Segunda-feira, 8 de abril de 2013 - 12h00
Bom dia. O que leva uma pessoa a riscar um banjo às seis da manhã, gritando meia-letra de um pagode, sempre o mesmo, há semanas? Sinceramente, não sei. Disseram-me que seria a solidão. Como todos sabem, na modernidade, diferenciamos os sentimentos: muitas vezes, sozinho, sentindo-me cercado por centenas de pessoas; em outras, rodeado de gente, estava profundamente solitário. Não vou entrar na psicologia da alma desse sujeito, porém, a ideia de se estar solitário é algo que não combina com a sensibilidade política.
Para a maioria das pessoas, esse tipo de comportamento é apenas típico de um sem-noção. Mas, ainda acrescento, como falta-lhe cidadania, não se importa e nem se incomoda com o equilíbrio dos outros. Interessa-lhe somente seus afazeres. Compreende-se que tenha de acordar bem cedo, para trabalhar, mas isso não autoriza a perturbar quem está à volta. O ditado popular diz que “quem canta, seus males espanta”. Não duvido, também não atesto, porque não sei cantar e nem tocar nada (como se diz, só toco campainha). Mas, quando se grita desafinado a mesma rima, seguidamente, a única coisa que se espanta é a calma e o bom senso.
Na modernidade, o espaço privado se apossou do espaço público; em razão do individualismo, afastou-se a cidadania. Para os gregos antigos, a política decorria da polis, quer dizer, tudo que se referia à cidade era efetivamente ligado à política. Não havia política, portanto, fora da cidade. Em parte, esse conceito ainda nos serve, porque podemos dizer que sem urbanidade não há cidadania. Quem age sem civilidade, ou senso de convivência, e urbanidade – comportamento social educado – está fora do que se espera para a vida comum do homem médio. Desde os gregos, como prática, a vita activa está muito além do que a mera discussão “racional do direito” (dos próprios rituais de validação do direito, de sua dogmática, do direito como sistema). A vida ativa, a cidadania ativa, requer envolvimento, compromisso em colaborar com o público, desentranhando-se da privatização dos sentidos. Entenda-se aqui como sinonímia de “ordem pública” ou “regulação da vida e do espaço público” (ou civitatis activae, para os gregos) e não exatamente como “Direito do Estado”, como uma construção moderna.
O poder político – potestas – responde a regras fixas que delimitam seu próprio exercício e, por isso, é uma construção jurídica que só conhecerá a maioridade no século XIX (Estado de Direito), mas que se insurgiu na Idade Média com a via moderna. Mas, muito além disso, apolítica se realiza no contrato e no contato coletivo e não numa percepção imanente, de que o homem já nasce pronto para a tarefa política. Ou dito de outra forma, a política é uma tarefa, uma modalidade de lição da casa pública. A civitatis activae é uma (des)construção diária, como se pode ler em Arendt (1998, p. 23). E isto quer dizer que não se pode batucar às seis da manhã – aliás, poderia configurar, juridicamente, a chamada “perturbação do sossego”.
Como diz Hannah Arendt, o sentido da política é a liberdade (1998, p. 38); contudo, a liberdade para viver no coletivo, para se amoldar às necessidades comuns, não para esculachar o espaço do vizinho. Ainda que Arendt faça a crítica, é interessante pensarmos que o homem necessita da política porque a relação política nos complementa, sendo uma atividade intra-subjetiva, além do fato de que o homem não é autárquico: “Como o homem não é autárquico, porém depende de outros em sua existência, precisa haver um provimento da vida relativo a todos, sem o qual não seria possível justamente o convício. Tarefa e objetivo da política é a garantia da vida no sentido mais amplo” (Arendt, 1998, p, 46). O tocador de banjo não é autárquico, mas pensa que é, que pode se comportar como se vivesse isolado em uma caverna.
“A política surge entre-os-homens”, é um “intra-espaço” e por isso (r)estabelece uma relação ou conjunto de relações políticas — é um processo que provoca desentranhamento humano e isso ainda resulta em descentramento. Portanto, ainda se acentua a relevância da diversidade e da pluralidade: a convivência entre diferentes. O que se verifica facilmente, pois sem isonomia não há o Outro, uma vez que é preciso tornar iguais para só depois poder acentuar as diferenças: “A política organiza, de antemão, as diversidades absolutas de acordo com uma igualdade relativa e em contrapartida às diferenças relativas” (Arendt, 1998, p. 24). Não se pode ser tão diferente a ponto de impor desigualdades, não se pode tocar às seis da manhã, como se só valesse o “seu” direito individual.
O político é um arqueiro e um guia, mas só haverá política se pudermos trocar perspectivas uns com os outros e uns contra os outros. Não há política sem contraditório, sem contradizer o que o outro lado julga que é certo; todavia, o contraditório não mitiga o direito coletivo à harmonia diária. Por isso, a política estimula a isonomia ao mesmo tempo em que é dependente dela, mas deve-se entender como isonomia política, não somente dogmática, jurídica: “Porém, isonomia não significa que todos são iguais perante a lei nem que a lei seja igual para todos, mas sim que todos têm o mesmo direito à atividade política; e essa atividade na polis era de preferência uma atividade de conversa mútua” (Arendt, 1998, p. 49). Com isto, para o cidadão, unem-se em importância a isonomia e a isegoria. Como direito de livre-expressão, a isegoria nunca foi absoluta, daí que não posso acordar os outros vizinhos aos berros, desafinando o bom senso.
Sob pena de se ver como sitiado ou alienado da política, exige-se igualdade na política, ou seja, ser capaz de, em liberdade, produzir a lei a que se estará submetido dali por diante, ao mesmo tempo em que se disponha expressamente que esta lei não poderá atentar contra a vontade livre que a gerou (do contrário, seria a exceção). Ou seja, a negação tanto da isonomia quanto da isegoria, torna o sitiado um aneu logou: “Quando os gregos diziam que escravos e bárbaros eram aneu logou, não dominavam a palavra, queriam dizer que eles se encontravam numa situação na qual era impossível a conversa livre” (Arendt, 1998, p. 49). Para Homero, os heróis eram homens livres; afinal, só o homem livre pode retrucar (dizer não) e instigar à construção de uma polis onde possa exercer esta sua liberdade. Veja bem, ser livre para viver, conviver com os outros, não para incomodar os outros.
A polis, então, era formada destaunião entre o político e o homérico (Arendt, 1998, p. 54). Mas a liberdade terá um sentido ainda mais complexo, um sentido entrelaçado em que: “...o grego archein significa começar e dominar, quer dizer, ser livre, e o latim agere significa por alguma coisa em andamento, desencadear um processo” (Arendt, 1998, p. 44). A ideia é de que o aneu logou não dominava nenhum dos dois sentidos, tal qual o sentido moderno atinge o sujeito que não seja capaz de articular sua convicção de forma escrita e falada. Modernamente, seria uma mescla entre alienado e analfabeto político.
O aneu logou e o analfabeto político não têm opinião política formada (ainda que esta possa e deva ser revista) e muito menos são ativistas políticos, isto é, não sãocapazes de empreender qualquer ação de cunho político: “...o pensamento político baseia-se, em essência, na capacidade de formação de opinião” (Arendt, 1988, p. 30). É desse modo que a indiferença age contra a política e é por isso que devemos combater o analfabetismo político, se pensarmos em uma educação republicana.
Como educação política diária, o texto Analfabeto Político, do teatrólogo Bertolt Brecht(1898-1956), é um chamado clássico à participação e ao envolvimento na vida pública: “O pior analfabeto é o analfabeto político. Ele não ouve, não fala nem participa dos acontecimentos políticos. Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio, depende das decisões políticas. O Analfabeto político é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia política. Não sabe o imbecil que da sua ignorância política nasce a prostituta, o menor abandonado, o assaltante e o pior de todos os bandidos, que é o político vigarista, pilantra, o corrupto e o lacaio das empresas nacionais e multinacionais”.
Por isso é que esse cantor apenas desafina a cidadania. Sem noção-política relevante, incomoda mais do que o galo desafinado da madrugada.
Bibliografia
ARENDT, H. O que é política. Rio de Janeiro : Bertrand Brasil, 1998.
Vinício Carrilho Martinez
Professor Adjunto III da Universidade Federal de Rondônia - UFRO
Departamento de Ciências Jurídicas/DCJ
Pós-Doutor pela UNESP/SP
Doutor pela Universidade de São Paulo
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Vinício Carrilho Martinez (Dr.) Cientista Social e professor da UFSCar Márlon Pessanha Doutor em Ensino de CiênciasDocente da Universidade Federal de