Terça-feira, 20 de novembro de 2012 - 17h11
O mito do ESTADO DOS ESTADOS
Mesmo com ideais clássicos, humanistas, iluministas, como em Kant, apostando na constituição de uma paz perpétua, na criação de um cidadão do mundo, sabia o filósofo que, sem a presença forte do ESTADO DOS ESTADOS, a paz é apenas um armistício: um preparativo para a guerra. O supremo Princípio da Paz Perpétua, para Kant é: “que todo o mal que se lhe atravessa no caminho provém de que o moralista político começa no ponto em que justamente o político moral acaba[1]e, ao subordinar assim os princípios aos fins [...] torna vão o seu propósito de conciliar a política com a moral (1990, p. 159 – grifos nossos). Este mal estaria resolvido se houvesse a paz perpétua formulada pelo ESTADO DOS ESTADOS – uma promessa que intentou realizar com a ONU (Organização das Nações Unidas). Este debate opõe realistas (como Maquiavel, Vico) e idealistas (como Grotius, Locke). Em Vico é interessante destacar que a luta por conservação ou sobrevivência já antecipava a luta de classes, a partir das cidades e de seus fundadores de Estado e/ou de religiões (Vico, 1999, p. 232). Grotius apontaria em largo destaque a necessidade, as modalidades, as regras e os impactos principais tipos contratuais celebrados: Mas, quais são os atos chamados contratos? “De resto, todos os atos proporcionando utilidade aos outros, à exceção daqueles que são de pura beneficência, são chamados pelo nome de contratos” (Grotius, 2005, p. 576 – grifos nossos). Além da ilegitimidade da ruptura de se revoltar contra o estabelecido em consenso:
O Estado pode, pois, para o bem da paz pública e da ordem, interditar esse direito comum de resistência[...] Se esse direito de resistir subsistisse em cada cidadão privado, não teríamos mais uma sociedade civil [...] “Ele é rei absoluto e não depende de ninguém[2]” [...] “Deve-se obedecer ao que o Estado colocou à frente do poder nas menores coisas, nas justas e naquelas que não o são[3]” [...] “Agir em tudo com impunidade, isso é ser rei[4]” (Grotius, 2005, pp. 234-5 – grifos nossos).
Em certo sentido, há em Grotius uma mescla entre governante e soberano, entre a Razão de Estado e o Príncipe, entre o indivíduo e o poder público. Porém, em outra situação parece apontar para uma equivalência única que deveria reger a luta por conservação, mesmo diferindo público de privado: “A causa eficiente principal numa guerra é geralmente a pessoa cujos interesses estão em jogo. Na guerra privada, o privado; na guerra pública, o poder público, sobretudo o poder soberano [...] cada um é naturalmente defensor de seu direito. É a razão pela qual as mãos nos foram dadas” (Grotius, 2005, pp. 234-5 – grifos nossos). Na ausência significativa da autoridade constituída e do poder reconhecido que evitem que os conflitos se degenerem em guerra ou luta por sobrevivência entre Estados – dado que não há um Estado dos Estados – a luta pelo poder entre indivíduos é muito semelhante a que se dá entre Estados:
Afirmando a permanência do conflito, rejeitando a ideia de uma forma política que carregue em si a estabilidade, o pensador reconhece a permanência dos acidentes e, consequentemente, designa a função do príncipe como a de um sujeito que adquire a verdade num movimento contínuo de racionalização da experiência (Lefort, 2003, pp. 46-47 – grifos nossos)[5].
Este pensador a que se refere Lefort é Maquiavel. Ao sentenciar que “os fins justificam os meios”, Maquiavel formulou a chamada Razão de Estado:
Esta máxima tornou-se o núcleo principal da chamada doutrina da Razão de Estado, daquela doutrina segundo a qual a política tem as suas razões e portanto as suas justificações, que são diferentes das razões, e portanto das justificações, do indivíduo isolado, que age tendo em vista seus próprios interesses. É como dizer que, em vista do interesse coletivo, ao político é lícito fazer aquilo que não é lícito ao indivíduo isolado ou, se quisermos, a moral do político não é a moral do indivíduo. Cosini de’ Medici costumava dizer, como repete Maquiavel, que os Estados não são governados com os pater noster (Bobbio, 2000, p. 228 – grifos nossos).
Weber demonstrará muito bem esta relação/passagem do Estado Moderno à Razão de Estado, a partir do exemplo do Estado nacional alemão. Da perspectiva da eterna luta pela manutenção (conservação, sobrevivência) nasce uma imbricação entre economia e política e isto as faz desembocar, associadamente, na Razão de Estado. Luta e Razão de Estado, portanto, estariam absolutamente entrelaçadas enquanto tipos ideais em Weber:
Não é a paz e a felicidade que devemos legar aos vindouros mas sim a eterna luta pela manutenção e aperfeiçoamento do nosso modo de ser nacional [...] Os processos de desenvolvimento econômico são também em última instância lutas de poder [...] E o Estado nacional não representa para nós algo indefinido, que se imagina estar elevando tanto mais alto quanto mais a sua essência fica recoberta por névoas místicas, mas a organização mundana do poder nacional. E nesse Estado nacional o critério de valor definitivo que vale também para o ponto de vista da política econômica é para nós a “razão de Estado”. Ela não significa para nós, ao contrário de um estranho mal-entendido, a “ajuda do Estado” no lugar da “ajuda própria”, a regulamentação estatal da vida econômica no lugar do livre jogo das forças econômicas. O que queremos exprimir, ao falarmos de razão de Estado, é a reivindicação de que o interesse de poder econômico e político da nossa nação e do seu portador, o Estado nacional alemão, seja a instância final e decisiva para as questões da política econômica alemã (Weber, 1989, p. 69 – grifos nossos).
A ausência de um Estado dos Estados teria como consequência direta a ausência de uma autoridade mediadora entre os contendores (os pactos e acordos multilaterais auxiliariam nesta mediação, assim como os contratos políticos que permitem ao Estado Moderno subtrair o patrimônio dos súditos/cidadãos em situações de necessidade. Mas, a ausência de autoridade (Estado dos Estados: função exercida pela Igreja Católica na Idade Média) também poderia gerar guerras de conquista, quando houver: a)disputas diretas por territórios; b)Estados que procuram se armar preventivamente; c) Estado em disputa para fixar ascendência ou supremacia (Albuquerque, 2005, p. 12). É interessante como Kant e Weber se aproximam deste ponto: a paz como preparativo da guerra. Contudo, tanto na paz quanto na guerra, o direito se volta à defesa de certas condições de classe social. Sob o efeito da concepção jurídica da ordem mundial, a partir no pós-guerra de 45, nasceria o Estado Democrático de Direito (Silva, 2003). Mas, o problema é que mesmo em “tempos democráticos”, interna e externamente, o núcleo da excepcio estaria resguardado. Na Teoria da Soberania, o excepcio ingressa na forma do Estado de Sítio; externamente, como meio de exceção, inaugura-se um Estado Policial Internacional.
Positivismo de Kelsen
O chamado positivismo de Kelsen não resolveria adequadamente a superveniência da Razão de Estado, tal qual o liberalismo de Bobbio não teria maior eficácia: o resultado seria a formação atualíssima de um Estado Penal Internacional. O século XX se caracterizou pela consolidação de um sistema de Estados nacionais e pela superação do jus publicum europeum, com a criação da Liga das Nações e da ONU. O eurocentrismo cedeu espaço ao globalismo – o ideal de Kant da Paz Perpétua estaria mais próximo, como uma espécie de “profissão de fé cosmopolita” rumo ao “direito público da humanidade”. Enquanto o direito internacional se referia à relação entre Estados. O direito cosmopolita tratava da relação entre de Estados e indivíduos (estrangeiros). O autor alemão rejeitava a Teoria Dualista do Direito – separando-se entre direito interno e direito internacional –, opondo-se a Jellineck, por exemplo, e trazendo uma formulação nova para a interpretação de Kant. O direito nacional de todos os Estados nacionais soberanos seria elemento de um todo, partes de uma “ordem parcial”. O direito internacional, portanto, seria a unidade objetiva do conhecimento jurídico”, o suporte para uma concepção monista (Teixeira, 2011).
O que traria unidade ao sistema do direito seria a norma fundamental do direito internacional. Com isto, o que mais o distanciava da teoria dualista é o fato do direito internacional ser relegado a um tipo de moral, ou direito natural, distanciando-se o direito internacional de um verdadeiro direito - o – direito positivo. Para Kelsen, o Estado é uma “ordem da conduta humana”, dotado de poder para que suas ordens sejam cumpridas por todos. Desse modo, o Estado é, ou uma parte ou, o próprio ordenamento jurídico. Ou seja, o Estado tem a natureza de direito. Os indivíduos estão sujeitos ao Estado. Em relação ao monismo, sua crítica se inclina a constatar que nenhum Estado soberano poderia admitir contestação a sua estrutura normativa, sob o risco de invalidar a defesa nacional de sua soberania. Se o Estado é um conceito (ente) substancialmente político não seria em si uma substância jurídica e todas as soberanias estariam ameaçadas. Ao passo que, reunindo em um sistema único todas as regras do direito positivo, a soberania do Estado (de todos os Estados) se revelaria idêntica à positividade do direito. Esta comunidade de Estados, personificação do ordenamento jurídico mundial, como Estado mundial, é sinônimo de civitas maxima. As oposições entre regras de direito interno e regras de direito internacional, neste modelo, não seriam contradições lógicas, mas sim antinomia entre uma norma inferior e outra de natureza superior. Fazendo-se prevalecer um princípio básico do direito: a lei superior derroga a lei inferior. Assim, se para a concepção objetivista, o conceito ético de homem é a humanidade, para a teoria objetivista do direito, o direito só pode ser internacional, universal, e por isso ético. A expectativa objetivista seria garantir positividade ao direito internacional. Além do que a Teoria da Autolimitação do Poder (“regra da bilateralidade da norma jurídica”), sem que o Estado precisasse recorrer a uma ordem superior, não foi observada por Kelsen. Outra contradição está em admitir que “não há capacidade de decisão política sem se considerar elementos meta-jurídicos – como ideias éticas e políticas. Em todo caso, a teoria pluralista e a concepção objetivista de Kelsen assinala que a “unidade da soberania” (como “unidade do conhecimento”) deve ultrapassar os limites do EU estatal, sob o espírito universal, em que as efemérides do “espírito de cada um” (ente político-jurídico) deve se realizar, objetivando-se, uma vez que supera-se o subjetivismo de cada-um-só.
Disto resulta outra contradição: “o direito se torna a organização da humanidade e aí se identifica com uma ordem moral suprema”. Fora do sistema puro do direito, direito e moral se apresentam sem distinção. Sua civitas maxima foi pensada a partir de todos os problemas da comunidade política do século XX, essencialmente em não se impor como unidade jurídica aos Estados soberanos. Porém, termina projetando ao direito internacional as mesmas características do Estado nacional: uma ética-universal e uma consciência humana universal. É isto o que o Estado representa para cada indivíduo em sociedade. É de se acentuar que o seu modelo de globalismo jurídico está na base da concepção universalista dos direitos humanos, quando se preceitua que a formação de instituições jurídicas supranacionais recorre à “unidade da experiência humana”, de uma moral validável universalmente e da vinculação de todos os Estados. Seu objetivo era eliminar a justiça privada do âmbito das relações internacionais: o direito internacional seria o direito da comunidade interestatal. Do que decorre outra noção nuclear: a necessária centralização da administração da justiça em um tribunal internacional. O que confirma a ideia de que o direito é o monopólio da força em uma ordem coercitiva. A analogia doméstica revelaria que o Estado mundial garantiria a paz, tal qual se vê no esforço empreendido pela Federação nos EUA e nos Cantões suíços. Seu globalismo é essencialmente jurídico. Mas, mesmo para que tivesse eficácia fosse necessário que se criasse uma polícia internacional (jus puniend global), isto equivaleria à restrição ou destruição da soberania estatal. A força dessa convicção está no fato de que o direito é também uma “ideologia de poder”.
A ONU teria criado uma estrutura internacional de segurança recíproca. Porém, o Conselho de Segurança Pública perderia juridicidade, pois a concentração de poder desembocaria em decisões políticas. Quando escreveu sobre isso, em 1954, Kelsen alertava inclusive para que os vencedores da Segunda Guerra julgassem os crimes de guerra neste embrião de Tribunal Penal Internacional. Afinal, para Kelsen, “o direito é força”. Acreditava que a criminalização pessoal dos agentes da guerra evitaria outros conflitos bélicos. Contudo, assim Kelsen retornava às noções medievais de punibilidade do justus hostis e ainda negava o Princípio da Legalidade. Os detratores da guerra sabem que agem de forma absolutamente imoral e, por isso, devem ser julgados, independentemente de lei anterior que defina a ação como crime. Kelsen anteciparia as bases jurídicas e morais que passariam a ser invocadas na estruturação do Estado Penal: normas penais em branco (criminalização moral, independentemente de lei anterior que o defina) e polícia internacional a serviço do Império. Em Bobbio, analogamente, a igualdade que os homens possuíam no estado de natureza, a partir do momento em que se utilizassem as armas de destruição em massa, fatalmente, levaria ao fim da humanidade. O poder absoluto dos Estados soberanos, em guerra, tornaria a guerra absoluta, incontrolável; portanto, ilegal e ilegítima. Para Bobbio, em uso da analogia doméstica, o Estado evitava suas próprias guerras com o monopólio da força. Assim, dever-se-ia dar no sistema internacional, com a formação de um “Super-Estado mundial” – aqui também está presente o jus puniendi global (embrião do Estado Penal Internacional). Esta solução superaria o pluralismo dos centros de poder, superando o estado de natureza mundial, assim como o Estado fizera em relação a seus comandados. Este Estado Penal Internacional, portanto, é apenas um dos tantos modelos de Estado de Exceção. Como Estado Penal ampliado, sua exceção vem do latim excepcio (tomar, apanhar); indica algo que foi apanhado, extraído de seu lugar de origem e/ou de referência, da mesma forma como alienar, quando se retira, perde algo que lhe é próprio (a perda de si, do controle sobre...). Em suma, temos aqui uma clara restrição de direitos, liberdades e garantias.
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Vinício Carrilho Martinez
Professor Adjunto II da Universidade Federal de Rondônia
Departamento de Ciências Jurídicas
Doutor pela Universidade de São Paulo
[1]Weber (1979) faria a anteposição entre políticos que vivem da política e os que vivem para a política.
[2]A citação é devida a Ésquilo.
[3]Grotius cita Sêneca que, por sua vez, tirou de Sófocles.
[4]A terceira citação se deve a Salústio.
[5]Exatamente porque os dados não cansam de mudar, é que é preciso pensar e repensar a prática.
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