Sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014 - 15h54
Vinício Carrilho Martinez[1] Artigo em PDF AQUI
Layde Lana Borges da Silva[2]
O homem não tece a teia da vida: É antes um dos seus fios.
O que quer que faça a essa teia, faz a si próprio
Cacique Seattle, da tribo Suquamish - 1855
No artigo, observaremos como temática geral que o Estado de Direito formal, isento de valores e de perspectivas culturais não se coaduna – nem mesmo formalmente – às necessidades mais prementes de inúmeras comunidades singulares, como são os grupos indígenas.
O caso concreto trazido ao texto remete ao enfrentamento entre os índios Tenharim, no sul do Amazonas, e as comunidades brancas circunvizinhas. No enfrentamento analisado três viajantes regressando a suas residências foram aprisionados e, supostamente, executados por índios Tenharim, em represália à morte de uma liderança às margens da rodovia, possivelmente atropelado. O caso ainda está sob análise e investigação e exigiu a ação federal, dada a mortandade que outros conflitos certamente iriam gerar na região.
Os Tenharim são uma população indígena composta por outros grupos[3] que pertencem a um conjunto mais amplo de povos reconhecidos, os Kagwahiva. Esses índios subdividem-se em duas regiões amazônicas os Kagwahiva setentrionais que vivem na região do curso médio do rio Madeira, no sul do Estado do Amazonas e os Kagwahiva meridionais, que se estabeleceram no alto Madeira e rio Machado. Os povos Kagwahiva falam a mesma língua e pertencem à família Tupi-Guarani. Organizam-se conforme um sistema de metades matrimoniais com nomes de aves: o mutum e o gavião (PEGGION, 2006, p. 150).
O objetivo aqui será a análise da relação (ou mesmo reação) dos Tenharim com o contexto contemporâneo, num momento onde o horizonte relacional em perspectiva é o de abandono por parte do Estado e hostilidade pela sociedade que vive nos arredores das áreas indígenas.
I - Antropologia do Estado Nacional Monista
Esta parte do texto procura analisar a natureza pluriétnica do espaço público – é bom lembrar que o espaço público não se limita à esfera estatal, sendo mais amplo e complexo, uma vez que incorpora, inclusive, as relações público-privado.
A formação do Estado Nacional traz o mito de que se formou uma homogeneidade, diante da qual deriva uma aceitação e adesão acrítica às suas instituições. De fato, não é equivocado dizer que no interior do Estado (de Direito, por efeito da subsunção) coexistam culturas e comunidades políticas diversas e por vezes antagônicas.
Sob a forma estatal, o poder público se garante pelo monismo político-jurídico, mas em sua base social emerge um pluralismo de atores sociais com significados culturais, muitas vezes, opostos. De modo complementar, pode-se dizer que o direito internacional tem um reflexo interno, pois o Princípio da Autodeterminação dos Povos deveria ser observado como recurso da autonomia requerida pelas culturas.
O fator de desequilíbrio, portanto, é a existência de fontes de poder no interior do Estado-Nação – algumas alinhadas pelo parentesco e que podem interferir na unidade política. O que leva à suposição de um Estado Democrático de Direito Pluriétnico (Brito, 2011). O poder central precisa ser monista, mas a sociedade é pluralista. O povo é um elemento constitutivo do Estado, mas é uma unidade política apenas simbólica e juridicamente, porque é pluralista na etnicidade.
Nação e povo se entrelaçam, mas o povo como unidade política é uma abstração jurídica (formalismo), visto que em seu interior convivem – nem sempre harmoniosamente – diversas nações de culturas e práticas sociais comuns. A contradição está no fato de que o Estado é um pacto político unitário e centralizado. Articulado por um sistema jurídico que se quer homogêneo, universalista, monista (porque decorreria unicamente do Estado), as diversidades acabam desprezadas. O Estado de Direito monista (desde o século XIX) não apenas representa-se por um único povo; além disso, atua sobre as culturas como se fossem um todo orgânico, não-contraditório. Age por meio da coerção (erga omnes) do poder central (extroverso)[4].
O problema, então, está na organização político-jurídica da sociedade nacional que não reconhece a pluralidade cultural e a diversidade de nações, em seu território[5]. No Brasil, a luta por autonomia dos povos indígenas, bem como os quilombolas, é significativa. A luta pelo reconhecimento, neste caso, é antropológica, em oposição constante à luta por conservação da Razão de Estado. Por isso, o Estado Moderno é pressionado a se refazer, por força da ética antropológica.
A imagem monista de que o Estado é um grande homem, recheado de indivíduos menores, singulares, é uma incompreensão absolutista, uma vez que – mesmo sob uma sociedade nacional unitária – as relações sociais são de oposição, contraditórias e antagônicas. O que pode gerar antinomias e luta pela libertação[6].
Para Wolkmer (2001), o Estado Pluralista teria de reconhecer e se pautar pela tolerância, diversidade, localismo, descentralização e autonomia. O Pacto de San Jose já reconhecera a necessidade deste reconhecimento, como direito à autodeterminação dos povos (art. 1º) e também a CF/88 (art. 4º, III). O problema é que o Brasil reconhece para os outros povos (Palestina[7]) e não internamente. Além de outros pontos a serem superados na estruturação excessivamente formal do Estado de Direito brasileiro:
O mesmo se vê na Declaração e Programa de Ação de Viena (1993)[8]quando estabeleceu algumas bases para este Estado Democrático de Direito Internacional (ou Estado Democrático de Terceira Geração), em que a autonomia não pressupõe guerra de secessão e muito menos supressão cultural, mas reconhecimento dos povos como entidade de direito público.
Também a Declaração de Princípios sobre a Tolerância[9], logo em seu artigo 1º (Paris, 1995)[10], referenda a autonomia cultural das nações. Curioso lembrar que o Poder Judiciário, ao julgar questões relativas à especificidade cultural de nações indígenas no Brasil faz luz ao mesmo Princípio da Tolerância cultural/racial[11]. O que não deixa de ser um ideal porque os Estados monistas conservadores não irão reconhecer facilmente o pluralismo das lutas libertárias e por reconhecimento.
II - Cosmogonia e o fim de tudo
Todo ato de homicida deve ser avaliado e – salvo exceções – severamente punido, a fim de que o convívio social esteja preservado. Como se sabe, esta é uma regra definida pelo Crime de Homicídio. Entretanto, há exceções e é sobre uma dessas exceções que recobrem os povos indígenas que esta parte do texto irá se desdobrar.
Do grego antigo, Cosmogonia tem um significado duplo e complementar: cosmo (universo, mundo) e gon (imaginar, criar, produzir). É o sentido que fabrica o mundo. E o que fabrica o mundo tradicional dos povos indígenas é o que a cultura autoriza, aquilo tudo que o grupo de ancestrais interpretou e vem interpretando na ordem da cultura como significativo e regular. Ou seja, o que dá sentido à existência de cada um e ao grupo como um todo.
Não se trata aqui de recolher todos os detalhes históricos do ocorrido com a tribo Tenharim[12], no sul do Amazonas, mas, pode-se dizer que esteja se passando o mesmo que aflige centenas/milhares de outros grupos; o contato excessivo, capitalista, consumista, preconceituoso e violento com o homem branco vai aos poucos – ou rapidamente –, desagregando sua cosmogonia, seuuniverso[13]. Esse contato gerou conflito, acirrou uma entropia desagregadora.
Se compararmos as sociedades naturais com as sociedades complexas, ou a natureza humana com o que se convencionou chamar de segunda natureza (alteração do natural pelo recurso teleológico humano[14]), veremos que as distâncias entre elas talvez nunca diminuam. Segundo Lévi-Strauss, entrevistado por Charbonnier:
Os primitivos fabricam pouca ordem em sua cultura. Nós os chamamos hoje de subdesenvolvidos. Mas fabricam pouca entropia em sua sociedade. Em resumo, essas sociedades são igualitárias, de tipo mecânico, regidas pela regra de unanimidade [...] Ao contrário, os civilizados fabricam muita ordem em sua cultura, como nos mostram o maquinismo e as grandes obras da civilização, mas fabricam também muita entropia em sua sociedade: conflitos sociais, lutas políticas, todas as coisas contra as quais vimos que os primitivos se previnem de maneira talvez mais consciente e sistemática do que teríamos suposto (1989, p. 36 - nosso grifo)
Este é o pressuposto, o ponto de partida, que tanto nos aflige hoje. A ele estamos condicionados, submetidos, mas não subjugados. A escolha, a diferenciação, os meios e os conflitos, a que faz referência Lévi-Strauss, constituíram parte das decisões técnicas da humanidade. Um caminho imposto por nós mesmos; parecendo, de certo modo, um ponto de chegada.
Por outro lado, se não estamos subjugados, porque foi simplesmente o que sempre quisemos e fizemos, pode-se dizer que há espaços de manobra para novos e outros sujeitos individuais e coletivos[15]. E se isto é real, por que os povos da floresta estariam alijados deste convívio com a modernidade?
Mais do que um estilo de vida ameaçado, é o próprio sentido da existência – a razão, a certeza para continuar – o que desmorona, que escoa como os rios da Região Amazônica. Os índios de todo gênero (salvo exceções que talvez nem existam) não conhecem e não praticam o direito e o poder como nós: os “desenvolvidos do Ocidente”. Sua noção de civilização é totalmente distinta: civilizado é aquele que está ajustado à natureza, que respeita as regras sociais e coletivas, que venera os antepassados e celebra a cultura da unidade.
O direito praticado pelos índios é uma troca incessante de experiências e de ajustamento às necessidades, preservando-se as regras que efetivamente se mostrarem salutares e eficazes para a unidade grupal e cultural. Portanto, praticam um tipo de direito costumeiro – os ocidentais chamariam de consuetudinário. Porém, a grande diferença é que o direito consuetudinário ocidental reconhece uma hierarquia jurídica, é positivista (quer dizer, precisa ser aprovado, publicado e chancelado pelo Estado) e monista (ou seja, sem o deferimento ou assenhoreado estatal não há validade legal).
Mesmo o direito inglês, consuetudinário por excelência, pode ser reconhecido também como direito escrito e constitucional – em que, historicamente, há um documento jurídico precursor de validação do restante do ordenamento jurídico. No caso, a primeira Constituição inglesa remonta ao Bill of Rights ou Magna Carta, de 1215.
Com tal mescla entre a adoção dos diplomas escritos e a aplicação dos leading cases[16], o costume tem relevância e faz parte dessa sistema Common Law dos países anglo-saxões.
Os índios, como povos primitivos[17], os primeiros em seu território, não fabricaram um Poder Político organizado, centralizado, estereotipado, burocrático e legalista como o Estado Ocidental. Sua prática de poder é comunitária, organizacional sim, mas em que prepondera a horizontalidade e a diversidade social, cultural e ambiental.
Observa-se, no máximo, uma liderança espiritual em algumas tribos na figura de seus pajés e outras denominações e grande respeito pelos mais velhos em que se os caciques tem a atenção dos demais em suas opiniões sobre caça, distribuição de tarefas e mobilidade, mas o certo é que desconhecem um “poder político-vertical” que obriga a todos a reverenciar os próprios detentores do poder.
Entre os povos indígenas não há culto à personalidade, não há promessas, propagandas ou campanhas políticas, como as conhecemos. Mesmo o deputado Juruna, inserido no contexto democrático do chamado “homem branco”[18] quando não satisfez mais os interesses indígenas, acabou afastado da atividade legislativa.
Os índios desconhecem a perspectiva da soberania de um território como a afirmada no positivismo jurídico: summa potestas[19]. O conceito de soberania aplicado no Ocidente é organizado a partir de um sistema internacional complexo.
No plano internacional, a soberania é limitada por seu próprio exercício, uma vez que será sujeito às regras de direito internacional a que aderiu espontaneamente. De acordo com o acórdão de 17/08/1923, CPJI, da Corte Permanente de Justiça Internacional: “A faculdade de assumir compromissos internacionais é precisamente um atributo da soberania do Estado”. A igualdade jurídica entre os Estados é prevista no artigo 2º, §1º da Carta das Nações Unidas, de 1945[20].
A percepção indígena é mais aproximada do que se denomina de soberania radical ou profunda, a partir da experiência político-institucional da União Europeia, com profundo senso de responsabilidade social/ambiental (Fleiner-Gerster, 2006).
No caso dos Tenharim, onde esteve o Poder Público? Ausente displicentemente ou propositadamente? Por que não impediu o choque cultural, o fluxo devastador sobre esse grupo indígena? O Poder Público permite a afronta regular à Constituição Federal de 1988, notadamente em princípios fundamentais? A salvaguarda é Constitucional:
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
§ 1º - São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
§ 2º - As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.
§ 3º - O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.
§ 4º - As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.
§ 5º - É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, "ad referendum" do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.
§ 6º - São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé.
§ 7º - Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, § 3º e § 4º[21].
Como vemos nos incisos grifados, a soberania natural, profundamente interligada à cultura da natureza, confere aos índios a zeladoria ambiental em toda a região. Qualquer ato atentatório é um atentado à soberania constitucional. Na verdade, ainda que haja a salvaguarda constitucional, esses povos desconhecem o Poder Político, dedicando-se unicamente ao Poder Social, como interface global entre o grupo e o meio circunvizinho.
A antropologia indígena é natural, a nossa é científica. Seu mundo é natural, o nosso é regulado pelo poder como “monopólio do uso legítimo da força física” (violência); para nós, este poder é externo, subsumiu-se do grupo humano, para estar de posse de uma instituição jurídica.
Aliás, eles mal conhecem a figura da instituição ou da organização, apenas a cultura global que desempenha essas e outras funções. Por essa razão, pode-se dizer que – em regra – são “sociedades contra o Estado” (Clastres, 1990). Nossa cultura é artificial, não nos reconhecemos sem a fabricação da arte, da política e da técnica.
Entretanto, os povos primitivos, os primeiros a ocuparem o território brasileiro, praticam uma cultura “verdadeira”: a expressão vem do latimcolere,cultivar;cultura, de colo, praticar. A cultura dos povos indígenas não conhece o indivíduo/sujeito alheio ao meio cultural. Não há Tenharim que não se reconheça como Tenharim; não há invisibilidade social/cultural de alguns indesejados, como conhecemos na sociedade capitalista.
No caso específico, esses povos mantêm a sua sociedade em harmonia com a natureza. Sua sociedade é em rede, sempre foi, mas só reconhecemos este feito tardiamente. Contudo, ao contrário das sociedades modernas, trata-se de uma rede natural, espontânea e vibrante, em contato aceso com a natureza e com outros grupos. Não são redes artificiais de relacionamento ou de comunicação (Castells, 1999).
Se, portanto, falha toda esta maneira própria de orientar-se nesse cosmo, ocorre o desvirtuamento de papéis sociais esperados e de funções efetivamente praticadas. Um lapso na sequência lógica dos fatos desmorona a compreensão que se dava regularmente aos efeitos naturais e sociais. Assim, um acidente na estrada pode ser interpretado facilmente como ato hostil de agressão ao grupo todo, verificado o histórico de agressões culturais e de violências sofridas ao longo de décadas de degradação da vida natural pela ação civilizadora do homem branco.
Na essência, esses povos são altruístas[22], quase pueris em seu contato pouco mais do que mágico com a realidade da natureza. O altruísmo é uma necessidade do ser humano, porque sem generosidade não há interação social – o princípio da vida social (Florestan Fernandes, 1977). Aliás, como sinônimo de urbanidade, o altruísmo é a mola mestra da condição humana: como prática política – já nos ensinaram os gregos. Outros povos, como os Astecas, no México, conjugavam perfeitamente este nexo entre interação e generosidade (urbanidade). Suas práticas de violência eram rituais, não havia uma cultura de morte, como não há entre os índios brasileiros.
Por fim, resta dizer que sem o ajustamento e equilíbrio da cosmogonia, o próprio senso moral (a adequação das ações com os costumes) é profundamente prejudicado e ameaçado. O certo e errado se desfaz quando sabemos que não é certo sermos atacados e ameaçados, mas assim mesmo nós o somos e, muitas vezes, por aqueles que deveriam zelar juridicamente efaticamente pela sobrevida do grupo, da tribo, da etnia.
Quando o Poder Público falha estrondosamente na pacificação do território já demarcado, quando permite a presença de garimpeiros, grileiros, matadores, seguranças, jagunços, madeireiros, enfim, pessoas com as mais variadas índoles e interesses, é um milagre que os índios estejam vivos para reagir.
E assim será a História: os silvícolas sofrerão com o “desterramento” e poderão ser dizimados, sempre que o Estado for omisso em sua efetiva proteção, mas não sem a reação daqueles a quem a terra já pertencia.
Assim é que, com esse contato e interações, os Tenharim e outras populações indígenas vão se reorganizando para sobreviverem.
Em observação mais incisiva PEGGION trás em epílogo ao seu artigo sobre os Tenharim:
Penso que o uso de recursos outros – núcleos do mundo moderno –, como as máquinas de que me utilizo, não me desconectam da relação constitutiva da tradição do pensamento antropológico. [...]
Por outro lado, as sociedades indígenas não fazem diferente.
Quando não são destroçadas pelo efeito do contato mais perverso sobrevivem e reorganizam suas vidas. Um olhar superficial a um ritual como o analisado acima poderia indicar o triste fim de um povo: os objetos e utensílios são modernos; aos convidados servem suco artificial em pó e biscoitos água e sal; cozinham suas carnes em grandes panelas, temporariamente emprestadas da escola, e as aldeias mais distantes chegam de caminhão para participar da festa.(2006, p. 164)
Um lamento pensar que diante de um mínimo de utilização dos “recursos modernos” por parte dos índios os tornam capazes de compreender toda a gama cultural, jurídica e antropológica do mundo civilizado como nós o conhecemos. Como se numa perspectiva de extrema soberba, os obrigados a “nos compreender” fossem os índios e não houvesse necessidade de reciprocidade ou cooperação entre todas as raças e etnias.
A violência não pode ser tolerada, mas de nenhum dos lados. E quando se defronta um grupo todo com um fluxo de invasão desordenada, crescente e desrespeitoso, há que se falar na legítima defesa da cosmogonia, do grupo e de cada indivíduo isoladamente.
Sabe-se perfeitamente como se deu a ocupação de boa parte da Amazônia Legal, com truculência e assassinatos premeditados, basta não nos deixemos levar pelos engodos e lobbies de mídia para que possamos conferir os fatos reais.
Parte dessa prática se confirmou com verdadeiros atos terroristas/genocidas: a entrega de roupas e utensílios contaminados com vírus, alguns simples para nós, como a gripe, mas mortais para os índios que não tinham imunidade[23]. Tais fatos credenciariam as pessoas/autores desses crimes ao posto de réus no Tribunal Penal Internacional de Haia nos dias de hoje.
Em outros casos, semelhantes na intenção/ação do democídio, expedições de ocupação foram patrocinadas pelo Estado, especialmente no período da ditadura militar. Portanto, praticou-se o democídio (Cunha, 2010) toda vez que o adversário social foi elevado à condição de inimigo geral, o que autorizaria sua eliminação.
Os índios foram eliminados em nome da civilização branca, capitalista e predatória, no passado recente, assim como ainda são, para a vergonha geral da nação dos homens de bem, ameaçados atualmente.
Como diziam os antigos: “na casa que falta pão, todos brigam e ninguém tem razão”.
Para novas reflexões
É ilusão pretender, com o senso da eficácia jurídico-social, que o mesmo ordenamento jurídico-moral seja, por exemplo, aplicado a jovens delinquentes e aos articulados detratores da coisa pública. A Antropologia Jurídica nos balizou, até hoje, a ver e apreender a grande diferença entre compreensão, conscientização e generalização. Em suma, esta é a visão decorrente das contribuições da Antropologia Jurídica.
O sentido de unidade que decolou das observações antropológicas, junto ao mundo novo dos povos africanos e indígenas, segue uma estrutura que diverge completamente do positivismo jurídico ocidental. A Antropologia Jurídica reforçaria a perspectiva de que o direito é social (e não estatal), com “vistas à interação social”, como também destaca a Sociologia Jurídica. Ainda observamos que são sociedades interligadas, holísticas, pode-se dizer em rede.
A ideia de rede pratica nas sociedades indígenas assemelha-se a um verdadeiro Estado de Direito autóctone; no Ocidente, como aporte social ou comunitário, é igualmente secular. Pode-se dizer que a imagem do pescador que serve a toda a comunidade, fazendo uso de sua rede, é bíblica, como se vê com Padre Vieira:
Fez Cristo aos Apóstolos pescadores de homens, que foi ordená-los de pregadores: e que faziam os apóstolos? – Diz o texto que estavam reficientes retia sua: “refazendo as redes suas”; eram as redes dos Apóstolos, e não eram alheias. Notai: retia sua: não diz que eram suas, porque as compravam, senão que eram suas, porque as faziam; não eram suas, porque custavam o seu dinheiro, senão porque custavam o seu trabalho. Desta maneira eram as redes suas, por isso eram redes de pescadores que haviam de pescar homens; com redes alheias, podem-se pescar peixes, homens não se podem pescar. A razão disto é porque nesta pesca de entendimentos, só quem sabe fazer a rede sabe fazer o laço. Como se faz uma rede? – Do fio e do nó se compõem a malha, quem não enfia nem ata, como há de fazer a rede? E quem não sabe enfiar nem sabe atar, como há de pescar homens? A rede tem chumbada que vai ao fundo, tem cortiça que nada em cima da água. A pregação tem umas e outras coisas de mais peso e de mais fundo, e tem outras de mais superficiais e mais leves; e governar o leve e o pesado, só o sabe quem faz rede. Na boca de quem não faz a pregação, até o chumbo é cortiça (Vieira, 1997, p. 134)[24].
Ou é, antes, um sentido geral da vida. Pois, no limite, a própria vida só seria percebida com o emprego de uma metodologia radial, a exemplo do que propõe Capra:
Isto sabemos. / Todas as coisas estão ligadas / como o sangue / que une uma família... / Tudo o que acontece com a Terra, / acontece com os filhos e filhas da Terra. / O homem não tece a teia da vida; / ele é apenas um fio. / Tudo o que faz à teia, ele faz a si mesmo.
— TED PERRY, inspirado no Chefe Seattle (Capra, s/d, p.09).
Em trabalho anterior, Capra já havia sistematizado seu pensamento sobre o olhar holístico (se bem que neste caso estivesse mais preocupado com a metodologia e menos com a perspectiva política):
Os novos conceitos em física provocaram uma profunda mudança em nossa visão do mundo, passou-se da concepção mecanicista de Descartes e Newton para uma visão holística[25]e ecológica, que reputo semelhante às visões dos místicos de todas as tradições [...] Vivemos hoje num mundo globalmente interligado, no qual os fenômenos biológicos, psicológicos, sociais e ambientais são todos interdependentes. Para descrever esse mundo apropriadamente, necessitamos de uma perspectiva ecológica que a visão de mundo cartesiana não nos oferece [...] Assim que isso acontecer, podemos esperar que os vários movimentos fluam juntos e formem uma poderosa força de mudança social [...] Essa nova visão inclui a emergente visão sistêmica de vida, mente, consciência e evolução; a correspondente abordagem holística da saúde e da cura; a integração dos enfoques ocidental e oriental da psicologia e da psicoterapia; uma nova estrutura conceitual para a economia e a tecnologia; e uma perspectiva ecológica e feminista, que é espiritual em sua natureza essencial e acarretará profundas mudanças em nossas estruturas sociais e políticas (1982, pp. 13-14).
A inspiração do conceito atual de rede vem da Biologia, mais precisamente da Botânica. A imagem projetada pelo entrelaçamento das raízes transformou o rizoma no atual conceito hegemônico da rede[26]. Contudo, é preciso ver que o rizoma possui um centro de aglutinação ou origem dos ramos das raízes da cultura unificada, ramifica-se e se distribui sem controle central.
Nas sociedades primeiras, o que remonta ao papel do indivíduo na sociedade, à participação com responsabilidade, uma vez que não há centralidade diretiva, é a cultura unificadora. E dessa forma pode-se dizer que não estamos mais sob o desígnio absoluto das regras já estabelecidas, ainda que nossa atuação sobre os mecanismos de formulação política, gerência e normatização esteja muito aquém.
Por fim, devemos aprender em definitivo que o Estado de Direito formal – longe da ética, da Justiça que se pratica com a multiplicidade cultural – não serve como baliza para entender o país e suas infinitas balizas de miscigenação e de multiculturalismo.
Um desses intérpretes formais do Brasil é Carl. F. P. Von Martius, um naturalista que, em 1817, veio para cá contratado pela família real. Nesse afã de pesquisador, dizia-nos o jovem botânico sobre sua intenção: “Antes, porém, de entrar no assunto especial desta investigação, devemos lançar um golpe de vista sobre o estado social dos selvagens que habitam o Brasil, porque, um direito e condições jurídicas, pressupõem uma história e um estado especial que dela deriva” (1982, p. 12).
O título do livro de Von Martius é O Estado do Direito entre os autóctones do Brasil, pois sua intenção era traçar as linhas gerais do Estado de Direito Indígena. Agora, vejamos como Von Martius se referia à estrutura de poder e de representação jurídica, entre os índios no século XIX e como se fosse plausível, possível um Estado de Direito nos velhos moldes burgueses/ocidentais:
O pajé [...] Onde ele funciona em qualidade de juiz, interdiz certos objetos com exorcismos diversos, de modo que o ex-proprietário se convence mais do seu direito sobre eles, ou perde-o, geralmente a favor do pajé ou de um seu protetor. Incutindo a crença de feitiçaria, limita, amplia, assegura ele, muitas vezes a uma comunidade inteira a posse de propriedades, direitos ou faculdades [...] Assim atua ele como embusteiro enganando, diretamente por si ou em conivência com o chefe, alegando o mandado de um mundo de espíritos superiores, incompreensíveis, constituindo-se legislador, juiz e executor (1982, p. 34).
Nosso intérprete, em sua redoma de ignorância, esperava encontrar entre os índios a mesma disposição jurídica e política europeia, baseando-se no Estado de Direito Formal e na divisão dos poderes como queria Montesquieu. Não percebera que a cultura indígena é uma, integrada e que não há a mesma figura de líder ou formato de poder que se encontra no Estado Moderno Ocidental. Sabemos que, nas chamadas culturas primitivas ou “primeiras”, não há subsunção, formalizando a ação de uma norma abstrata, em direção ao mundo real e nem há separação de poderes em uma trinca de instituições. Para analisar pela Antropologia, realmente, temos de tomar Clastres:
O que se deve imaginar é um chefe sem poder, uma instituição, a chefia, estranha à sua essência, a autoridade [...] Essencialmente encarregado de resolver os conflitos que podem surgir entre indivíduos, famílias, linhagens etc., ele só dispõe, para restabelecer a ordem e a concórdia, do prestígio que lhe reconhece a sociedade. Mas evidentemente prestígio não significa poder, e os meios que o chefe detém para realizar sua tarefa de pacificador limitam-se ao uso exclusivo da palavra [...] Empreendimento cuja vitória nunca é certa, aposta sempre incerta, pois a palavra do chefe não tem força de lei (1990, 144)[27].
Para entender adequadamente a interação dos povos indígenas e demais segmentos sociais e culturais, é preciso retomar com fôlego e intenções reais um pluralismo jurídico-institucional que oriente as ações políticas e culturais das principais autoridades públicas.
Bibliografia
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http://tribunadaimprensa.com.br/?p=79273
[1]Professor Adjunto III da Universidade Federal de Rondônia – UFRO, junto ao Departamento de Ciências Jurídicas/DCJ. Pós-Doutor em Educação e em Ciências Sociais e Doutor pela Universidade de São Paulo. Bacharel em Ciências e em Direito, é jornalista.
[2]Professora Assistente I da Universidade Federal de Rondônia – UFRO, junto ao Departamento de Ciências Jurídicas/DCJ. Mestre em Direito Processual pela Universidade Católica de Pernambuco. Bacharel em Direito. Coordenadora de Apoio Pedagógico – DCJ/UFRO.
[3]Entre os Kagwahiva setentrionais encontram-se os grupos de Tenharim (constante na documentação e relatórios indígenas como grupos isolados), os Parintintin e os Jiahui. Na região do rio Machado, no estado de Rondônia, temosos Kagwahiva meridionais: os Juma (vindos da região do rio Purus), os Jupaú (Uru-eu-wau-wau), os Amondawa e os Karipuna.
[4]Disto resulta, não-raramente, a perseguição e a limpeza étnica. Mesmo em Estados não abalados por conflitos sistemáticos, como o de castas (Índia), a assimilação cultural que gera dominação tradicional é evidente. Inversamente, a Suíça representaria um Estado (uno) de convivência intercultural (descentralizado), a partir dos Cantões.
[5] A luta do povo Basco é ilustrativa da busca do reconhecimento.
[6] Na atualidade, um caso sintomático é a Chechênia.
[7] O Estado nacional é igualmente contraditório ao designar o mesmo tratamento diplom&
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Vinício Carrilho Martinez (Dr.) Cientista Social e professor da UFSCar Márlon Pessanha Doutor em Ensino de CiênciasDocente da Universidade Federal de