Segunda-feira, 6 de janeiro de 2025 | Porto Velho (RO)

×
Gente de Opinião

Vinício Carrilho

Soberania Jurídica


Vinício Carrilho Martinez (Dr.)[1]

            Aceita-se que este item em exame na Teoria da Soberania já se sobrepõe àquela soberania inaugural do Estado, como vontade geral da Nação. Isto é, há uma soberania jurídica com a produção e aceitação de um ordenamento jurídico específico – se a soberania política já se efetivou –, pois o político é pré-requisito do jurídico. Seria, portanto, a sustentação jurídica ofertada à soberania popular ou originária. De certo modo, o direito positivo concederá solidez defensiva à soberania política, mas não atuará só e isoladamente, pois a edificação de instituições de suporte e de auxílio ao desenvolvimento do próprio Estado encontrará respaldo nesta soberania jurídica.

            Na Teoria Jurídica do Estado, o elemento jurídico prima sobre o social, quando o poder é exercido sobre uma sociedade legalmente ordenada. Neste caso, há uma abstração de todo o poder social, considerando-se a própria soberania como poder instituído, isto é, considerando-se o poder como instituição. Neste caso, considera-se o poder como um dado de entrada no sistema jurídico; observa-se o poder como instituição que se exerce e se pronuncia por meio dos órgãos públicos. Estuda-se o poder sub specie juris (sob a visão do direito).

            É possível formular o conceito jurídico do Estado, mas sem desmembrá-lo da Teoria Social do Estado; afinal, a soberania sempre se encontra com o Poder Constituinte. De tal modo que o Poder Jurídico é a força social institucionalizada. Esta normatividade transforma o outrora poder arbitrário, do próprio Estado, em arbitragem social. É o que também pode-se definir como competência soberana – o conceito jurídico que legitima e autoriza o Estado a tomar decisões obrigatórias para os outros.

            A obediência, portanto, transforma-se em dever jurídico – o dever que é desejável e deduzível da lei anterior; como legitimidade racional, prescrita na Constituição, no direito positivo e que estivesse de acordo com os corolários do direito internacional. Isto ainda baliza o entendimento distinto entre força do Estado (monopólio da coerção) e autoridade do Estado; sendo que esta deriva da confiança depositada pelo povo e que, por sua vez, decorre da racionalidade das decisões políticas, da funcionalidade dos órgãos públicos, da integridade do processo decisório democrático, popular, transparente, e das tradições e dos valores republicanos (Reale, 2000). Esta é a base jurídica do poder (ou deveria ser): “O fundamento da soberania deve pois ser a confiança do povo na legitimidade da atividade governamental” (Fleiner-Gerster, 2006, p. 248). A mais grave crise institucional, no entanto, ocorre quando a desconfiança no governo é tão grande que se confunde este governo com o Estado.

Parte da literatura associa este tema à soberania, mas de uma forma especial, uma vez que não se entende o poder limitado à condição de força e dominação, mas sim como obrigatoriedade intrínseca do direito, dependente do reconhecimento e da convicção sobre a Justiça e como se viesse a configurar uma soberania profunda. Com apoio em Hart (2012), pode-se dizer que o direito é convicção: “Assim, não é soberano aquele que possui o poder em sua plenitude máxima, mas sim aquele que edita leis conforme regras prescritas, das quais o povo aprova o caráter vinculante” (Fleiner-Gerster, 2006, p.242). A aprovação do caráter vinculante da lei é essencial, uma vez que a lei acompanhará e regulará a vida comum do homem médio indefinidamente.

Na soberania profunda, o Poder Político é limitado em sua capacidade de ação pelo ideal de Justiça compartilhado pelo povo, portanto, quando o poder não se encontra acima do direito – e quando a soberania não serve mais de retórica do poder abusivo, quando o direito interno se alinha com o direito internacional.

Então, quais os direitos invioláveis da Humanidade? Não se definem propriamente esses direitos, mas sim sua base moral: “Princípios que podem ser generalizados, que saem vitoriosos de um debate público e, por conseguinte, são aplicáveis à realidade humana assim como explicáveis à opinião pública resistem ao exame da razão prática” (Fleiner-Gerster, 2006, p.259).

Se os marcos reguladores são ou podem ser definidos pela comunidade internacional, na forma de direitos humanos fundamentais, e se estes marcos se convertem em princípios diretivos do direito interno, então, pode-se concluir que a soberania profunda tem os direitos humanos como mecanismo de chancela de todo o direito positivo que consta do ordenamento jurídico.

Esta concepção de soberania jurídica é igualmente baseada na ideia irredutível da prevalência de uma ordem jurídica democrática. Em suma, é a delimitação jurídica que se alcançou com a instituição da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, e com a Constituição de Bonn, na Alemanha de 1949.

Esta articulação entre direito e princípios sairia intacta do exame provocado pelo realismo político – razão prática – uma vez que direito e justificação social estariam apontados para o mesmo sentido. Ou seja, direito e princípios seriam móveis da contenção do Poder Político – da soberania que se quer apenas como feição de força, comando e dominação.

Contudo, ainda que em meio ao positivismo jurídico, o Estado já terá contraído para si a responsabilidade moral de agir com acuidade e distribuir as matérias de justiça: “Uma vez que o Estado, pela sua própria força coercitiva, confere ao direito um caráter mais vinculante que o dos princípios morais, assume uma responsabilidade em matéria de legislação” (Fleiner-Gerster, 2006, p.260).

A limitação do poder e do direito ao controle, dominação ou comando limita o Estado aos seus pressupostos políticos iniciais (pela força, garantir a coesão social), como se não fosse possível alcançar o pilar jurídico de sua sustentação: “Trata-se da afirmação de que a chave para a compreensão do direito se encontra na noção simples de uma ordem apoiada por uma ameaça, que Austin chamou de ‘comando” (Hart, 2012, p. 21).

Associa-se a imperatividade do direito à força proveniente do Estado, à coerção, à capacidade efetiva de infligir dano nas hipóteses de desobediência do preceito legal. Contudo, a imperatividade jurídica do Estado não está no estado latente do medo ou do dano que poderia ser provocado, mas na autoridade que se possa construir como relação social (autoritas). Quando a autoridade (autoritas) se baseia na qualidade moral que representa e que congrega e assim se confunde com o comando (potestas): “A posição de comando se caracteriza pelo exercício da autoridade sobre homens, e não pelo poder de infligir dano; e, embora possa se conjugar à ameaça de dano, o comando é, antes de tudo, não um recurso ao medo, mas uma chamada ao respeito pela autoridade” (Hart, 2012, p. 26).

De modo clássico,quando pensamos em figuras como o senador romano Cícero, ícone da República, vem à memória que autoridade se inspira em autoritas, sendo esta uma legitimação social amplamente reconhecida, empossada, empostada por sua qualidade e não pela força ou corrupção dos valores: “Que é, pois, o Estado, senão uma sociedade para o direito?” (Cícero, s/d, p. 44 – grifos nossos).

Diz-se que é uma qualidade que compete a quem ostenta a autoridade moral. O agente semeado desse reconhecimento social e moral, o autor, não é autor apenas de obras e manifestações particulares, mas figura como o autor da política pública – como autor da coisa (Res) pública, da República. Por fim, ainda se pode ver a autoridade como reflexo do verbo augere: crescer, fazer crescer, crescer junto. Então, autoridade tem que ver diretamente com alteridade, pois, aquele que faz crescer, acresce algo ao momento inaugural, à obra inicial.

Esta não deixa de ser uma vertente da teoria finalista do Estado, erigindo-se fins claros e seguros ao Poder Público. O que ainda nos ajuda a perceber que a concepção finalista do Estado está longe de ter sido superada, assim como o próprio Estado enquanto forma e organização do conteúdo do Poder Político. Por exemplo, na análise emprestada ao direito constitucional português na definição das tarefas ou objetivos fundamentais do Estado.

            Para alguns, são tarefas; para outros, objetivos. Em todo caso, essas são metas ou tarefas destinadas à consecução de um fim comum, e que só serão alcançados quando o Estado se organizar para as funções administrativas, políticas e jurisdicionais adequadas. Devemos entender a satisfação de necessidades coletivas como o fim comum anunciado à coletividade.

 

Bibliografia

CÍCERO, Marco Túlio. Da República. 5ª ed. Rio de Janeiro : Ediouro Publicações, s/d.

HART, H.L.A. O conceito de direito. São Paulo : Martins Fontes, 2012.

MARTINEZ, Vinício Carrilho. Teorias do Estado: metamorfoses do Estado Moderno. São Paulo : Scortecci, 2013.

FLEINER-GERSTER, Thomas. Teoria geral do Estado. São Paulo : Martins Fontes, 2006.

REALE, Miguel. Teoria do Direito e do Estado. 5 ed. revista. São Paulo : Saraiva, 2000.

 



[1]Professor do Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Rondônia.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

Gente de OpiniãoSegunda-feira, 6 de janeiro de 2025 | Porto Velho (RO)

VOCÊ PODE GOSTAR

 Toda tese é uma antítese

Toda tese é uma antítese

A ciência que não muda só se repete, na mesmice, na cópia, no óbvio e no mercadológico – e parece inadequado, por definição, falar-se em ciência nes

A Educação Constitucional do Prof. Vinício Carrilho Martinez

A Educação Constitucional do Prof. Vinício Carrilho Martinez

Introdução Neste texto é realizada uma leitura do livro “Educação constitucional: educação pela Constituição de 1988” de autoria do Prof. Dr. Viníci

Todos os golpes são racistas

Todos os golpes são racistas

Todos os golpes no Brasil são racistas.          Sejam grandes ou pequenos, os golpes são racistas.          É a nossa história, da nossa formação

Emancipação e Autonomia

Emancipação e Autonomia

Veremos de modo mais extensivo que entre a emancipação e a autonomia se apresentam realidades e conceitos – igualmente impositivos – que suportam a

Gente de Opinião Segunda-feira, 6 de janeiro de 2025 | Porto Velho (RO)