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Gente de Opinião

Vinício Carrilho

Povo Pobre


Vinício Carrilho Martinez (Dr.)[1]

            Para pensarmos a estrutura básica do Estado, desde sua fundação no século XVII até a atualidade, realmente devemos reter a sequência de povo, território e soberania, pois é o povo que se fixa em determinado território e aí estabelece sua soberania.

Todos os grupos constituem-se em Povo e em Estado?

            Alguns grupos humanos formam-se em comunidades, mas não se constituem em sociedades políticas, na forma de Estados que organizam o Poder Político. Ou seja, são grupos humanos que se organizam em termos de poder social, como comunidades políticas – porque têm lideranças, convivência pública – mas não se estruturaram em sociedades políticas desenvolvidas como temos nos Estados. O chefe ou líder político representa o espaço e o convívio público, mas não há a ideia de representação, de poder delegado, em que se abdica do próprio exercício do poder político:

O chefe não é um comando, as pessoas da tribo não têm nenhum dever de obediência. O espaço da chefia não é o lugar do poder[2], e a figura (mal denominada) do “chefe” selvagem não prefigura em nada aquela de um futuro déspota. Certamente não é a da chefia primitiva que se pode deduzir o aparelho estatal em geral” (Clastres, 1990, 143 – grifos nossos)[3].

Assim, há uma concepção que tem muito que ver com o princípio da organização social, com a perspectiva de que a cultura pode se revestir de poder político (como nós entendemos o próprio direito na forma do controle social) e nem por isso vir a se erigir na forma conhecida do Estado e do direito moderno:

Segundo Southall, duas circunstâncias são favoráveis a essa evolução. Um dos grupos em presença possui uma organização política eficaz em grande escala; dispõe dos meios que permitem organizar politicamente um espaço ampliado e acaba impondo sua supremacia às microssociedades com as quais se acha em relação. Um dos grupos encerra líderes de tipo carismático, e estes se tornam os chefes solicitados pelas sociedades vizinhas ou “modelos” pelos quais elas organizam o poder interno, subordinando-o. Num caso é a competência a dirigir um espaço político ampliado, no outro é a qualidade do líder que possibilita o estabelecimento de uma estrutura de dominação. Estaria, então, formado o germe estatal (Balandier, 1969, p. 145 – grifos nossos).

Está clara a descrição dessa capacidade cognitiva do homem em se organizar e propor formas de liderança. A questão estaria em investigar se a dominação político-jurídica seria equidistante em termos dos envolvidos nas hastes do poder. Mesmo para a Antropologia, o Estado serviria apenas para garantir essa desigualdade e essa extrema concentração de renda: “F. Oppenheimer [...] define todos os Estados conhecidos pelo fato da dominação de uma classe sobre a outra para fins de exploração econômica” (Balandier, 1969, p. 141). Ainda com Balandier (1969):

Os Estados podem vir a existir seja pela federação voluntária de duas ou mais tribos, seja pela subjugação de grupos fracos ou grupos mais poderosos, que acarreta a perda de sua autonomia política [...] R. Beals e H Hoijer consideram ainda, com menos reservas, que o direito exclusivo de recorrer legitimamente à força e à coerção – pelo qual se define o poder governamental – “só aparece com o Estado de conquista” (p. 142).

O fenômeno da dominação de classes foi consagrado no período denominado de acumulação primitiva, sobretudo na Europa herdeira das Rotas da Seda, mas não é uma exclusividade. Em sentido amplo, a categoria povo, como elemento de formação do Estado é aceita com a instituição do Estado Moderno; porém, o povo como condição política transformadora da realidade antecede em muito a esse período.

Historicamente, depois da célebre declaração romana de que “o poder pertence ao Povo”, Vico foi um intérprete importante dos atos humanos no contexto histórico. Portanto, além de um atributo jurídico, povo é uma realidade política que supõe a instauração de direitos e a transformação da realidade política.

Vico e a construção do Povo

Após Bodin, Giambattista Vico (1688-1744), no final do século XVII, no livro A Ciência Nova (Scienza Nuova), protagonizou a perspectiva de uma nova sociedade, com novos olhares para a história, e que fosse a própria história dos homens: “Nas sombras há menos monstros; heróis e deuses evaporam-se. O que vemos agora são os homens tal como os conhecemos, no mundo que conhecemos” (Wilson, 1986, p. 10). Dessa forma, Vico esboça uma história da sociedade humana a partir das experiências das descobertas da língua, dos mitos e da poesia. Disso resulta evidente que para Vico o homem faz e sofre a história. Portanto, seria preciso conhecer seu entorno cultural, mitos, linguagem e regras.

Vico traz uma filosofia da história apresentada por uma teoria cíclica das formas de governo. Este sequenciamento, porém, leva-o a retornar a um “estado bestial” (stato ferino) em que não há sociabilidade. Nesta fase, seríamos seres totalmente associais. Por outro lado, há diferenças claras entre os três tipos de estado natural (que se colocam acima da bestialidade humana inicial). Entre o “estado bestial” e o nível das repúblicas há a fase intermediária das “famílias”. Para Vico, este já seria o estado de natureza, posterior ao estado bestial. Portanto, o estado de natureza é um estado social primitivo (mas não bestial) e corresponderia à autoridade econômica (oikos: casa) ou familiar. Só que a família era um conjunto de clientes: filhos, servos, vassalos.

Esta forma de autoridade social se basearia em uma situação objetiva de desigualdade: 1) desigualdade natural entre pais e filhos; 2) a que mais denota análise, uma desigualdade entre duas classes de homens: os poderosos (já saídos do bestialismo) e os serviçais (seres inferiores submetidos ao estado mais primitivo). Este quadro social, entretanto, alimentaria a rebelião dos escravos, agora movidos pelo desejo de liberdade, ao mesmo tempo em que forçaria os pais das famílias (constituídas de “senhores superiores”) a se unificarem para dominar as rebeliões. A primeira forma de Estado, portanto, seria esta “república aristocrática” (coincidente em Weber na forma da “dominação patriarcal”) e teria por base a desigualdade entre patrícios e plebeus: os primeiros, que gozavam de direitos privados e públicos e, os demais, que não tinham status jurídico definido. Toma o princípio de que “é natural que o servo deseje ardentemente escapar da servidão”, mas a origem é histórica:

Quando essa luta termina, isto é, quando os plebeus alcançam em primeiro lugar o direito de propriedade, depois o direito às núpcias solenes e legítimas (“connubia patrum”), por fim os direitos políticos (que Vico faz coincidir com a Lex Publilia, de 416 a.C., com a qual “a república romana reconheceu sua transformação, de aristocrática em popular”), dá-se passagem da primeira para a segunda forma de república (Bobbio, 1985, pp. 121-2).

Como vemos, a Razão de Estado era tarefa da aristocracia dominante e não propriamente do Povo, ainda que sempre próxima do Povo: “...a civil equidade tudo submetia naturalmente àquela lei, rainha de todas as outras, concebida por Cícero com a mesma gravidade da matéria: “Suprema Lex populi salus esto”[4](Vico, 1999, p. 412). A corrupção da política (como ideal grego de liberdade e autonomia), entretanto, está na inversão da predileção da vida pública pela privada, ou seja, na subversão do público pelo privado. O suporte da Razão de Estado, então, estaria na Aequitas naturalis (equidade natural): “E a equidade civil, ou razão de Estado, foi entendida por poucos sábios de razão pública e, com a sua eterna propriedade, é conservada como secreta dentro dos gabinetes” (Vico, 1999, p. 415).

Para Vico, a Razão de Estado, como forma de governo ou de autoridade civil mais evoluída, teria início com a luta pelo reconhecimento de direitos. Talvez não fosse a mais evoluída, mas poderia ser tida como a principal, porque o homem já estaria em outro nível de sua evolução política, na fase do pós-luta por conservação. Diferentemente de toda tradição, portanto, a Razão de Estado não corresponde à luta por conservação do próprio Estado, mas sim à luta por emancipação de uma classe social de seus indivíduos igualmente fundadores, mas escravizados. A Razão de Estado corresponderia à formação e emancipação de um critério político definido como Povo. Pode-se dizer que se organizou a luta pelo reconhecimento dos sujeitos, das demandas, das classes, das ações, da “maioridade” e para que se legitimasse a “motivação dos justos”, inibindo-se a corrupção e os usurpadores:

[...] já porque Rômulo era conhecido como rei de Alba, e porque tal mãe fora demasiadamente iníqua para produzir somente homens, tanto que precisaram raptar as sabinas para ter mulheres. Por isso, deve-se dizer que, pela maneira de pensar dos primeiros povos mediante caracteres poéticos, a Rômulo, tido como fundador de cidades, foram atribuídas as propriedades dos fundadores das cidades do Lácio, em meio a um grande número das quais Rômulo fundou Roma (Vico, 1999, p. 233).

            O povo seria o agente da edificação das cidades, o construtor de Estados. O povo seria o agente da história à medida em que o potestas in populo edificasse a República, como “poder popular”. Alguns perceberam bem esta condição política do povo como mecanismo de modelagem da realidade social e econômica e este foi o caso de Michelet.

MICHELET: Fiel às leis, não aos reis

Na perspectiva histórica, Vico foi resgatado por Michelet (17981874), mas também admirado por Marx e, contemporaneamente, James Joyce e Isaiah Berlin. Para Michelet, Povo é uma construção social e econômica, sobretudo na sociedade capitalista e, com receio sobre suas propriedades, a burguesia logo acionava as forças públicas como defensoras de um direito de exclusividade, o direito de propriedade:

“Como? O Povo é assim?” [...] “Rápido, aumentemos a polícia, armemo-nos, fechemos as portas, passemos o ferrolho[...] Também nesse campo os criminalistas dominaram a opinião [...] Aí estão, artistas, vossos modelos... O bizarro, o excepcional, o monstruoso, eis o que procurais [...] A esses relatos pitorescos acrescentam teorias profundas pelas quais o Povo, a dar-lhes ouvido, justifica a si mesmo a guerra movida à propriedade [...] Devo escavar a terra e encontrar as bases profundas desse monumento; a inscrição, vejo-o bem, está oculta, escondida lá embaixo... Para escavar não tenho enxada, nem pá, minhas unhas bastarão [...] Queria chegar ao fundo da terra. Mas, desta vez, não é um monumento de ódio e de guerra civil que gostaria de exumar [...] “Legibus fidus, non regibus”. Fiel às leis, não aos reis [...] Para citar um exemplo, eles não quiseram ver que a questão penitenciária dependia da questão da instrução pública[5][...]Parece que os remédios específicos não faltaram. São cerca de cinquenta mil no Bulletim des lois [...] A crítica do presente pelo passado, pela comparação variada dos Povos e eras diferentes [...] A depressão e a degeneração são apenas exteriores. O conteúdo subsiste. Essa raça sempre teve vinho no sangue; até naqueles que parecem mais extintos, encontrareis uma centelha [...] Entraves exteriores e vida forte que reclama de dentro: esse contraste produz muitos movimentos falsos, uma discordância nos atos, nas palavras, que choca à primeira vista [...] A economia de palavras beneficia a energia dos atos [...] o que é sonho no jovem transforma-se no ancião em reflexão e sabedoria [...] As mulheres do Povo, particularmente, forçadas mais do que as outras a ser a providência da família e do próprio marido [...] com o tempo chegam a atingir um espantoso grau de maturidade [...] Conheci algumas [...] já não pertenciam à sua classe, nem a outra qualquer: estavam acima de todas. Eram extraordinariamente prudentes, penetrantes, até mesmo em assuntos dos quais não se poderia suspeitar que tivessem qualquer experiência [...] Disso resultou uma mudança profunda nas ideias e na moralidade. O homem constrói sua alma de acordo com a situação material (Michelet, 1988, pp.115-129 – grifos nossos).

            Sob a égide do capital, todas as formações sociais comandadas pelo Estado Moderno seriam exclusivistas e determinadas a arrecadar a coerção em benefício unicamente de seus privilégios? Economicamente, talvez a resposta seja sim; juridicamente, contudo, há distinções de que se ocupam os juristas e os legisladores desde o Estado Moderno até a edificação do Estado de Direito.

Então, o que é Povo?

            Institucionalmente, povo é uma parte da população capaz de participar e interferir – politicamente – nos principais processos eleitorais e democráticos de um Estado. Por Povo podemos entender um conjunto de indivíduos que se constituem em comunidade para realizar determinados interesses comuns. O Povo, então, reivindica a formação de um Poder Político que lhe garanta a requisição de um direito adequado às suas necessidades e aspirações.

Povo é o conjunto dos cidadãos, no sentido de conjunto de eleitores. Mas, politicamente, Povo é o conjunto dos cidadãos ativos e institucionalizados (eleitores, contribuintes, cidadãos registrados e com certidão de nascimento) que fazem parte de um país, uma nação, uma coletividade política com a forma de Estado. Há esta diferença, em especial atenção ao conjunto dos eleitores (que é a definição jurídica de Povo) porque o Povo é um instituto político, jurídico, institucional que, inclusive, dá forma ao Estado, como elemento essencial de sua configuração.

            Já a população pode/deve incluir todas as pessoas, é quase um atributo estatístico, como somatória de todos os indivíduos, sejam cidadãos ativos ou não, como no exemplo da enorme categoria social de trabalhadores e não-trabalhadores; incluem-se todos os admitidos ou reconhecidos pelo Estado, aqueles em que se atesta a existência formal, mas também aqueles com os quais se perdeu a comunicação institucional, formal e que vivem à “sombra do reconhecimento oficial”. Além dos inseridos regularmente no sistema social pelo Poder Político, podemos pensar nos sem-teto, nos dependentes químicos, nos miseráveis e abandonados nas cidades e nos campos, além dos Povos da natureza, índios, extrativistas que se embrenharam nas matas, esquecendo-se da vida civil, ou os que nem foram tocados pelo Estado, como os índios não-aculturados. As amostragens do tipo IBGE, por exemplo, recolhem ou indicam um perfil da população brasileira, pois tenta-se mapear todas as “raças”, nações parciais que formam a grande nação brasileira, jovens e adultos, homens e mulheres, com muita ou pouca escolaridade. Temos, portanto, um perfil da população.

Em um plebiscito ou referendo teremos um perfil do Povo, pois com o resultado da eleição pode-se verificar qual o perfil político do Povo, o que se pensa majoritariamente acerca de determinadas instituições públicas (somos a favor ou contra o desarmamento do Povo?); bem como nas eleições sabe-se qual a configuração política e ideológica do Povo, se mais à direita ou mais à esquerda, se mais progressista ou conservadora, se mais reformista ou radical em razão de determinados temas. Quando se elege um perfil de candidato como o de Maluf, excluindo-se a possibilidade de compra de votos ou de voto de cabresto, pode-se concluir que parte do eleitorado (parte do Povo) acredita em políticos que não são exemplos lapidares do pensamento republicano. Quando se trata da cultura também se faz alusão à cultura popular, como se fosse a cultura do Povo; no entanto, o Povo aqui está sendo utilizado como sinônimo de população uma vez que abrange a formação da identidade de todos ou da imensa maioria das pessoas que formam a base social de uma nação. Em outro sentido da cultura, mais claramente intencionado, a ideia geral é o de que verifiquemos os reflexos ou repercussões diretas na condução e na estrutura política de uma nação. Ou seja, se toda cultura traz efeitos ou condições e condicionamentos políticos, então, a cultura de Povo se refere à ação de transformação da vida social, quer seja pela cultura, como “política diária, costumeira”, quer seja pela política institucional.

A nação, como nos dizia o historiador Renan, é um plebiscito diário, incondicional em que depositamos nossa confiança, nossa fé, nossas esperanças em ver nossos próprios sonhos e perspectivas mais próximos da realização. Na nação, convivem Povo e população, o oficial e o informal, o público e o privado, o individual e o coletivo, o institucional e o cultural. Na nação, ao contrário do Estado, os elementos da subjetividade e até da irregularidade cultural e individual manifestam-se com muito mais clareza. Pela nação, o que nos une é a crença, a fé, o desejo de partilhar experiências comuns, coletivas, ou que sejam individualizadas, mas no intuito de que possam ser copiadas (como ocorre na presença do “herói nacional”). Há um desejo, uma necessidade, um reconhecimento simbólico (bandeira) e vocal (língua oficial), um apelo à identidade cultural (orgulho de ser brasileiro). No caso do Brasil teríamos a mesma formação social e cultural na definição do Povo Brasileiro? Outra questão, mais complicada, é definir o Povo brasileiro – algo que merece um capítulo em Cultura Brasileira.

O Brasil é um caso à parte

Em nosso caso, há variantes importantes que devem ser anunciadas, formamos uma cultura em que sobrevivia a escravidão mesmo sob o comando capitalista. Isto seria possível porque o mercado consumidor era considerado a Europa; o que desobrigava a existência de mão de obra livre, como fonte de consumo e de estímulo à produção:

Há tipos e mitos com os quais se revela alguma forma de "carnavalização" da situação, acontecimento ou impasse. É óbvio que "Jeca Tatu", "Macunaíma" e até o "homem cordial" podem ser vistos como signos de denúncia, ênfase distorcida, caricatura do que poderia ser o "brasileiro", a "identidade do brasileiro", o "símbolo" de uma população que se demora a adquirir a figura de "povo", a figuração de "cidadão". Podem ser sátiras com as quais os "novos tempos" rejeitam os "velhos tempos", o "presente rejeitando o "passado", o "moderno" caricaturizando o "arcaico". São taquigrafias com as quais se parodiam, rejeitam ou carnavalizam os indivíduos e as coletividades que se teriam formado no longo da história. Mais ainda porque o homem cordial, Jeca Tatu e Macunaíma são emblemas de um mundo no qual o "trabalho" é castigo, sofrimento, danação e alienação, tudo isso naturalizado ou ideologizado pela cultura de castas formada ao longo da história da escravatura (Ianni, 2001).

       

A história do Povo é cheia de “mas” e de “aliás”.

Uma síntese das interpretações desenvolvidas por esses autores se encontra nos seguintes livros: Evolução do Povo Brasileiro, de Oliveira Vianna; Interpretação do Brasil, de Gilberto Freyre; A Evolução Industrial do Brasil, de Roberto C. Simonsen; Evolução Política do Brasil, de Caio Prado Júnior; e Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda (Ianni, 1994, p. 41).

No Brasil ao revés da lógica, por disposição legal e política, desde a colonização, fomos instados a ordem por latifúndios que se distanciavam um dos outros em muitas léguas, e sem que pudessem ser habitadas. O HOMO COLONIALIS, o Brasileiro nato tinha por referência de sociabilidade o próprio núcleo em que vivia. Cada família era uma república partidária. Este sentimento que Vianna buscava no povo, ele encontrou nas elites, era um complexo democrático de Nação, mas excluindo-se pequenos grupos, no restante sempre houve um sentimento satrapista, senhorial, patriarcal.

E quem era o Homo colonialis?

Pedro Malazartes é figura tradicional nos contos populares da Península Ibérica, como exemplo de burlão invencível, astucioso, cínico, inesgotável de expedientes e de enganos, sem escrúpulos e sem remorsos [...] É o tipo feliz da inteligência despudorada e vitoriosa sobre os crédulos, os avarentos, os parvos, os orgulhosos, os ricos e os vaidosos, expressões garantidoras da simpatia pelo herói sem caráter [...] O episódio mais tradicional é a venda de uma pele de cavalo, de urubu ou outro pássaro vivo, tido como adivinho, por anunciar o jantar escondido pela adúltera e expor o amante como sendo um demônio (Cascudo, 2001, pp. 351-352).

            A maldade de Malazarte, por exemplo, deve servir de compensação financeira ao trabalho do irmão, este que não fora pago e que ainda teve “uma lasca de couro tirada do lombo”. A atitude mal-sã, na primeira crônica sobre Malazarte, é ainda uma resposta à humilhação sofrida no trabalho, em razão do princípio da hierarquia e da subordinação (quanto a este princípio, não se sabe se mudou da escravidão, para cá).

O que se diz de Malazarte, encaixa nesse veio da “brasilidade”, no jeitinho que dá em tudo (ou quase tudo): “Uma casal de velhos possuía dois filhos homens, João e Pedro, este tão astucioso e vadio que o chamavam Pedro Malazarte” (Cascudo, 2004, p. 174). (Ter astúcia é, justamente, o que recomendava Maquiavel ao Príncipe). No Brasil, faz o típico “herói sem fronteiras”, certamente, mas que também forma um par muito bom com o herói sem caráter. O fato é que há uma dificuldade em ser “exato”, há mesmo um desconforto em definir-se o brasileiro em poucas palavras, pois sua cultura de miscigenação é tão grande quanto o território.

Não encontramos em nossa elite modelos de urbanidade tradicional, com interiores ainda pré-modernos, convivendo com enormes ares de fronteiras, como terra sem lei. Via de regra o que se esconde, é que vivemos um modo de vida dissoluta, uma mistura de preconceito social e cultural, sobrevivemos imersos nessa negação sistemática estrutural enraizada, que gera a sensação de imperfeitos míseros resultados de uma cultura mutilada.

Sempre é oportuno destacar que a análise comparativa, reflexiva, dedutiva desses períodos, indica a forma como o Brasil entrou na modernidade (e que tipo de entrada foi essa). Porém, os vários discursos explicativos (políticos, ideológicos, institucionais) que daí resplandecem são múltiplos e por vezes equidistantes ou contraditórios, pois tanto surgem propostas analíticas socialistas (como Florestan Fernandes e Octavio Ianni) quanto conservadoras (Hélio Jaguaribe, João Ubaldo Ribeiro).

Há diferenças políticas entre o povo e as elites?

            Diz-se no senso comum que os pobres são mais honestos. É o que agora também se vê em pesquisa realizada no Brasil:

Para 82% dos entrevistados "é fácil desobedecer às leis no Brasil"; 79% responderam que "sempre que possível o brasileiro opta pelo 'jeitinho' ao invés de obedecer a lei"; e 54% avaliaram que "existem poucas razões para uma pessoa como eu obedecer a lei."

O QUE FEZ DE ERRADO NOS ÚLTIMOS 12 MESES?

Povo Pobre - Gente de Opinião

Segundo a pesquisa, 72% dos entrevistados afirmaram que atravessaram a rua fora da faixa de pedestres ao menos uma vez nos últimos 12 meses; 60% disseram ter comprado CD ou DVD pirata; 22% estacionaram em local proibido; 3% admitiram ter pagado propina a policiais ou funcionários para não levar multa; e 3% afirmaram ter levado itens de uma loja sem pagar.

ACHA QUE SERIA CONDENADO SE...

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Sobre a eficácia da Justiça, 80% acharam que seriam punidos se furtassem artigos baratos; 79% se dirigissem após beber e 78% se estacionassem em local proibido. Comprar produto pirata (54%) e atravessar a rua fora da faixa (52%) são as condutas que, na opinião dos entrevistados, são menos passíveis de punição[6]. 

            Uma das reações mais conhecidas e difundidas pela cultura comum do homem médio recebeu agora a chancela da pesquisa: os pobres são mais honestos. Esta parcela majoritária do povo brasileiro, diz o senso comum, tem apenas a “palavra” para se fiar e se esta faltar não tem, literalmente, mais crédito para trabalhar, consumir.             Agora é preciso ter clareza sobre outros dois pontos: se há um corrupto, é porque há um corruptor; existe a grande e a pequena corrupção, o que as diferencia é o potencial de dano, não o ato desonroso em si. Neste sentido, o famoso gato que “rouba” energia é tão prejudicial quanto a ação do governante que desviou recursos da iluminação pública – o que se altera é o valor estimado. Mas, ambos devem ser combatidos porque recaem na conta de luz do povo, mais exatamente na conta dos que pagam suas contas.Povo Pobre - Gente de Opinião

Em todo caso, apesar de não haver anjos e nem inocentes no âmbito da cultura popular, também se percebe no dia a dia que, apesar da tolerância à corrupção (tolerância negativa) ter-se difundido endemicamente pelo país, mulheres e “povo pobre” preferem as relações mais normais, menos abaladas pela corrupção; isto porque, como elo frágil das relações sociais, em casos de corrupção, eles, o pobre e a mulher, são sempre prejudicados, ainda mais espoliados. A tolerância (negativa) à corrupção só beneficia o corrupto cínico, aquele que diz, para justificar suas ações, que “todos têm seu preço”. Em todo caso, a tolerância à corrupção é tão grave quanto a corrupção em si, a exemplo da expressão popular muito difundida: “se estivesse lá, também roubaria”. O que ainda reforça a mágica da política corrupta, no pior estilo do “rouba, mas faz”. Ou até mesmo a expressão mais marcada pela história, mas que expressa muito bem a lógica política que relaciona os pobres e as elites dominantes: “é dando que se recebe”. Pela esmola, o mais pobre e vulnerável abdica da reivindicação, do protesto, dos seus direitos. Na ausência de um direito que se baseie na moral, consagra-se a corrupção como guia e meta; quando, na verdade, deveriam ser instigadas, toleradas somente as ações honestas, sendo estas entendidas como condutas republicanas, as que preservam a “coisa pública”, ao invés de dilapidar o patrimônio do povo. Isto porque, é óbvio, a corrupção dilapida apenas o patrimônio do povo, enriquecendo as elites que já são ou eram abastadas. Enfim, tudo é tolerável, salvo os intolerantes (aqueles que não toleram a tolerância, isto é, as regras do jogo democrático – e a democracia não prospera na corrupção). Em Bobbio (1992), essa noção está presente na fusão entre tolerância negativa e intolerância positiva:

A tolerância positiva consiste na remoção de formas tradicionais de repressão; a tolerância negativa chega mesmo à exaltação de uma sociedade anti-repressiva, maximamente permissiva [...] Não é que a tolerância seja ou deva ser ilimitada. Nenhuma forma de tolerância é tão ampla que compreenda todas as ideias possíveis. A tolerância é sempre tolerância em face de alguma cosa e exclusão de outra coisa [...] O único critério razoável é o que deriva da ideia mesma de tolerância, e pode ser formulado assim: a tolerância deve ser deve estendida a todos, salvo àqueles que negam o princípio de tolerância, ou, mais brevemente, todos devem ser tolerados, salvo os intolerantes (pp. 212-213).

A intolerância positiva, portanto, é ação de desagravo, em desforço e desfavor do malfeito, e deve estar voltada contra tudo que estiver em desacordo com o sentido público. Neste caso, a intolerância é positiva porque, ao negar a corrupção, exalta-se a defesa exatamente daqueles (povo pobre) que mais precisam do Poder Público e de um direito que respalde o fortalecimento da República. Por isso, não tolerar a corrupção é uma forma de se consagrar a intolerância negativa, quando se desabona uma ação intolerante – e a corrupção talvez seja a ação social mais intolerável para o povo: o indivíduo marcado pela cultura comum do homem médio brasileiro.

Bibliografia

BALANDIER, Georges. Antropologia Política. São Paulo : Difusão Européia do Livro & Editora da Universidade de São Paulo, 1969.

BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo. 4ª ed. Brasília-DF : Editora da UNB, 1985.

_____ A era dos direitos. Rio de Janeiro : Campus, 1992.

CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado: pesquisas de antropologia política. 5ª ed. Editora Francisco Alves, 1990.

CASCUDO, Luís da Câmara. Contos Tradicionais do Brasil. 13ª ed. São Paulo : Global, 2004.

IANNI, Octavio. Tipos e mitos do pensamento brasileiro.  XXV Encontro anual da ANPOCS, em Caxambu, realizado de 16 a 20 de outubro de 2001.

MICHELET, Jules. O Povo. São Paulo : Martins Fontes, 1988.

VICO, Giambattista. A Ciência Nova. Rio de Janeiro : Record, 1999.

WILSON, Edmund. Rumo à Estação Finlândia. São Paulo : Companhia das Letras, 1986.



[1]Professor do Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Rondônia.

[2]Entendido poder como organização, e não como manifestação da violência (Arendt, 1994).

[3]Note-se que esses grupos sociais, a que se denomina vulgarmente de sociedades primitivas, indígenas, não conheceram o Estado como nós conhecemos.

[4]“Que a salvação do Povo seja a lei suprema”.

[5]Trata-se da nota de pé de página, n. 01, à página 121, de O Povo, de Michelet, conforme citado.

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