converteria em ação política integrada no Estado. A dificuldade de se ultrapassar os fortes laços culturais/tribais, por exemplo, gerou grandes dificuldades de unificação. O sentimento coletivo que estaria contido na Nação foi restaurado no Renascimento, com mitos como o de Armínio, na Alemanha.
A Nação e a sobrevivência do sangue social
A tribo (ou uma confederação de tribos) pode ser definida como a original ideia-força da Nação, a partir do alastramento e do aprofundamento do sentido de unidade, identificação e pertencimento (o que envolve, é claro, reconhecimento dos semelhantes). A tribalidade resulta de uma fusão de grupos e da absorção de suas peculiaridades: “O que realmente distingue uma tribo de um simples agregado de bandos é o sentimento de unidade existente entre seus membros e as distinções que eles traçam entre os que pertencem e os que não pertencem à tribo” (Linton, 2000, p.227 – grifos nossos). As tribos podem até se dividir e mesmo assim, habitando territórios descontínuos, manterem este sentido de unidade. Esta partição teria ocorrido por volta de 1600 para os europeus ocidentais, no período que descrevemos como Renascimento e já em meio às navegações ultramarinas. Apenas a perspectiva de território contíguo ou língua e cultura em comum não são fatores suficientes a esta transformação maior necessária à Nação. O sentimento de unidade substitui qualquer tipo de mecanismo formal na base da organização social. Neste caso, agem mecanismos de absorção de conflitos sem necessidade de um órgão central que os reprima, pois sem a presença de um poder central há controle social. O problema é que, com base no poder social, a Nação não se arregimenta em torno do Estado. Portanto, em nome da sobrevivência do grupo de sangue, todo poder seria sagrado. Naçãoé um povo:
A Nação seria uma espécie de liga dura entre etnia e eticidade:o Primeiro Contrato Social de Convivência Minimamente Natural e Pacífica. Sob esta ótica, talvez pudéssemos nos reportar ao momento em que o homem se tornou gregário e refinou sua capacidade cognitiva[3], quando a necessidade de sobrevivência motivou-lhe a lógica que o levaria a agregar-se aos outros, para sobreviver. O espaço da chefia não é o poder, para os fundadores de Nações e de Estados, mas sim o sentido de unidade. Com isso, nação e Estado se aproximam em termos de aglutinação do poder unificado. Quando se fala em Nação, portanto, é preciso considerar os vários componentes, como: raças, cores, linguagem(s) ou sotaques, cultura(s) e a livre-determinação. Porém, há outros fatores bem objetivos, tais como: a geografia, a economia, as estratégias políticas de organização, funcionamento e manutenção das vias sócio-políticas de governabilidade, a habilidade ou não de governar, a presença ou não da guerra. Assim, uma definição inicial de Nação seria algo como: “Um povo que vive sob um único governo central suficientemente forte para manter sua independência frente a outras potências” (Crossman, 1992, p. 20). A vantagem desse tipo de definição é que já se une, sub-repticiamente, Nação e Estado Moderno: “Um Estado deve possuir ou criar uma base de nacionalidade, e uma nação deve submeter-se a certa forma de controle centralizado[4], se é que qualquer das duas organizações quer perdurar” (Crossman, 1992, p. 20). Inicialmente sob a bandeira da independência, a união e a unidade de controle são de ordem interna e, posteriormente, passam a exigir o reconhecimento dos demais países. A nacionalidade, por sua vez, tem mais proximidade com o governo ou poder central (e até mesmo com uma possível variação de formas de governo). A guerra ou a presença/atuação massacrante de um Estado ávido por conquistas pode mudar a nacionalidade do povo todo ou dos habitantes de uma região. Também podemos pensar que esta transformação da nacionalidade ocorra por meio de deliberação popular. Neste outro tipo de exemplo, lembremo-nos dos plebiscitos realizados no Quebec, sob a premissa de se tornar independente. O nacionalismo, por sua vez, demonstrado inúmeras vezes na história da intolerância e, atualmente, no exercício da xenofobia, revela que é formado muito mais pela ignorância, ira, ganância do que pelo básico sentido de identidade. Por meio da somatória desses elementos e de suas (in)confluências poderíamos, então, chegar a um conceito (ou tipo histórico-ideal) também inicial de Estado-Nação:
Este vem a ser um tipo de vasilha em que se verteram os novos vinhos do capitalismo, nacionalismo, democracia. Esta estranha mescla está chegando a seu ponto de explosão e, apesar disto, persiste o continente de todos aqueles licores. Historicamente, foi o primeiro fenômeno moderno que apareceu; logicamente, encontra-se na base sobre a qual se tem erigido a maior parte das teorias e práticas políticas atuais (Crossman, 1992, p. 21).
Com isto, vemos em destaque os fatores de sustentação tanto do termo quanto do próprio modelo predominante. Apesar de ser uma criação europeia, o Estado-Nação é um modelo estatal que se espraiou por todos os continentes e culturas, tendo-se a certeza de que duas dessas condições são imperantes: nacionalidade e autoridade. Mas, é justo indagar, por que tanta dificuldade, estranhamentos e negações? É algo que se resolva apenas pela metamorfose do poder político ou há outro pano de fundo?
O Estado-Nação surgiu menos pelo propósito humano, do que por forças cegas fora do controle do homem e não se baseou em princípios perfeitamente definidos, senão que foi originado por determinados meios de troca econômicas e sociais que ocorreram na Europa entre os séculos XIII e XVI (Crossman, 1992, p. 21).
Por que devemos ter fronteiras entre povos que falam a mesma língua, com origem comum? Por que tantos obstáculos à comunicação e às trocas culturais? Por que, afinal, a humanidade (se é um todo-em-si) deve ser repartida em nações? De certo modo, o sentido de unidade foi inaugural para a Nação (nacionalidade), mas em muitos momentos não foi suficiente. Neste caso, a suposta necessidade garantiria um recurso extra de força e, assim, de justificativa para o poder, a Razão de Estado se converteu em poder de exceção (excepcio).
O poder a qualquer custo
A Razão de Estado se utiliza de um tipo de anátema para se converter em Estado de Exceção: em nome da soberania, há excomunhão dos meios de controle do poder. A Razão de Estado se utilizou do argumento da necessidade e da urgência a fim de promover a sua conversão em Estado de Exceção. Esta confusão deliberada entre necessidades mais ou menos determinadas(estado de alerta, de urgência, em decorrência de “calamidade pública”) e status da condição política foi o expediente encontrado para manter “reservas de forças” submersas (na forma de legalidade) e estando aptas a defender o Estado da sociedade. Assim, o Mito do Estado passou a buscar maneiras de sua permanência e a promover a segurança de si próprio. Como vimos, o mito do Estado (ou mito da Razão de Estado)pode ser reduzido à fórmula que transformou o poder soberano (absoluto) em Estado de Exceção. Bobbio assegura-se dessa afirmação, “a Razão de Estado transmutou-se em Estado de Exceção”, valendo-se da análise de que a máxima da Razão de Estado é a sentença dada por Maquiavel aos objetivos da política. Ao sentenciar que “os fins justificam os meios”, Maquiavel formulou a chamada Razão de Estado:
Esta máxima tornou-se o núcleo principal da chamada doutrina da Razão de Estado, daquela doutrina segundo a qual a política tem as suas razões e portanto as suas justificações, que são diferentes das razões, e portanto das justificações, do indivíduo isolado, que age tendo em vista seus próprios interesses. É como dizer que, em vista do interesse coletivo, ao político é lícito fazer aquilo que não é lícito ao indivíduo isolado ou, se quisermos, a moral do político não é a moral do indivíduo. Cosini de’ Medici costumava dizer, como repete Maquiavel, que os Estados não são governados com os pater noster. Um Maquiavélico como Gabriel Naudé, autor de um conhecido tratado sobre Razão de Estado, intitulado Considerazioni politiche sui colpi di stato (Considerações políticas sobre o golpe de Estado) [1639], escreve, citando Sharron, que “a bondade dos governantes seguem um caminho distinto daquele de um simples privado: os seus caminhos são de fato mais largos e mais livres, para compensar a grande, pesada e perigosa responsabilidade que recai sobre as suas costas” (Bobbio, 2000, p. 228).
Independentemente do trabalho de nomeação e apresentação das teses da Razão de Estado, por Botero, foi Maquiavel o seu precursor. Apresentadas as justificações do poder, Bobbio estabelece de maneira óbvia e transparente, este liame entre Razão de Estado e circunstâncias emergenciais (para nós, Estado de Exceção Permanente) retomando, exatamente, a ideia de que as necessidades impõem os meios aos fins: “As ações dos políticos, visivelmente contrárias à moral comum, deveriam ser explicadas e justificadas como derrogações decorrentes de situações excepcionais” (Bobbio, 2000, p. 229 – grifos nossos). Estas situações excepcionais são as tais necessidades ou em caráter de urgência que desobrigam ao poder, manter suas próprias ações sob controle — a exemplo da famosa Lei Patriótica dos EUA no pós 11 de setembro[5]. Mas que circunstâncias seriam essas, tão graves a ponto de subjugar a ética e capturar a lógica e o bom-senso a seu bel-prazer, escondendo-nos que o poder é um fim em si mesmo?
Essas circunstâncias resumem-se na categoria geral do Estado de necessidade, o qual vale como justificação de uma ação de outra forma passível de culpa e punição tanto para o indivíduo quanto para o homem público. Por “Estado de necessidade” entende-se aquele Estado do qual um sujeito, seja o indivíduo que age tendo em vista os seus próprios interesses, seja o homem político que age em nome e por conta de uma coletividade, não pode evitar aquilo que faz, isto é, não tem escolha. Todas as normas, tanto as morais quanto as jurídicas ou do costume, dizem respeito apenas às ações possíveis, as ações que podem ser cumpridas ou não cumpridas segundo a vontade do sujeito ao qual se dirige. Quando a agente encontra-se em uma situação na qual uma certa ação é necessária no duplo sentido de não poder não fazê-la (necessidade propriamente dita) ou de não poder fazê-la (ou impossibilidade), qualquer norma que comanda ou proíbe uma ação distinta é absolutamente impotente. Diz-se que necessidade não tem lei: não tem lei porque é mais forte do qualquer lei (Bobbio, 2000, pp. 229-230).
Afinal, por que se justifica tão tranquilamente esta subtração da normalidade, em que as regras perdem eficácia em “razão” de uma urgência qualquer, e que fora assim diagnosticada e declarada pelo próprio beneficiário do poder? A resposta parece que cabe bem nesta simples frase: “a necessidade não tem lei: não tem lei porque é mais forte do que qualquer lei”. Mas, a necessidade em si mesma, é uma condição inicial do uso/abusivo do poder no Estado de Exceção. Maquiavel será um predecessor contemporâneo dessa discussão, mas sem o definir ou sem saber claramente, quando equiparou Razão de Estado a Estado de Exceção, ou de necessidade, de acordo com a expressão mais utilizada. Afinal, sempre será cobrado porque “os fins justificam os meios”, mas o mesmo Maquiavel indicaria que os fins deveriam ser superiores aos meios: “se o Estado soçobrar, tudo está perdido. Vem daí o famoso parágrafo no quadragésimo primeiro capítulo do terceiro livro dos Discursos, onde diz ele que ‘quando é absolutamente uma questão da salvação do país de cada um, não pode haver considerações quanto ao justo ou injusto, o misericordioso ou o cruel, o louvável ou o vergonhoso; em vez disso, deixando de lado qualquer escrúpulo, é preciso que seja seguido até o fim qualquer plano que lhe salve a vida e lhe mantenha a liberdade” (Berlin, 2003, p. 70). Há exceção para que possa haver a regra; é preciso destruir para que se construa.
Assim, pregar esse paganismo como regra de conduta e ética opunha ao Ocidente uma “escolha racional” de custo muito elevado – esse era o preço a ser pago[6]. Em nome do paganismo do poder, pode-se sacrificar inclusive os valores judaico-cristãos mais caros ao Ocidente? Vale-tudo na defesa da Razão de Estado: “À famosa indagação de Dostoievsky (“Tudo é permitido?”), Maquiavel – que para Dostoievsky seria com certeza um ateu – responde: “Sim, se no fim – ou seja, a busca dos interesses básicos de uma sociedade em uma situação específica – não puder ser alcançada de nenhum outro modo” (Berlin, 2003, p. 73). Para esta leitura de que Maquiavel edificou o que hoje chamamos de Razão de Estado, é fácil perceber que “a necessidade não conhece a lei”. E nisso Maquiavel teria apenas seguido muitos outros antes dele, a começar de Aristóteles. Para Isaiah Berlin, entretanto, não é esta a posição de Maquiavel, pois as condições de suposta “anormalidade” estão muito mais presentes do que ausentes da relação política. Também o conceito de Razão de Estado impõe seleção de valores que Maquiavel desconheceria[7]: “O conceito de raison d’etat implica um conflito de valores que pode ser uma agonia para homens moralmente bons e sensíveis” (Berlin, 2003, p. 75). Porém, podemos indagar, além das necessidades serem a regra na vida social; há, ao contrário, muita clareza de que o conceito de Razão de Estado provoque conflitos de valores e de interesses: todos os papas foram homens de política. A ressalva, no entanto, é apenas uma: que conflito de valores é provocado pela Razão de Estado, se sua máxima diz que os fins justificam os meios? Por isso, pode-se dizer com segurança que sempre há uma reserva de força a ser empregada, se e quando se fizer necessário. Com a ressalva que esta força aditiva tem uma forma absolutista.
A Razão de Estado e a excepciosão absolutistas
A monarquia feudal, em decorrência da instabilidade inerente a sua estrutura política, acabou por gerar os princípios e bases do Estado Moderno: derrotar a guerra civil que ameaça a vida social; gerar recursos extras de poder. Suas duas faces forçaram a isso: de um lado paz, justiça e religião; de outro, a guerra. Por isso:
Aofinal do século XIII,ocorre umamudança decisiva que contém em germe a evolução futura e atransformação da monarquia feudal no que se pode denominar Estado moderno, pois esta forma de Estado éo ancestral direto,sem descontinuidades, do moderno Estado europeu atual (Le Goff, 2006, p. 405 – grifos nossos).
As necessidades do Estado (ou Estado de Necessidade) autorizaram desde sempre o espólio dos súditos, como antigamente se fazia para financiar guerras de conquista (Cruzadas) ou “auxiliar” o suserano. Por isso, o Estado moderno se reservou o “direito de apelar” para se defender de suas necessidades:
Em seguida, já que o Estado se reserva o direito de apelar em caso de necessidade aos bens de seus súditos, é preciso que esses bens existam e sejam protegidos: contra a arbitrariedade da violência feudal e a flutuação dos variados tipos de terra que favorecem o feudalismo, o Estado vai por intermédio de seus juízes permitir e proteger o desenvolvimento da propriedade individual[8](Le Goff, 2006, p. 406 – grifos nossos).
Este direito de apelar motivou a geração de meios de exceção e logo seria o próprio Estado de Exceção. Historicamente, um passo fundamental foi dado pela centralização de Portugal (Estado Moderno). Já o financiamento do Estado Moderno, internamente, deve-se à cobrança de tributos pelo trânsito livre, uma evolução do outrora “resgate de pilhagem” (Marx, 1984, p. 89):
O aparecimento do ouro e da prata americanos nos mercados europeus, o desenvolvimento progressivo da indústria, a rápida expansão do comércio e a consequente prosperidade da burguesia não-corporativa e do dinheiro deram as essas medidas um significado diferente. O Estado, que era cada dia menos capaz de dispensar dinheiro, mantinha a proibição da exportação de ouro e prata por razões de ordem fiscal (Marx, 1984, pp. 89-90).
Após esse processo inicial, com a segunda fase do desenvolvimento europeu, adveio o Fausto inglês: “A nação marítima mais poderosa, a Inglaterra, mantinha sua preponderância no plano comercial e na manufatura. Nota-se aqui a concentração em um só país” (Marx, 1984, p. 90). Sob este aspecto, a modernidade de Marx também se rendeu como herdeira àquela primeira fase da modernidade do colonialismo. No que concerne precisamente às múltiplas manifestações da Razão de Estado e do direito repressivo como controle social seletivo dos não-proprietários, no mundo contemporâneo, podemos salientar que há duas grandes correntes teóricas a serem observadas desde o Renascimento e que ainda perduram.
CORRENTES: Liberais (Grotius e Locke); Realistas (Maquiavel e Vico)
A ordem e o direito internacional deveriam restringir e, ao mesmo tempo garantir a soberania e a Razão de Estado. No entanto, para os realistas, a Razão de Estado só mantém segura com o emprego da violência:
Como o objetivo do Estado é sua própria sobrevivência, aqueles que se identificam com essa corrente tendem a dedicar-se ao estudo dos meios e mecanismos empregados pelos estados para conservar e acumular o poder necessário à sua própria sobrevivência enquanto Estado. Como o Estado é o responsável final por sua própria sobrevivência, o emprego da força militar e, em decorrência, a guerra e a preparação para a guerra são, em última instância, o instrumento essencial do Estado nas relações internacionais (Albuquerque, 2005, p. 30 – grifos nossos).
As necessidades convertem-se, obrigatoriamente, em Luta por Conservação do poder; antes de se converterem em cooperação. Com isto, perpassa a transformação da necessidade em Estado de Necessidade (ou Estado de Guerra, como ocorreu na formação do Estado Moderno):
Assim sendo, quando a necessidade de conservar ou acumular riquezas passa a esbarrar, necessariamente, na violação da necessidade de terceiros, seja para conservar, seja para acumulá-las, a cooperação se torna indispensável e, por sua vez, aumentando as oportunidades de convivência, aumentam as razões de conflito [...] a inevitabilidade da convivência leva à necessidade de cooperação e à inevitabilidade do conflito, e a superação racional do conflito pela cooperação leva à construção da ordem política (Albuquerque, 2005, p. 27 – grifos nossos).
Os liberais buscam subordinar os conflitos à racionalidade normativa: a racionalidade humana permite evitar o emprego da violência e os seus riscos inerentes, aprendendo-se com as experiências e a comunicação política inaugurada pelos mecanismos mediadores. Os atores (ou indivíduos envolvidos: pessoas ou grupos de interesse econômico) os conflitos de interesses em normas (mesmo que sem a participação legitimadora do Estado). As normas, então, funcionariam como meios e procedimentos capazes de evitar, solucionar ou limitar os conflitos (Albuquerque, 2005). Todo Estado(ou organização político-estatal, a exemplo do Estado de Cortes, pré-Renascentista e anterior ao Estado Moderno) luta por autonomia e soberania (centralização e unidade política em que não cabe superlativo). Esta é a era da luta por conservação (Honneth, 2003) a que se seguirá a espera pela fase do reconhecimento diplomático dos demais Estados (a exemplo do Kosovo).
É essa articulação que Maquiavel sublinha, de tal modo que estamos sempre postos na presença de vários termos simultâneos e constrangidos a pensá-los em função de suas relações, isto é, das ações e reações que exercem uns sobre os outros [...] Em suma, somente a constelação dos fatos é significativa: não podemos considerar o comportamento dos súditos senão em relação ao do príncipe e vice-versa, e é o fato de suas relações que constitui o objeto do conhecimento (Lefort, 2003, pp. 44-45 – grifos nossos).
Ainda no bojo do Renascimento a política recrutou o direito para ser o fiel da balança em defesa da Razão de Estado. A formação da Razão de Estado, neste sentido, resultou do poder de exceção que restou do absolutismo, mas, nos séculos seguintes, também precisaria legalizar a luta política em torno das classes sociais.
Legalização da Luta de Classes
A inovação social, tecnológica, econômica, política e cultural (ideológica) de um dos marcos do avanço/consolidação capitalista europeu, iniciada no século XV e com repique no século XIX, certamente traria modificações de ordem jurídica. Como diriam Marx e Engels (2003), um devido ajustamento entre infra e superestrutura. No caso específico do Estado Moderno, pode-se salientar a ocorrência da “laicização da política”: a) exclusão da religião (diante da Razão de Estado); b) diluição radical do imbricamento entre moral e política; c) aceitação “irregular e lenta” da perspectiva da modernidade. Outro destaque é a luta intestina entre o reconhecimento versus a conservação e a dominação:
Em outro passo [pode-se argumentar que] o direito não é constituído propriamente por relações sociais em geral, ou mesmo pelas relações de produção e de troca, mas por um sistema acabado de relações, por um sistema de relações caracterizado por um interesse de classe e defendido pela classe dominante (Naves, 1991, pp. 30-31).
É certo, entretanto, que não se acomete mais da ingenuidade de se supor um Estado Ético, na linha proposta por Hegel. Portanto, o Princípio da Igualdade jurídica, como certa construção do Estado Moderno, especialmente o modelo que se afirmaria com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (mas a de 1793), não ofereceria perspectiva muito diversa:
Na verdade, Marx vê a noção de “direitos iguais” herdada da época burguesa, como um tipo de reflexo espiritual da troca de mercadorias abstratamente iguais. Isto não quer dizer que para ele o conceito seja desprovido de valor, mas que ele reprime inevitavelmente a particularidade de homens e mulheres, os diversos talentos próprios de cada um. Ele atua assim entre outras coisas como uma forma de mistificação, ocultando o verdadeiro conteúdo das desigualdades sociais atrás de uma mera forma legal (Eagleton, 1999, pp. 48-49).
O que Marx indagava era acerca da igualdade diante do que, das próprias desigualdades sociais que só fazem aflorar as potencialidades de poucos? Por isto, igualmente, a ideia de uma legitimação de um estado de desigualdade estrutural, a partir do Estado Moderno, não lhe agradava. Como também lhe soava estranha qualquer proposta ou possibilidade de uma legalização da luta de classes:
Essa legalização da luta de classes significa que as formas de luta do proletariado sõ são legalmente reconhecidas se observam os limites que o direito e a ideologia jurídica estabelecem [...] As reivindicações jurídicas do proletariado devem conter um elemento desestabilizador, quer “perturbe” a quietude do domínio da ideologia jurídica (Naves, 1991, pp. 20-21).
Com interpretação semelhante, Lênin daria uma pista de que maneira o Princípio da Igualdade exigiria uma resposta fora/além do âmbito do Estado Moderno:
Compreende-se a importância da luta do proletariado pela igualdade e pelo próprio princípio de igualdade, contanto que sejam compreendidos como convém, no sentido da supressão das classes. Mas, democracia quer dizer apenas igualdade formal. E, logo após a realização da igualdade de todos os membros da sociedade quanto ao gozo dos meios de produção, isto é, a igualdade do trabalho e do salário, erguer-se-á, então, fatalmente, perante a humanidade, o problema do progresso seguinte, o problema da passagem da igualdade formal è igualdade real baseada no princípio: “De cada um segundo a sua capacidade, a cada um segundo as suas necessidades” (Lênin, 1986, p. 123).
Lênin, partindo do Engels d’A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, sistematizou assim as premissas do Estado de forma geral (e, é claro, também do Estado Moderno):
O Estado é o produto e a manifestação do antagonismo inconciliável das classes. O Estado aparece onde e na medida em que os antagonismos de classes não podem objetivamente ser conciliados. E, reciprocamente, a existência do Estado prova que as contradições de classes são inconciliáveis [...] Para Marx, o Estado não poderia surgir nem subsistir se a conciliação das classes fosse possível [...] Para Marx, o Estado é um órgão de dominação de classe, um órgão de submissão de uma classe por outra; é a criação de uma “ordem” que legalize e consolide essa submissão, amortecendo a colisão das classes (Lênin, 1986, pp. 09-10).
Desse modo, o “jovem Marx” reforçaria esta advertência crítica: “Hegel não deve ser censurado por ter descrito a essência do Estado moderno, como ele é, mas por ter imaginado que aquilo que é constitui a essência do Estado” (Reichelt, 1990, p. 15)[9]. No mesmo sentido, já apontava o próprio Marx:
A crítica da filosofia alemã do direito e do Estado, que teve a mais lógica, profunda e completa expressão em Hegel, surge ao mesmo tempo como a análise crítica do Estado moderno e da realidade a ele associada e como a negação definitiva de todas as anteriores formas de consciência na jurisprudência e na política alemã, cuja expressão mais distinta e mais geral, elevada ao nível de ciência, é precisamente a filosofia especulativa do direito. Só a Alemanha poderia produzir a filosofia especulativa do direito — este pensamento extravagante e abstrato acerca do Estado moderno, cuja realidade permanece no além [...] o representante alemão do Estado moderno, pelo contrário, que não toma em linha de conta o homem real, só foi possível porque e na medida em que o próprio Estado moderno não atribui importância ao homem real ou unicamente satisfaz o homem total de maneira ilusória (Marx, 1989, p. 85).
É nítida a crítica de Marx a uma possível Teoria Geral do Estado baseada neste ideal que possa permear as “estruturas jurídicas” vincadas no também ideal Estado Moderno. Na crença política da paz, isto ocorre porque não há, nunca houve na história política da Humanidade, um Estado dos Estados.
[1]Período também conhecido como Primeira Modernidade.
[2]Há uma educação humanista, antes de Maquiavel, aplicada à retórica (como “veículo de comunicação e de convencimento”) e o exercício da cópia, da imitação, do mimetismo dos “melhores” (clássicos).
[3]Por exemplo, desenvolvendo ou estimulando a linguagem e a comunicação.
[4]No chamado Estado Federal, via de regra, o centro do poder está alocado na União, a esfera superior da Federação.
[5]Ou a Lei de plenos poderes, no nazismo.
[6]Quando Hegel e Marx o negam, procuram atestar a luta por reconhecimento dos sujeitos, dos direitos e das demandas.
[7]Para Maquiavel não haveria esta escolha entre o bem e o mal, apenas aquilo que deve ser feito a fim de se manter o controle sobre o Estado, soberano e absoluto em seus domínios.
[8]Neste sentido, já estariam surtindo largos efeitos as chamadas Leis de Cerceamento, obrigando camponeses a deixarem seus lares e suas terras.
[9]Refere-se à edição “MEW” ou Marx-Engels Werke, Berlim, Editora Dietz.
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