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Vinício Carrilho

Soberania Jurídica


Vinício Carrilho Martinez (Dr.)[1]

            Aceita-se que este item em exame na Teoria da Soberania já se sobrepõe àquela soberania inaugural do Estado, como vontade geral da Nação. Isto é, há uma soberania jurídica com a produção e aceitação de um ordenamento jurídico específico – se a soberania política já se efetivou –, pois o político é pré-requisito do jurídico. Seria, portanto, a sustentação jurídica ofertada à soberania popular ou originária. De certo modo, o direito positivo concederá solidez defensiva à soberania política, mas não atuará só e isoladamente, pois a edificação de instituições de suporte e de auxílio ao desenvolvimento do próprio Estado encontrará respaldo nesta soberania jurídica.

            Na Teoria Jurídica do Estado, o elemento jurídico prima sobre o social, quando o poder é exercido sobre uma sociedade legalmente ordenada. Neste caso, há uma abstração de todo o poder social, considerando-se a própria soberania como poder instituído, isto é, considerando-se o poder como instituição. Neste caso, considera-se o poder como um dado de entrada no sistema jurídico; observa-se o poder como instituição que se exerce e se pronuncia por meio dos órgãos públicos. Estuda-se o poder sub specie juris (sob a visão do direito).

            É possível formular o conceito jurídico do Estado, mas sem desmembrá-lo da Teoria Social do Estado; afinal, a soberania sempre se encontra com o Poder Constituinte. De tal modo que o Poder Jurídico é a força social institucionalizada. Esta normatividade transforma o outrora poder arbitrário, do próprio Estado, em arbitragem social. É o que também pode-se definir como competência soberana – o conceito jurídico que legitima e autoriza o Estado a tomar decisões obrigatórias para os outros.

            A obediência, portanto, transforma-se em dever jurídico – o dever que é desejável e deduzível da lei anterior; como legitimidade racional, prescrita na Constituição, no direito positivo e que estivesse de acordo com os corolários do direito internacional. Isto ainda baliza o entendimento distinto entre força do Estado (monopólio da coerção) e autoridade do Estado; sendo que esta deriva da confiança depositada pelo povo e que, por sua vez, decorre da racionalidade das decisões políticas, da funcionalidade dos órgãos públicos, da integridade do processo decisório democrático, popular, transparente, e das tradições e dos valores republicanos (Reale, 2000). Esta é a base jurídica do poder (ou deveria ser): “O fundamento da soberania deve pois ser a confiança do povo na legitimidade da atividade governamental” (Fleiner-Gerster, 2006, p. 248). A mais grave crise institucional, no entanto, ocorre quando a desconfiança no governo é tão grande que se confunde este governo com o Estado.

Parte da literatura associa este tema à soberania, mas de uma forma especial, uma vez que não se entende o poder limitado à condição de força e dominação, mas sim como obrigatoriedade intrínseca do direito, dependente do reconhecimento e da convicção sobre a Justiça e como se viesse a configurar uma soberania profunda. Com apoio em Hart (2012), pode-se dizer que o direito é convicção: “Assim, não é soberano aquele que possui o poder em sua plenitude máxima, mas sim aquele que edita leis conforme regras prescritas, das quais o povo aprova o caráter vinculante” (Fleiner-Gerster, 2006, p.242). A aprovação do caráter vinculante da lei é essencial, uma vez que a lei acompanhará e regulará a vida comum do homem médio indefinidamente.

Na soberania profunda, o Poder Político é limitado em sua capacidade de ação pelo ideal de Justiça compartilhado pelo povo, portanto, quando o poder não se encontra acima do direito – e quando a soberania não serve mais de retórica do poder abusivo, quando o direito interno se alinha com o direito internacional.

Então, quais os direitos invioláveis da Humanidade? Não se definem propriamente esses direitos, mas sim sua base moral: “Princípios que podem ser generalizados, que saem vitoriosos de um debate público e, por conseguinte, são aplicáveis à realidade humana assim como explicáveis à opinião pública resistem ao exame da razão prática” (Fleiner-Gerster, 2006, p.259).

Se os marcos reguladores são ou podem ser definidos pela comunidade internacional, na forma de direitos humanos fundamentais, e se estes marcos se convertem em princípios diretivos do direito interno, então, pode-se concluir que a soberania profunda tem os direitos humanos como mecanismo de chancela de todo o direito positivo que consta do ordenamento jurídico.

Esta concepção de soberania jurídica é igualmente baseada na ideia irredutível da prevalência de uma ordem jurídica democrática. Em suma, é a delimitação jurídica que se alcançou com a instituição da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, e com a Constituição de Bonn, na Alemanha de 1949.

Esta articulação entre direito e princípios sairia intacta do exame provocado pelo realismo político – razão prática – uma vez que direito e justificação social estariam apontados para o mesmo sentido. Ou seja, direito e princípios seriam móveis da contenção do Poder Político – da soberania que se quer apenas como feição de força, comando e dominação.

Contudo, ainda que em meio ao positivismo jurídico, o Estado já terá contraído para si a responsabilidade moral de agir com acuidade e distribuir as matérias de justiça: “Uma vez que o Estado, pela sua própria força coercitiva, confere ao direito um caráter mais vinculante que o dos princípios morais, assume uma responsabilidade em matéria de legislação” (Fleiner-Gerster, 2006, p.260).

A limitação do poder e do direito ao controle, dominação ou comando limita o Estado aos seus pressupostos políticos iniciais (pela força, garantir a coesão social), como se não fosse possível alcançar o pilar jurídico de sua sustentação: “Trata-se da afirmação de que a chave para a compreensão do direito se encontra na noção simples de uma ordem apoiada por uma ameaça, que Austin chamou de ‘comando” (Hart, 2012, p. 21).

Associa-se a imperatividade do direito à força proveniente do Estado, à coerção, à capacidade efetiva de infligir dano nas hipóteses de desobediência do preceito legal. Contudo, a imperatividade jurídica do Estado não está no estado latente do medo ou do dano que poderia ser provocado, mas na autoridade que se possa construir como relação social (autoritas). Quando a autoridade (autoritas) se baseia na qualidade moral que representa e que congrega e assim se confunde com o comando (potestas): “A posição de comando se caracteriza pelo exercício da autoridade sobre homens, e não pelo poder de infligir dano; e, embora possa se conjugar à ameaça de dano, o comando é, antes de tudo, não um recurso ao medo, mas uma chamada ao respeito pela autoridade” (Hart, 2012, p. 26).

De modo clássico,quando pensamos em figuras como o senador romano Cícero, ícone da República, vem à memória que autoridade se inspira em autoritas, sendo esta uma legitimação social amplamente reconhecida, empossada, empostada por sua qualidade e não pela força ou corrupção dos valores: “Que é, pois, o Estado, senão uma sociedade para o direito?” (Cícero, s/d, p. 44 – grifos nossos).

Diz-se que é uma qualidade que compete a quem ostenta a autoridade moral. O agente semeado desse reconhecimento social e moral, o autor, não é autor apenas de obras e manifestações particulares, mas figura como o autor da política pública – como autor da coisa (Res) pública, da República. Por fim, ainda se pode ver a autoridade como reflexo do verbo augere: crescer, fazer crescer, crescer junto. Então, autoridade tem que ver diretamente com alteridade, pois, aquele que faz crescer, acresce algo ao momento inaugural, à obra inicial.

Esta não deixa de ser uma vertente da teoria finalista do Estado, erigindo-se fins claros e seguros ao Poder Público. O que ainda nos ajuda a perceber que a concepção finalista do Estado está longe de ter sido superada, assim como o próprio Estado enquanto forma e organização do conteúdo do Poder Político. Por exemplo, na análise emprestada ao direito constitucional português na definição das tarefas ou objetivos fundamentais do Estado.

            Para alguns, são tarefas; para outros, objetivos. Em todo caso, essas são metas ou tarefas destinadas à consecução de um fim comum, e que só serão alcançados quando o Estado se organizar para as funções administrativas, políticas e jurisdicionais adequadas. Devemos entender a satisfação de necessidades coletivas como o fim comum anunciado à coletividade.

 

Bibliografia

CÍCERO, Marco Túlio. Da República. 5ª ed. Rio de Janeiro : Ediouro Publicações, s/d.

HART, H.L.A. O conceito de direito. São Paulo : Martins Fontes, 2012.

MARTINEZ, Vinício Carrilho. Teorias do Estado: metamorfoses do Estado Moderno. São Paulo : Scortecci, 2013.

FLEINER-GERSTER, Thomas. Teoria geral do Estado. São Paulo : Martins Fontes, 2006.

REALE, Miguel. Teoria do Direito e do Estado. 5 ed. revista. São Paulo : Saraiva, 2000.

 



[1]Professor do Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Rondônia.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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