Terça-feira, 30 de julho de 2013 - 12h01
Vinício Carrilho Martinez (Dr.)[1]
Personalidade jurídica é a capacidade/faculdade jurídica que atribui um determinado poder a fim de que se faça algo. Mas, para compreendermos adequadamente o conceito, inicialmente, é preciso afirmar que, por personalidade jurídica do Estado subentende-se uma espécie de ficção jurídica. É a faculdade ou capacidade de agir do Estado para se impor como Poder Público. Na verdade, uma corruptela do direito privado. Segundo De Plácido e Silva, por personalidade entende-se a: “Denominação propriamente dada à personalidade que se atribui ou se assegura às pessoas jurídicas, em virtude do que se investem de uma qualidade de pessoa, que as torna suscetíveis de direitos e obrigações e com direito a uma existência própria, protegida pela lei” (2002, p. 606 – grifos nossos).
Þdo latim: personalitas, de persona (compete a determinada pessoa).
(em oposição ou mera distinção a qualquer outra pessoa).
Þpersonalidade civil: advém do nascimento com vida (nascituro).
Þcapacidade de agir – possibilidade de agir.
A personalidade jurídica decorre de determinadas capacidades, ou mais especificamente da faculdade de agir. Faculdade: “Derivado do latim facultas, de facul ou facilis (fácil), possui, ampla e genericamente, o significado do poder que se tem para que se faça alguma coisa, seja de ordem física ou de ordem moral [...] A faculdade jurídica, pois, exprime o próprio exercício do direito subjetivo da pessoa, exteriorizado pela facultas agendi (faculdade de agir)” (De Plácido e Silva, 2002, p. 344 – grifos nossos). Portanto, decorre de uma capacidade bem específica:
ÞFacultas agendi: “a faculdade de agir”[2].
Þcapacidade de exercício dos direitos subjetivos.
A ação do cidadão requer a retração do Estado. O principal objetivo interposto pelo Estado de Direito, mediante a teoria da personalidade jurídica, é não-violar o direito por ele criado ou admitido, como é o caso dos direitos humanos recepcionados. Em seguida, para sacramentar a necessidade de que o Estado deveria agir em certa sintonia, formulou-se a obrigação de servir à sociedade.
Assim, o Estado toma de empréstimo uma construção lógica do Direito Civil e deve refletir a noção de personalidade jurídica, como complexo de faculdades e direitos que o homem possui em potencial. Qualidades atribuídas à pessoa e que a tornam apta para adquirir direitos e contrair obrigações. Contudo, cabe esclarecer que a facultas agendi, essa faculdade jurídica, não é sinônimo da obrigação de cumprir o que quer que tenha sido estabelecido. A obrigação é, antes, o resultado do exercício dessa mesma faculdade: a condição de estabelecer vínculos, de forma livre e autônoma. A facultas agendi do cidadão decorre, enfim, da obrigação de o Estado não-violar os mesmos direitos que o cidadão requer mediante sua faculdade de agir.
O conflito social, na ordem jurídica, não só é regular, como é necessário. Com o que se vê que Estado e poder constituem-se em realidade quando se efetiva a unidade política que respeita a pluralidade de interesses, aspirações, ideologias e visões de mundo: uma fusão política temporária, nunca definitiva, porque sempre é baseada na pluralidade. O que ainda deve oxigenar as visões mais estáticas acerca do positivismo jurídico que enfeixa a tese da personalidade jurídica do Estado. Trata-se de uma unidade de índole funcional e não um critério ou meio de unificação total.
Como mecanismo de regulação econômica, o Estado tem ainda o caráter de assistência vital, intervindo e regulando as mais notáveis condições da vida comum do homem médio. O que o caracteriza como o ideal Estado Democrático: como sujeito uniforme de domínio racional, capaz de recepcionar os conflitos e atuar no interior da auto-organização da sociedade industrial. Esta condição em que se posiciona o Estado na era industrial revela que não há paridade entre a vontade estatal e a formação da unidade política, exatamente porque outros sujeitos coletivos de direito atuam mais firmemente no contexto global. Ao passo que, em regra, “Unidade Política, Estado, Coletividade” tendem a formar o mesmo eixo de coexistência. Enfim, esta conexão entre direito e política será determinada pela ordem jurídica necessária, determinada e não-discricional (Hesse, 1998).
Teorias da Pessoa Jurídica
Para Savigny, um publicista alemão, do século XIX, a personalidade jurídica nada mais é do que uma ficção jurídicaque migra do direito privado ao direito público: a) Estado reconhece os sujeitos de direitos, nas pessoas capazes; b) comunidades jurídicas (direitos + obrigações) são pessoas jurídicas. Para o jurista alemão, os sujeitos de direitos são indivíduos conscientes; o Estado, por sua vez, constitui-se de sujeitos de direitos artificiais (o Estado é um agrupamento de interesse coletivo que supera a limitação histórica do jus puniendi).
Em outra concepção, na escola realista, não há necessidade de uma criação ficcional, uma vez que o Estado precisa, obrigatoriamente, ser definido juridicamente. Em todo caso, decorrem algumas consequências da aceitação da ideia de que o Estado tem personalidade jurídica: a) a possibilidade de tratamento jurídico dos interesses coletivos; b) impedimento à ação arbitrária do Estado, por meio de mecanismos jurídicos; c) o reconhecimento de que o Estado tem direitos e obrigações; e d) o estabelecimento de limites jurídicos claros e precisos na atuação do Estado com o particular (Júnior, 2001).
Neste caso,o reconhecimento de que o Estado tem direitos e obrigações é uma obviedade. Pois, quando não há esse “reconhecimento” o Estado é autoritário/totalitário e nesse contexto só há deveres – sobretudo o dever de obediência. Sem direito, sob o império dos deveres autocráticos, não há faculdade de agir, nem em concerto nem isoladamente. No Estado de Direito, em que há democracia, destaca-se em primeiro lugar a noção do próprio direito (a afirmação do direito e a segurança do indivíduo resultam da transferência de potência que provém do direito). Assim, principalmente, há o direito de recusar o dever injusto ou se afirma o dever de garantir a operacionalidade desse mesmo direito (agora um direito público, “de alcance e significados coletivos” – republicano, portanto - e não restrito aos limites dos direitos individuais).
Algumas causas da Personalidade Jurídica do Estado
A primeira constatação é de que o Estado possa se constituir em pessoa jurídica e, assim, a escola do contratualismo assegura que o povo é uma unidade. Para o positivismo de Kelsen, a norma é a única realidade jurídica. Dessa qualidade, o Estado transfere a personalidade (comum aos indivíduos) ao Estado. Portanto, o Estado é um produto de convenção coletiva – por imposição da lei. De certo modo, o Estado cria a norma capaz de conferir personalidade ao próprio Estado (se o Estado cria a norma que o sustenta, acaba por criar a si mesmo).
Na perspectiva do organicismo biológico, o Estado é tido como exemplo a ser seguido, como se fora uma pessoa grande. Na onda do organicismo ético de Jellinek, o Estado condensa a capacidade criada pela vontade da ordem jurídica. Parte-se da premissa de que os cidadãos têm capacidade jurídica, como pessoa física, e por isso são sujeitos de direitos. Considera-se que o direito estabelece relações entre os indivíduos e que, se o Estado é uma unidade coletiva (síntese da consciência coletiva), logo, o Estado tem personalidade jurídica.
Em sentido contrário, sobretudo no século XIX, alegava-se que o Estado pouco diferia do governo. Inclusive na crítica marxista (Lênin, 1986), diz-se que só há vontade sobre o Estado, uma vez que predomina a personalidade dos governantes (portadores da subjetividade estatal). A relação de dominação se complementaria com a (ilusão da) cooperação de serviços públicos. Diz-se que o Estado se impõe a todos, mas torna-se apenas de quase todos. O que difere, evidentemente, de tornar-se de todos. Neste sentido, a personalidade jurídica é abstrata: de quase todos. E, sendo de quase todos, pode negativamente representar a vontade jurídica de alguns: sejam grupos ou classes. Neste sentido, a visão jurídica do Estado corresponde à visão política dos governantes. Por fim, perscrutando a teoria da Finalidade do Estado, subentende-se que opovo elabora os estatutos do Estado, atribuindo-lhe a titularidade da soberania (personalidade jurídica) e preserva o fundamento democrático.
Poder Político e Reserva de Justiça
Sob a égide do Estado Democrático de Direito Social, a relação político-jurídica do Estado Democrático de Direito é bem expressa por meio de uma Constituição escrita, rígida e dirigente e, por isso, é óbvio que devem ser leis democráticas e, portanto, justas. Trata-se enfim, de regime garantístico[3]de direitos, liberdades e garantias (Estado Constitucional em defesa da democracia e do direito de auto organização[4]). Para Canotilho (s/d), controlar o poder político sob o império das leis significa “o reconhecimento de que o Estado tem direitos e obrigações[5]”.
Em resumo, o Estado detém capacidade jurídica concreta porque reúne as condições (capacidade) de propiciar alguma unidade institucional. Na verdade, hoje, “o reconhecimento de que o Estado tem direitos e obrigações” é uma obviedade. Pois, quando não há esse “reconhecimento”, o Estado é autoritário/totalitário e nesse contexto só há deveres – sobretudo o dever de obediência. No Estado de Direito em que há democracia, destaca-se em primeiro lugar a noção do próprio direito (a afirmação do Direito e a segurança do indivíduo resultam da transferência de potência que provém do Direito). Assim, principalmente, há o direito (dever) de recusar a obrigação injusta ou se afirma o dever de garantir a operacionalidade do Direito Justo.
No conceito de Estado de não-Direito, é curioso e revelador pensar que a negação esteja presa ao centro, ao interior do próprio conceito, como se fosse possível pensar em um adireito, como não-direito, negando-se a possibilidade de que possa haver direito. A personalidade jurídica presente no Estado de não-direito, portanto, é algo bizarro, absolutamente estranha à lógica em que o direito pressupõe a faculdade de agir. Como pode-se agir se não há direito e garantia para tanto?
A personalidade jurídica democrática
O expresso sentido de autocontrole do poder, a fim de contornar a sedução das forças autocráticas, foi ratificado pelaConvenção Americana de Direitos Humanos -Pacto de San José da Costa Rica(1969)e aprovada pelo Brasil, especialmente a partir de seu artigo 27, ao apontar para as condições ou casos válidos,no tocante àSUSPENSÃO DE GARANTIAS, INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO:
Controle social da personalidade jurídica
Os Direitos Humanos são universais porque são tidos por naturais, naturalmente pertencentes ao ser humano. Na ótica do direito, constituem parte da pessoa humana antes mesmo dela ter sua personalidade jurídica assegurada ou decretada pelo poder do Estado em que tenha nascido. Em suma, costuma-se declarar para efeito de determinação jurídica e divulgação popular que pertencem a todos nós independentemente de credo, raça, sexo, idade, poder aquisitivo, ideologia política, consciência moral etc.
Nesse contexto, e contando a própria estrutura institucional do Estado de Direito, é correto afirmar que o povo não tem personalidade jurídica[6], mas, nem por isso - transferindo a soberania popular ao Estado -, o povo se desvincula do interesse público, uma vez que afirma sua vontade política coletiva por meio da constituição de um governo soberano e responsável juridicamente pela administração dos negócios e dos interesses públicos.
Revela-se a própria essência e ânsia da constitucionalização da política, e que será melhor realizada, tecnicamente falando, tanto quanto esse controle de poder for capaz de operar a institucionalização do próprio poder constituinte – o que deverá delimitar a violência em torno da Constituição da República e Democrática. Em suma, opera-se a passagem da luta política visceral (radical, literal, carnal) à fase da luta institucional (operativa, organizativa, instrumental) em torno do Estado já democratizado, coletivizado, desprivatizado.
Na prática, isso implica dizer que uma consciência jurídica difundida, reconhecida e, ao menos relativamente previsível (como consciência jurídica globalmente respeitada, requerida e reiterada), não pode – por força da lógica – gerar uma estrutura política ou um poder político autocrático e que a torne indefesa diante de alguns interesses políticos inconfessos[7]. Assim:
A articulação das dimensões do Estado de direito e do Estado democrático no moderno Estado Constitucional Democrático de Direito permite-nos concluir que, no fundo, a proclamada tensão entre “constitucionalistas” e “democratas”, entre Estado de direito e democracia, é um dos “mitos” do pensamento político moderno. Saber se o “governo das leis” é melhor do que o “governo dos homens” e vice-versa é, pois, uma questão mal posta: o governo dos homens é sempre um governo sob leis e por meio das leis. É, basicamente, um governo de homens segundo a lei constitucional, ela própria imperativamente informada pelos princípios jurídicos radicados na consciência jurídica geral[8](Canotilho, s/d, p. 231).
Desse modo, quando, na história da Humanidade, a complexidade social era superior à capacidade reguladora do Estado, ele próprio, o Estado, viu-se obrigado a refundir as instituições do poder e assim criou-se a República, a Democracia, o Estado de Direito e a Federação. Este conjunto complexo, por sua vez, alimenta a soberania jurídica, a ordem jurídica democrática e condicionam indelevelmente a personalidade jurídica do Estado Democrático.
Bibliografia:
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 4ª Edição. Lisboa-Portugal : Almedina, s/d.
De Plácido e Silva. Vocabulário Jurídico. 19ª ed. Rio de Janeiro : Forense, 2002.
HESSE, Konrad. Lei Fundamental da República Federal da Alemanha. Tradução publicada pelo Departamento da Imprensa e Informação do Governo da República Federal da Alemanha, 1998.
JÚNIOR, José Cretella. 1.000 perguntas e respostas sobre Teoria Geral do Estado. Rio de Janeiro : Forense, 2001, p. 23.
LÊNIN, V. I. O Estado e a Revolução. São Paulo : Editora Hucitec, 1986.
[1]Professor do Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Rondônia.
[2]Constitui opção, inclusive, do direito de não-fazer, de abster-se de agir. Diferentemente da omissão, pois aqui há a presunção da obrigatoriedade do dever de agir.
[3]Como regime de garantia e suporte dos direitos, mas agora entendido como corolário de instrumentais técnicos (direito de petição, por exemplo) e políticos (democracia).
[4]UmaConstituição promulgada solenemente e que constitui uma reserva de justiça(reserva de valor democrático, republicano) quanto aos direitos, deveres, obrigações e garantias de preservação do próprio interesse público.
[5]Teoricamente: “Sujeição do poder a princípios e regras jurídicas” (Canotilho, s/d, p. 231). Na ordem prática da política, o regime democrático é obstáculo eficiente ao fascismo, da mesma forma como práticas autocráticas não beneficiam ou instigam a democracia e seus procedimentos.
[6]Ainda que possa agir por meio de inúmeros agentes e sujeitos coletivos de direito.
[7]Teoricamente: “Sujeição do poder a princípios e regras jurídicas” (Canotilho, s/d, p. 231). Na ordem prática da política, o regime democrático é obstáculo eficiente ao fascismo, da mesma forma como práticas autocráticas não beneficiam ou instigam a democracia e seus procedimentos.
[8]Donde se percebe que as teorias ficcionista e realista da personalidade jurídica do Estado formam um todo, mas que são analisadas separadamente para se garantir maior qualidade pedagógica.
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Vinício Carrilho Martinez (Dr.) Cientista Social e professor da UFSCar Márlon Pessanha Doutor em Ensino de CiênciasDocente da Universidade Federal de