Domingo, 17 de fevereiro de 2013 - 17h02
Quando todo o mundo é corcunda,
O belo porte torna-se a monstruosidade.
Karl Marx(1818 — 1883): Quando Marx cita o Fausto (de Goethe) e, depois, quando resume o mundo moderno em tudo que é sólido, desmancha no ar, são duas indicações simples, mas diretas da força de sua projeção sobre a modernidade. As duas torres gêmeas, no 11/09, vindo ao chão, desmanchando-se literalmente, são duas visões dessa hiper-realidade moderna de Marx. O materialismo histórico e seus temas decorrentes seguiram Marx por toda a vida, sendo os principais:
O materialismo histórico parte da premissa de que o homem precisa se realizar continuamente: “Para Marx, a história é um processo de criação, satisfação e recriação contínuas das necessidades humanas. É isso que distingue o homem dos animais, cujas necessidades são fixas e imutáveis. É por essa razão que o trabalho, o intercâmbio criador entre os homens e o seu ambiente natural, está na base da sociedade humana” (Giddens, 2005, p. 53). O hiper-realismo de Marx decorre da proposição moderna de que o mundo deveria ser visto pelo realismo: “Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu ser social que, inversamente, determina a sua consciência”. A modernidade exigia que se mudasse a sua realidade, que não fosse apenas interpretada. O projeto da modernidade tem dois pólos: o Iluminismo, anterior e o comunismo posterior; o Iluminismo, propriamenteidealista e o comunismo, utópico-revolucionário. O progresso social, econômico, tecnológico (e que desemboca na modernidade) decorre da alteração das relações sociais de produção, isto é, o modo como se organiza o trabalho a cada fase distinta da história. Conforme resumo do próprio Marx, as principais etapas de desenvolvimento dos modos de produção são: “Em um caráter amplo, os modos de produção asiático, antigo, feudal e burguês moderno podem ser qualificados como épocas progressivas da formação econômica da sociedade” (Marx, 2003, p. 06). Ou, seguindo-se um resumo mais amplo e detalhado de Engels:
A concepção materialista da história parte da tese de que a produção, e com ela a troca dos produtos, é à base de toda a ordem social; de que em todas as sociedades que desfilam pela história, a distribuição dos produtos, e juntamente com ela a divisão social dos homens em classes ou camadas, é determinada pelo que a sociedade produz e como produz e pelo modo de trocar os seus produtos. De conformidade com isso, as causas profundas de todas as transformações sociais e de todas as revoluções políticas não devem ser procuradas nas cabeças dos homens nem na ideia que eles façam da verdade eterna ou da eterna justiça, mas nas transformações operadas no modo de produção e de troca: devem ser procuradas não na filosofia, mas na economia da época de que se trata. Quando nasce nos homens a consciência de que as instituições sociais vigentes são irracionais e injustas, de que a razão se converteu em insensatez e a benção em praga, isso não é mais que um indício de que nos métodos de produção e nas formas de distribuição produziram silenciosamente transformações com as quais já não concorda a ordem social, talhada segundo o padrão de condições econômicas anteriores. E assim já está dito que nas novas relações de produção têm forçosamente que conter-se – mais ou menos desenvolvido – os meios necessários para por fim aos males descobertos. E esses meios não devem ser tirados da cabeça de ninguém, mas a cabeça é que tem de descobri-los nos fatos materiais da produção, tal e qual a realidade os oferece (Engels, s/d, p. 49 – grifos nossos).
A transformação das relações sociais de produção da vida social, portanto, implica na mudança das condições reais, materiais em que a vida social está aportada: “As relações sociais de produção (i.é, organização social no mais lato dos sentidos) e as forças produtivas materiais (a cujo nível aquelas correspondem) não podem ser separadas [...] ‘A estrutura econômica da sociedade é formada pela totalidade dessas relações de produção” (Hobsbawm, 1991, p. 16). Ou como diz o próprio Marx no famoso Prefácio:
Na produção social da sua existência, os homens estabelecem relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais. O conjunto destas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral [...] A transformação da base econômica altera, mais ou menos rapidamente, toda a imensa superestrutura. Ao considerar tais alterações é necessário sempre distinguir entre alteração material – que se pode comprovar de maneira cientificamente rigorosa – das condições econômicas de produção, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas pelas quais os homens tomam consciência deste conflito, levando-o às suas últimas consequências (Marx, 2003, p. 05).
A divisão social do trabalho inicial, além de elevar a produção (excedente), permitia a constituição de outra forma de trabalho: o trabalho intelectual. Se havia excedente, nem todos precisavam se dedicar à produção dos insumos propriamente materiais da vida social, e ao que se segue que alguns poderiam se dedicar tanto à política, quanto à religião, às artes ou à filosofia. De certo modo, o mundo grego externou bem essa passagem da nossa história política, bem como das origens e da evolução do trabalho intelectual. Também não há exagero em se dizer que o homem é social por necessidade, a necessidade da sobrevivência[1], e que isto não se dá por alguma condição inata ou excepcional que o conduz a tanto. Quanto à ideologia em si mesma ou quanto à determinação do lugar, da posição das ideias no mundo real, não há passagem mais clara do que esta outra do Prefácio. Portanto, fora disso, todo o conjunto restante de ideias é pura ideologia ou simplesmente abstração das condições reais de existência. Do passado para o presente, o homem primeiro cria as mais simples condições de sobrevivência, e com o passar do tempo é que transforma os meios de vida em meios de produção. Da produção individual da vida à produção da vida social: esta pode ser a história dos meios de produção, mas vejamos do início, quando o que importa é apenas sobreviver. A partir das condições naturais é que o homem produzirá seu primeiro ato histórico, e é interessante frisar como este ato social é decorrente de nossa maior investida sobre o mundo natural. Esse dado ainda revela ao homem uma posição de interventor na vida social, antes mesmo de qualquer presunção de que deva manifestar uma determinada ordem jurídica ou política, isto é, a vida social precede à política, ao Estado, à religião, à própria noção de ordem e de regramento social.
Assim, a moral, a religião, a metafísica e todo o restante da ideologia, bem como as formas de consciência a elas correspondentes, perdem logo toda a aparência de autonomia. Não têm história, não têm desenvolvimento; ao contrário, são os homens que, desenvolvendo sua produção material e suas relações materiais, transformam, com a realidade que lhes é própria, seu pensamento e também os produtos do pensamento. Não é a consciência que determina a vida, mas sim a vida que determina a consciência (Marx, 2002, pp. 19-20).
De modo mais preciso, o primeiro ato histórico da humanidade fez elidir, suprimiu a ideia de uma representação sem base material, ou seja, no materialismo, prevalece a análise dos elementos de formação da vida social e não das formas de representação política ou religiosa[2]:
A primeira condição de toda história humana é, naturalmente, a existência de seres humanos vivos. A primeira situação a constatar é, portanto, a constituição corporal desses indivíduos e as relações que ela gera entre eles e o restante da natureza [...] Mas, para viver, é preciso antes de tudo beber, comer, morar, vestir-se e algumas outras coisas mais. O primeiro fato histórico é, portanto, a produção dos meios que permitem satisfazer essas necessidades, a produção da própria vida material; e isso mesmo constitui um fato histórico, uma condição fundamental de toda a história que se deve, ainda hoje como há milhares de anos, preencher dia a dia, hora a hora, simplesmente para manter os homens com vida [...] O segundo ponto a examinar é que uma vez satisfeita à primeira necessidade, a ação de satisfazê-la e o instrumento já adquirido com essa satisfação levam a novas necessidades — e essa produção de novas necessidades é o primeiro ato histórico [...] A terceira relação, que intervém no desenvolvimento histórico, é que os homens, que renovam a cada dia sua própria vida, passam a criar outros homens, a se reproduzir. É a relação entre homem e mulher, pais e filhos, é a família [...] Produzir a vida, tanto a sua própria vida pelo trabalho, quanto à dos outros pela procriação, nos parece portanto, a partir de agora, como uma dupla relação: por um lado como uma relação natural, por outro como uma relação social — social no sentido em que se entende com isso a ação conjugada de vários indivíduos, sejam quais forem suas condições, forma e objetivos (Marx, 2002, pp. 10-21-22-23).
O primeiro ato histórico, portanto, é social e só muito tempo depois é que será político – e bem após esta fase é que se poderá dizer que algumas relações sociais também seriam relações jurídicas. Enfim, as três fases da vida social podem ser assim resumidas: produção das condições básicas de subsistência; produção de novas necessidades (como por exemplo, buscar novos instrumentos ou técnicas); reprodução do núcleo social, da família. Por que Marx destacaria uma frase aparentemente óbvia como esta: A primeira condição de toda história humana é, naturalmente, a existência de seres humanos vivos. Porque daí se subentende mais claramente porque não há humano abstrato. Ou seja, mesmo a espécie humana é analisada de acordo com o período histórico e diante das condições objetivas de reprodução material das formas de vida social. Neste sentido, também se vê que tanto a política quanto o Estado não são formas autônomas de representação social, devendo ser analisadas articuladamente com as formas sociais que predominam em determinado período e contexto histórico (sociedade civil): “Ao contrário, é a sociedade civil que cria o Estado. A sociedade civil é o verdadeiro lar e cenário da história. Abarca todo o intercâmbio material entre os indivíduos, numa determinada fase do desenvolvimento das forças produtivas” (Gorender, 2002, p. xxxi). Deve-se notar que se repete o uso das determinações, como em indivíduos e relações determinadas, justamente para se dissolver toda ideia geral, que possa aparecer como fora da históriaou que esteja ausente de história e de sua materialidade. Assim, sempre serão relações sociais determinadas pelo contexto e pelas condições materiais gerais: não há nada, nem ninguém fora das determinações históricas.
Essas premissas são os homens, não os homens isolados e definidos de algum modo imaginário, mas envolvidos em seu processo de desenvolvimento real em determinadas condições, desenvolvimento esse empiricamente visível [...] É aí que termina a especulação, é na vida real que começa portanto a ciência real, positiva, a análise da atividade prática, do processo, do desenvolvimento prático dos homens (Marx, 2002, p. 20).
A história política que nos interessa, portanto, não é a história do Estado Ideal, mas sim a das condições reais sobre as quais o Estado está assentado. Desse ponto de vista, não há teleologia, mas sim desenvolvimento histórico do Estado, tal qual devemos perguntar pelo desenvolvimento prático dos homens. Sob a era do capitalismo, o próprio modo de produção capitalista conhecerá fases subsequentes de desenvolvimento, com a intensa e imensa transformação das bases materiais de produção — é como se fosse um capitalismo dentro do capitalismo, tal a sensação provocada de que muitas fases novas transformam e se sucedem progressivamente, impositivamente. E isso já está no jovem Marx, do Manifesto do Partido Comunista:
A burguesia não pode existir sem revolucionar continuamente os instrumentos de produção e, por conseguinte, as relações de produção, portanto todo o conjunto das relações sociais [...] O contínuo revolucionamento (Umwälzung) da produção, o abalo constante de todas as condições sociais, a incerteza e a agitação eternas distinguem a época burguesa de todas as precedentes. Todas as relações fixas e cristalizadas, com seu séquito de crenças e opiniões tornadas veneráveis pelo tempo, são dissolvidas, e as novas envelhecem antes mesmo de se consolidarem (Marx, 1993, p. 69).
Este contínuo processo de revolucionamento dos meios de produção implica que também as formas de consciência se alteram e se ajustam às novas condições reais de vida. A maneira de se ver a vida, muda conforme se modifica a própria vida — dito assim, é sem dúvida uma obviedade, mas é preciso entender o fluxo histórico em que essas mudanças se operam. Portanto, o homem como animal social tem uma longa história, ou seja, apresenta formas diferentes de se organizar ao longo do tempo. Essa capacidade de organização para o trabalho que produz a vida é que nos permite viver[3]. Por fim, essa atividade de organização se dá sobre as condições naturais que nos cercam, isto é, os homens também se tornam ainda mais sociáveis na medida em que mais e mais se transforme a natureza. A sociedade, com isto, também será o resultado de sua articulação e produção social, portanto, uma criação, uma artificialidade[4], uma construção sobre as próprias condições naturais. Esse trabalho sobre a natureza é o que produz o homem e a sociedade, e por isso o trabalho é uma categoria central na afirmação do homem como ser social[5]. Se construir a sociedade é mudar a natureza, também podemos dizer que ao organizar esta dimensão social, o homem modifica a natureza e a si mesmo. Desse modo, evoluir é tornar-se cada vez mais social[6], alterando-se e apropriando-se dos recursos ofertados pela natureza e, a essa altura, pela própria sociedade[7]. No início dessa história social, essa apropriação dos recursos será coletiva, comunal, e mesmo quando a propriedade se refira exclusivamente ao indivíduo, será para sua manutenção, para seu uso pessoal: não como hoje, na forma da propriedade privada. Ainda no início da organização social, nas primeiras comunidades, a capacidade de cooperação entre os homens os levaria a buscar identidade entre si, mas também diferenciação, pois percebendo as habilidades em destaque os homens começaram a buscar a divisão social do trabalho, aumentando a própria produção. Este excedente da produção que se origina da cooperação e da especialização do trabalho gera, por sua vez, a possibilidade da troca.
O homem – ou melhor, os homens – realizam trabalho, isto é, criam e reproduzem sua existência na prática diária, ao respirar, ao buscar alimento, abrigo, amor, etc. Fazem isto atuando na natureza, tirando da natureza (e, às vezes, transformando-a conscientemente) com este propósito. Esta interação entre o homem e a natureza é – e ao mesmo tempo produz – a evolução social. Retirar algo da natureza, ou determinar um tipo de uso para alguma parte da natureza (inclusive o próprio corpo) pode ser considerado e é o que acontece na linguagem comum, uma apropriação, que é, pois, originalmente, apenas um aspecto do trabalho. Isto se expressa no conceito de propriedade (que não deve ser, de forma alguma, identificado com a forma histórica específica da propriedade privada). No começo, diz Marx, “o relacionamento do trabalhador com as condições objetivas de seu trabalho é de propriedade; esta constitui a unidade natural do trabalho com seus pré-requisitos materiais” [...] Sendo um animal social, o homem desenvolve tanto a cooperação como uma divisão social do trabalho (isto é, especialização de funções) que não só é possibilitada pela produção de um excedente acima do que é necessário para manter o indivíduo e a comunidade da qual participa, mas também amplia as possibilidades adicionais de geração desse excedente. A existência deste excedente e da divisão social do trabalho torna possível a troca. Mas, inicialmente, tanto a produção como a troca têm, como finalidade, apenas o uso – isto é, a manutenção do produtor e de sua comunidade (Hobsbawm, 1991, p. 16).
Como vimos, qualquer forma de organização e de expressão política deriva dessa capacidade de organização do social; a política decorre do social. Qualquer mudança social também decorre dessa capacidade de modificarmos, ao longo da história, as próprias condições de organização e de produção do social (trabalho). Ou seja, a transformação social é mais do que vontade de se mudar a sociedade, é resultado das condições reais de possibilidade de transformação dos meios e dos recursos ofertados pela sociedade em determinado momento de sua história. Isto é progresso, na medida em que nos distancia da mera imposição das condições naturais, desse nosso desenvolvimento natural (não há desenvolvimento natural, mas tão-somente esse esforço social). Parte dessa alteração e do novo ajustamento implica em adequar-se à consciência da propriedade — pois é daí que provêm o arranjo necessário dos meios da vida e a consequente divisão social do trabalho.
Podemos encontrar pistas nos moldes familiares em que cresceu Weber, com dois pólos diferentes: o pietismo protestante da mãe e um pragmatismo político-profissional do pai. É provável que esse choque o tenha direcionado para a exploração da dimensão ética do cotidiano, permitindo-lhe observar uma noção de ética que inclui a responsabilidade individual e cotidiana. Uma ética diferente daquela que atribui tudo a um Estado ou a algum ente superior.
Weber terá, desde muito novo, uma vida pública incomum, distinta – uma duplicidade acadêmica e política: educação humanista apurada[8]. Na maioridade, já perto da morte, participou das discussões e da elaboração da conhecida Constituição de Weimar (1919), tida como um dos três pontos (documentos[9]) de sustentação do Estado Democrático de Direito: o modelo estatal predominante. Em síntese, para Weber, a sociologia é a ciência que objetiva compreender a atividade social pela interpretação, para depois explicar os efeitos dessa mesma atividade – ação social -, no contexto global das redes de relações sociais. Weber estará atento para os sentidos, para as próprias intenções sociais – os sentidos ocultos do chamado senso comum – que não estão ao alcance pleno e imediato de todos os envolvidos nas próprias relações sociais. Digamos que esta seja uma forma de se abordar um objeto social, especialmente quanto aos seus aspectos globais/gerais - e que estes seriam definidos como modelos típicos ideais.
Objetividade
Apenas as ideias de valor que dominam o investigador e uma época podem determinar o objeto do estudo e seus limites. Porque só é uma verdade científica aquilo que pretende ser válido para todos os que querem a verdade (Max Weber).Comentário:A objetividade do mundo (a cultura) fala diretamente à subjetividade do autor (suas afinidades eletivas).
Os modelos ideais, no entanto, são constructos objetivos, nem puramente teóricos (livres do mundo) nem puramente sócio-culturais (livres do investigador: há uma competência no cotidiano que estimula a interação com o objeto):
A conceituação da Sociologia encontra seu material, como casos exemplares e essencialmente, ainda que não de modo exclusivo, nas realidades da ação consideradas também relevantes do ponto de vista da história [...] Em todos os casos, racionais como irracionais, ela se distância da realidade, servindo para o conhecimento desta da forma seguinte: mediante a indicação do grau de aproximação de um fenômeno histórico a um ou vários desses conceitos torna-se possível classificá-lo [quanto ao tipo]. O mesmo fenômeno histórico, por exemplo, pode ter, numa parte de seus componentes, caráter “feudal”, noutra parte, caráter “patrimonial”, numa terceira, “burocrático” e, numa quarta, “carismático”. Para que com estas palavras se exprima algo unívoco, a Sociologia, por sua vez, deve delinear tipos “puros” (“ideais”) dessas configurações, os quais mostram em si a unidade consequente de uma adequação de sentido mais plena possível, mas que, precisamente por isso, talvez sejam tão pouco frequentes na realidade quanto uma reação física calculada sob o pressuposto de um espaço absolutamente vazio. Somente dessa maneira, partindo do tipo puro (“ideal”), pode realizar-se uma casuística sociológica [...] Mas os conceitos construtivos da Sociologia são típico-ideais não apenas externa como também internamente. A ação real sucede, na maioria dos casos, em surda semiconsciência ou inconsciência de seu “sentido visado”. O agente mais o “sente”, de forma indeterminada, do que sabe ou tem “clara” ideia dele [...] Mas isto não deve impedir que a Sociologia construa seus conceitos mediante a classificação do possível “sentido subjetivo”, isto é, como se a ação, seu decorrer real, se orientasse conscientemente por um sentido (Weber, 2004, pp. 12-13).
Toda ação acaba sendo comparada a um tipo ideal:
Esse modelo distinto envolve seis processos sociais e culturais fundamentais e largamente ramificados: 1. O desencanto e a intelectualização do mundo, e a resultante tendência a ver o mundo como um mecanismo causal sujeito, em princípio, ao controle racional; 2. O surgimento de um ethos de realização secular impessoal, historicamente alicerçado na ética puritana da vocação; 3. A crescente importância do conhecimento técnico especializado em economia, administração e educação; 4. A objetificação e despersonalização do direito, da economia e da organização política do Estado, e o consequente recrudescimento da regularidade e da calculabilidade da ação nesses domínios; 5. O progressivo desenvolvimento dos meios tecnicamente racionais de controle sobre o homem e a natureza; e 6. A tendência ao deslocamento da orientação da ação tradicional e assente em valores racionais (wertrational) para a ação puramente instrumental (zweckrational) (Outhwaite & Bottomore, 1996, p. 642).
E não só o pensamento teórico, desencantando o mundo, levava a essa situação, mas também a própria tentativa da ética religiosa de racionalizar prática e eticamente o mundo[...] E em meio de uma cultura que é racionalmente organizada para uma vida vocacional de trabalho cotidiano, dificilmente haverá lugar para o cultivo da fraternidade acósmica, a menos que seja entre camadas economicamente despreocupadas. Sob as condições técnicas e sociais da cultura racional, uma imitação da vida de Buda, Jesus ou São Francisco parece condenada por motivos exclusivamente externos (Weber, 1979, p. 408).
Quanto ao sistema em geral, há outro ponto a ressaltar.
Há crescente especialização e divisão do trabalho intelectual
O progresso científico é um fragmento, o mais importante indubitavelmente, do processo de intelectualização a que estamos submetidos desde milênios[...] Equivale isso a despojar de magia o mundo [...] O destino de nosso tempo, que se caracteriza pela racionalização, pela intelectualização e, sobretudo, pelo “desencantamento do mundo” levou os homens a banirem da vida pública os valores supremos e mais sublimes (Weber, 1993, pp. 30-51).
“Há um abismo, tanto visto de fora quanto visto de dentro, entre essa espécie de grande empresa universitária capitalista e o professor titular comum, de velho estilo. Isto se traduz até na maneira íntima de ser” (Weber, 1993, p. 20).
Em síntese, para Weber, a sociologia é a ciência que objetiva compreender a atividade social pela interpretação, para depois explicar os efeitos dessa mesma atividade – ação social -, no contexto global das redes de relações sociais. Weber estará atento para os sentidos, para as próprias intenções sociais – os sentidos ocultos do chamado senso comum – que não estão ao alcance pleno e imediato de todos os envolvidos nas próprias relações sociais. A pergunta clássica que o próprio Weber direciona a este aspecto é a seguinte: quem (re) conhece o verdadeiro significado de uma lei? Weber se refere tanto à lei, no sentido dogmático, quanto ao sentido empregado para lei social (fato social), e que lhe propicie conhecer em profundidade um determinado conjunto de relações sociais.
Charles Darwin (1809 - 1882) é um autor "sensível ao social" e não um biólogo obsessivo como se retrata e ainda que alguns digam que esta “sensibilidade social” não foi tão segura quanto gostaríamos, como no caso de uma crítica severa à escravidão brasileira: o que também não é verdadeiro. De todo modo, no Dário de Bordo “O Beagle[10]na América do Sul”, Darwin inicia sua descrição sócio-ambiental com a demonstração do que se pode chamar de método narrativo:
Fernando de Noronha, 20 de fevereiro— tanto quanto pude observar [...] A característica mais notável [...] A partir da primeira impressão, ao se observar essas isoladas, tende-se a acreditar que o todo foi repentinamente empurrado para cima em estado semifluído [...] Em Santa Helena, entretanto [...] A ilha toda está coberta de floreta; mas, devido à aridez do clima, não há nenhuma aparência de exuberância (Darwin, 1996, p. 07).
O texto é um misto de diário pessoal, informal, à procura da descrição detalhada, minuciosa. Seu estilo é limpo, como o de um narrador realmente, mas nem por isso despretensioso. É quase poético, a exemplo de quando se declara um naturalista. De um modo ou de outro, sempre retoma o método descritivo, mas ainda assim ressalta o exercício da reflexão motivada pela (bio) diversidade (Darwin, 1996, p. 09-10). A observação cuidadosa pode favorecer outro método — comparativo — e sem desconsiderar o mesmo “bom senso observador dos nativos”. Porém, como cientista está à procura de uma razão que explique determinados fenômenos e, assim, observa em detalhes como é que um peixe baiacu ou diodon se enche de água e de ar. Depois, descreve borboletas preguiçosas como se conversasse com elas — na verdade, o que faz é interagir com o meio, com todos os seus aguçados sentidos de observador meticuloso, detalhista, criterioso e, acima de tudo, curioso. Portanto, sua curiosidade o leva a observar a cadeia social da escravidão brasileira, quando demonstra sensibilidade diante do significado e dos feitos da escravidão:
Como a lua surgiu cedo, decidimos partir naquela mesma tarde para a Lagoa Maricá, onde pernoitaríamos. À medida que foi escurecendo, passamos sob um daqueles enormes morros de granito, íngremes e nus, tão comuns neste país. Este lugar é famoso por ter sido, durante muito tempo, a morada de alguns escravos fugidos que conseguiram tirar sua subsistência do cultivo de um pequeno pedaço de terra perto do topo. Finalmente descobertos, foram todos capturados por um grupo de soldados, com exceção de uma velha que, recusando-se a voltar a ser escrava, preferiu atirar-se do alto da montanha, despedaçando-se contra as pedras da base. Numa matrona romana, isso teria sido chamado de um nobre sentimento de liberdade, mas numa pobre negra, é apenas uma brutal obstinação (Darwin, 1996, p. 14 – grifos nossos).
Vê-se na descrição/interpretação citada seu interesse pela história social e como sugere uma articulação entre o cotidiano (“Como a lua surgiu cedo... À medida que foi escurecendo”), a história natural (“passamos sob um daqueles enormes morros de granito, íngremes e nus”), a história social e política (“Este lugar é famoso por ter sido... a morada de alguns escravos fugidos”), um ideal como pano de fundo (“um nobre sentimento de liberdade”) e, por fim, um realismo assombroso (“numa pobre negra, é apenas uma brutal obstinação”). Se não fosse pela escravidão, o país seria uma maravilha. O escravismo no Brasil não gerou nenhum sentimento de individualismo liberal, mas sim egoísmo:
13 de abril[...] propriedade do Sr. Manuel Figuireda [...] por pouco não me tornei testemunha ocular de um daqueles atos de atrocidade, que só podem acontecer num país escravocrata. Devido a uma briga e a uma ação judicial, o proprietário estava prestes a tirar todas as mulheres e crianças da companhia dos homens e vendê-las separadamente num leilão público no Rio. O interesse, e não nenhum sentimento de compaixão foi o que impediu esse ato [...] Pode-se dizer que não há limite para a cegueira advinda do interesse e de hábitos egoístas (Darwin, 1996, pp. 18-21).
Sua recaída, todavia, foi ter confundido patriarcalismo com cuidado e felicidade: a autonomia não pode ser substituída pelo assistencialismo, por mais generoso que possa ser: “Em fazendas como essa, não tenho dúvida de que os escravos vivem satisfeitos e felizes” (Darwin, 1996, p. 20). Conclui chamando nossa atenção para uma “perspectiva ecológica”: “podemos inferir, a partir desses fatos, que devastação deve causar a uma região a introdução de qualquer animal de rapina, antes que os instintos dos aborígines se adaptem à habilidade ou poder do desconhecido” (Darwin, 1996, p. 72). É como se dissesse que a colonização ecológica é tão predatória quanto à expropriação humana. Esta mesma relação entre política e técnica, já identificada nos primórdios das sociedades humanas, é também realçada por Alfred W. Crosby (em Imperialismo ecológico). A técnica também parece associada ao desenvolvimento dos sentidos, em especial o tato. A articulação do polegar, “livre da mão”, propiciava o movimento de pinça, diferentemente dos macacos que tem o polegar “colado à mão”. Crosby, ao identificar no polegar livre a possibilidade do movimento de pinça, parece confirmar a tese que já aparecia em Marx e Engels (Darwin):
Com todos os seus notáveis avanços na metalurgia, nas artes, na escrita, na política e na vida urbana, a Revolução Neolítica do Velho Mundo teve como fundamento o controle direto e a exploração de muitas espécies em benefício de uma só: o Homo sapiens. O polegar oposto aos outros dedos da mão capacitara o hominídio a agarrar e manipular segmentos completos da biota a seu redor (Crosby, 1993, p. 30 - grifos nossos).
Esta é a contribuição do neolítico: o Homo sapiens que inventara a arte, a política e a técnica.É como se disséssemos que nosso “estado de ser atual”, quando nos preocupamos com o sentido político que a tecnologia adquire atualmente, é um sinal de desapontamento com a criatividade dos ancestrais, uma vez que eles “inventaram” o maior desafio que temos hoje: a Tecnologia política.Porém, para Crosby, é um sinal claro da denúncia frente à angústia do mundo moderno, em que precisamos enquanto Homens capacitar-nos para “saltos” maiores. Um “salto qualitativo” que englobe a toda a humanidade e não apenas a poucos. Lembra assim, mais uma vez, o período do Neolítico, onde tudo começou, para dizer que nossos sonhos têm de resgatar a mesma qualidade que um dia nos caracterizou, quando tínhamos unidas a arte, a política e a técnica:
As responsabilidades dos neo-europeus exigem uma sofisticação ecológica e diplomática sem precedentes: habilidade política no campo e nas embaixadas, e uma verdadeira grandeza de espírito [...] Carecemos hoje de um florescimento de inventividade equivalente ao ocorrido no Neolítico — ou, na ausência disso, de sabedoria (Crosby, 1993, p. 30).
Como se sabe, os “saltos” que se prevê para o futuro não prometem “respostas igualitárias” para a humanidade. Os especialistas em informática esperam para o próximo século um “salto qualitativo” em termos de “interfaces”, entre os aplicativos e os usuários, através do desenvolvimento das “fibras óticas” e da “digitalização”. Dissemos que os saltos não prometem nada ao futuro integrado da humanidade, porque não há vestígios no presente que garantam uma “evolução equitativa”. E se Crosby nos remete ao Neolítico, para encontrarmos essa garantia de futuro, é porque ele também não as encontrou no presente. Mas, como cronologicamente ainda estamos no século XX, voltemos para os dados que o constituem (Martinez, 1997).
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