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Gente de Opinião

Vinício Carrilho

Para pensar o Brasil atual


É uma realidade política que cada vez mais confunde-se – sob pretexto da Razão de Estado – segurança pública com segurança nacional. E ainda que a insegurança da população seja um problema alarmante em todo o país. Pois bem, se o problema é a insegurança, cabem algumas questões:

·         Por que as forças de segurança pública no Brasil – e em outras partes do mundo – treinam para o combate, aplicando-se em técnicas e táticas aplicadas em guerras típicas de Estado de Sítio?

·         Se a elite da Polícia Militar treina incessantemente formas de escapismos, não é de supor que possa estar encurralada por grupos inimigos – e isto também não revela que não se trata mais de grupos amadores?

·         Ou será uma prática preparatória para o Estado de Sítio?

Assim como praticam técnicas de guerrilha e de contraguerrilha urbana, voltam-se à ideia básica da repressão: contenção. O que, em tese, explicaria o treinamento para sitiar.

Afinal, é preciso saber enclausurar para aprender como sair do casulo político. O escapismo é a arte de entrar e de sair do sítio: entrar e sair de espaços contidos/contíguos promove o controle – um controle institucional/social sem que ocorra a quebra explicita das garantias jurídicas, mas em que se atua com coerção direta. Comparemos com o clássico Cerco a Numancia, de Miguel de Cervantes.

O Cerco a Numancia

            Cervantes está entre o teatro digno das tragédias gregas e as mais vigentes obras do Século de Ouro (1547-1616). Além de quase perder a mão na Batalha de Lupanto, em 1575 – depois de lutar em Túniz –, foi aprisionado e viveu o cárcere por cinco anos. Também relatou esse tema da vida pessoal em passagens de Don Quixote. Tentou fugir várias vezes e, por sua bravura, teve o perdão para não receber a pena duas mil chibatadas. As guerras antigas, mesmo com meios de exceção, ainda premiavam os valores destacados – não se restringiam à mercantilização e mesmo que fossem feitas por mercenários. Morreu poucos dias antes de Willian Shakespeare.

Numancia e o enredo mítico[1]

            A cidade trazia o cerco ou sítio há 16 anos. Os soldados romanos estavam entregues ao vício e sem honra. Os espanhóis tentavam um armistício, porém, o general Escipión (Cipión) se negava ao acordo e mandou construir um fosso para impedir qualquer fuga (não se sabe se é uma ironia com a expressão excipio: de exceção). España pediu ajuda ao rio Duero – e este também negou auxílio alegando que não se pode mudar o destino.

            Os numantinos, então, decidem fazer sacrifícios a Júpiter e um deles tentará ressuscitar um cadáver para que lhes diga o que fazer (o cadáver, evidentemente, pode representar a ideia de normalidade, a que se seria objeto da exceção). Segue-se o sacrifício de carneiro – o qual acabou apossado por um Demônio –, e o cadáver morto-vivo recobrou a vida para decretar o “fim de Numancia”.

            Caravino ainda tentaria outro acordo, agora propondo uma breve batalha com os romanos, e outra vez o general recusou, crendo na vitória imposta pela fome aos numantinos. Alguns sitiados queriam sair para buscar ajuda, mas suas mulheres pediram para não saírem, pois estariam indefesas aos ataques dos soldados romanos.

Leoncio e Marandro tentam furtar pão no acampamento romano; Marandro retorna ferido de morte e os numantinos – pra não serem capturados vivos – dão a morte uns aos outros. Com a tomada de Numancia não há ninguém vivo para saldar o conquistador: “La fuerza no vencida, el valor tanto” (Marrast, 1999, p. 24). Historiadores romanos relatam a tomada de Numancia em 130 a.C. Nesta versão, alguns numantinos foram levados a Roma como escravos. Entretanto, outros historiadores dizem que não restou ninguém. Na reconstituição de Cervantes, portanto, está presente a mitologia romana: Júpiter e Juno.

Nos séculos seguintes – como o mito do Fausto (Solar, 2003) – o cerco de Numancia foi copiado e reinventado muitas vezes. Com a invasão da Espanha por Napoleão, a resistência de Numancia se revalorizou a partir do sítio da cidade de Zaragoza. Não por acaso, Goethe era um apreciador de Cervantes.

Desse modo, o século XIX apoderou-se de Numancia como apologia de um patriotismo intransigente: a resistência de um povo diante de um conquistador sem direito algum. A narrativa de Cervantes ainda revelou o desafio de quem ousou desafiar a pax romana (ou, atualizando-se, a pax americana). Outro ensinamento destaca a arte da guerra, no enfrentamento de uma guerra (in)justa. Também se depreende a fé católica – Contra-Reforma – como suporte da hegemonia política. E é a própria tragédia nacionalista. Os generais queixavam-se de uma guerra prolongada e inútil: “Esta difícil y pesada carga” (Cervantes, 1999, p. 39). Contudo, os mesmos generais reviviam virtudes e temores que ardiam nos soldados.

Uma narrativa da Razão de Estado sitiada

O general Escipión batia-se pela disciplina e reconhecia o valor dos inimigos: sua obstinação e capacidade militar. Tal como seria preciso prestar atenção e dar ouvidos ao inimigo combatente: “Oír al enemigo, es cosa cierta / que siempre aprovechó más que dañase” (Cervantes, 1999, p. 47).

Ao recusar a paz, o general é chamado de arrogante; por que não dar créditos aos valorosos combatentes de Numancia? Sua retórica não se fazia prática. Com o sítio, o general Cipión (exceção?) quer abalar os brios dos numantinos (e, de sobra, a todos os rebelados). Cipión considera-os soberbos. A resistência (ao invés da mera resiliência à coerção), a determinação em lutar pela vida, seria considerada valiosa reserva da Razão de Estado: “Y em la ciudad podrá muy bien quedarse / quien gusta de cobarde dar las muestras; / que yo mi gusto pongo em quedar muerto / en el cerrado foso o campo abierto” (Cervantes, 1999, p. 61).

Nada é mais opressor do que o cerco. Todavia, a causa justa ou guerra justa continua expressando a Razão de Estado (RE): “Y pues tú ocupas El lugar primero / de La honra y valor com causa justa, / yo, que em todo me cuento por postrero, / quiero ser el arado de esta justa” (Cervantes, 1999, p. 63). A dedicação à pátria (RE) haveria de exigir a renúncia à individualidade: “Ves La patria consumida / y de enemigos cercada, / ? y tu memória, burlada / por amor, de ella se olvida?” (Cervantes, 1999, p. 65).

No espanhol antigo, governo era sinônimo de sustento ou mantimento e, em sua ausência, reinava a forme ou o mal-governo, o desgoverno: “? De que murió? / Murió de mal gobierno / La flaca hambre le acabo la vida, / peste cruel, salida del infierno.” (Cervantes, 1999, p. 73).

Os mortos têm as almas encomendadas a Cáron, o barqueiro do Rio Estige – da antiga mitologia grega. Quando o general nega-se a destacar apenas um soldado para enfrentar um numantino – o vencedor colocaria fim à guerra – é chamado de covarde, assim como teria sido sórdida a luta na forma do Estado de Sítio: “Cobardes sois, romanos, vil canalla, / com vuestra muchedumbre confiados, / y no em los diestros brazos levantados. / !Pérfidos, desleales, fementinos...” (Cervantes, 1999, p. 84).

As mulheres preferiam morrer a serem escravizadas pelos romanos ou verem seus filhos destruídos: “? Queréis dejar, por ventura, / a la romana arrogância lãs vírgenes de Numancia / para mayor desventura?” (Cervantes, 1999, p. 88). A determinação das mulheres era, sem dúvida, maior. Estimou-se haver 80 mil romanos, contra três mil espanhóis. No entanto, a fome sem trégua e a defesa obstinada da RE (e a lembranças das mulheres) explicavam a força dos mais valentes em combate contra os romanos: “Queda Fabricio traspasado em pecho, / abierta la cabeza tiene Eracio, / Olmida ya perdido el brazo derecho, / y de vivir le queda poco espacio” (Cervantes, 1999, p. 104).

O sacrifício coletivo levaria embora a honra e a glória dos romanos. Afinal, o general romano dominou, mas não dobrou a “soberba nação”, uma vez que estavam todos mortos. Esta mortandade coletiva de todos os pais simplificava a morte do país e, assim, não haveria conquista, uma vez que não havia pátria. Pois, um território sem povo não é Estado: “queda muerto y perdido mi derecho” (Cervantes, 1999, p. 126).

Aqui a Razão de Estado venceu ou perdeu para a exceção? Qual mística prevaleceu, até os dias atuais, com mais força e capacidade de veneração? Ou, agora, caminham juntas?

           

Bibliografia

CERVANTES, Miguel. El cerco de Numancia. Madrid: Ediciones Cátedra, 1999.

MARRAST, Robert. Introducción. IN : El cerco de Numancia. Madrid: Ediciones Cátedra, 1999.

SOLAR, Juan José del (editor). Historia del Doctor Johann Fausto – anónimo del siglo XVI. Siruela : Madri, 2003.

                                                                                            



[1] A mística da exceção revela que o uso da força será passageiro, contido na necessidade de repor a “ordem perdida”. Mesmo derrubando a ordem, para se impor a exceção, alega-se a necessidade de recompor o controle social. Daí a sensação de se viver em um estado de suspensão – até mesmo porque os direitos fundamentais estão suspensos. Veremos com Cervantes que se recupera a mística da virilidade.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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