Quinta-feira, 30 de abril de 2015 - 18h01
A princípio, para que se defina uma obra como sendo "de arte", faz-se preciso consultar os léxicos para, à luz da semântica, defini-la como tal. Onde achávamos que encontraríamos a resposta definitiva, deparamo-nos com o primeiro obstáculo visto que arte tem muitos significados, inclusive um tão genérico que nada diz: "Execução prática de uma ideia". O professor Armindo Trevisan, em seu livro “Como compreender a arte“, nos dá uma pista convincente: “A obra de arte é um objeto de prazer, que visa a provocar determinada experiência gratificante, que consiste numa espécie de vivência sensorial-perceptivo-intelectual, onde são engajadas especialmente a memória e a imaginação”.
A ideia de arte que nos interessa certamente que está associada à estética, esta que determina o caráter do belo nas produções naturais e artísticas. Como não poderia deixar de ser, a arte anda de mãos dadas com a filosofia e tem a ver com harmonia das formas e coloridos. Quem se propõe a produzir arte, por óbvio se lança em direção à sensibilidade do outro com propósito de emocioná-lo. Advirta-se, porém, que quando se trata de emoção estética, não devemos considerá-la uma “emoção sem inteligência”, mas uma "emoção da inteligência”, como refere Raymond Bayer em Traite’ d’Esthétique (Tratado de Estética).
De modo pragmático, não é o autor da obra que sempre a definirá como sendo "de arte". A subjetividade nesse conceito decorre do fato de existirem pessoas sensíveis que são capazes de ver arte onde ela, para a maioria das outras, parece não existir; enquanto outras há que estão fechadas para o acesso dessa percepção diferenciada.
Se há pretensos artistas que não são artistas de fato, existem aqueles que fazem arte sem ter consciência disto. Porque a intenção de produzir arte tem relevância relativa no resultado final da obra. É preciso que, além do propósito, haja talento artístico e conhecimento dos modos e ferramentas para viabilizá-la. "Ser fotógrafo é colocar na mesma linha de mira o olho, a cabeça e o coração", escreveu Henri Cartier-Bresson (1908-2004), o pai do fotojornalismo. E Antoine de Saint- Exupéry (1900-1044), aquele de "O Pequeno Príncipe", adverte: "Você vê apenas com o coração; o essencial é invisível aos olhos". Ambos destacam o valor da emoção na percepção do além da materialidade: é a visão dos significados; a visão do que não é visto pelos olhos do corpo. Fazer com que as pessoas vejam (sintam) além do que a imagem explicita, eis o que deve pretender o artista visual.
A fotografia, portanto, pode ser ou não arte — assim como todas as demais expressões tidas como “de arte”. Todas elas apenas se candidatam a viabilizar uma obra que seja verdadeiramente de arte. No caso da fotografia, a câmera disponibiliza a quem aciona seu disparador um meio de “transpor o que sente no que quer fazer sentir”, como escreveu o romancista e filósofo Albert Camus (1913-1960) referindo-se a escritores. Nessa condição, o fotógrafo revela algo em sua obra, mas também se revela, como qualquer um que produza arte, como destaca Trevisan. Por isso, ser artista implica em expor, de algum modo, recônditos de seu eu que, por vezes, ele nem sabe que exitam.
A relevância de uma obra de arte pode ser tamanha a ponto de mudar o jeito de seu observador olhar a vida e o mundo. Daí a responsabilidade implícita do artista com essa assertiva. Assim como uma obra pode provocar encantamentos, ela pode ser intuir a sentimentos diversos, inclusive servir de meio para expressar ideais e ideologias. Pode concordar, denunciar, contestar. Pode ser afago, mas também agressão, transgressão. Incitar a reações múltiplas, eis uma força que deve mover o artista ao executar sua obra. Reações tão variáveis quanto às possibilidades humanas de ser.
A fotografia enquanto veículo de expressão artística usa a imagem para ser; todavia, diferente de outras artes visuais como o pintura e a escultura, por exemplo, que constroem a imagem a partir de algo que existe, ou não. Nesse contexto, diferentes do fotografia, que é contida no âmbito da realidade plástica existente, que limita o ato criativo expresso através dela. Não se pode fotografar o que não existe. Outra diferença diz respeito à intervenção no estado da obra. A outros artistas visuais é permitido além de figurar, transfigurar e até romper com todos os conceitos e preconceitos plásticos para produzir sua obra. Quando o fotógrafo tenta transformar a realidade fotografada, intervindo nas imagens que a câmera capta, adentra no campo minado da negação da capacidade dos meios fotográficos, e, com isso, atesta que a fotografia em si é insuficiente para expressar plenamente o que pretende. Nessa condição, também assume sua incapacidade enquanto fotógrafo em dialogar com o observador de sua obra através dos vários meios que a fotografia disponibiliza. Meios, como se sabe, mais do que suficientes para se fazer dela uma obra de arte.
Uma imagem pode gerar em quem a observar as mais diversas sensações porque remete à cena dos fatos, a feição das pessoas, a forma dos objetos, as condições climáticas; a época e até a hora em que a foto foi feita, em alguns casos. A fotografia, quando sem intervenção de outras artes, é mais fiel à imagem mostrada, é onde as percepções chegam mais próximas ao instante fotografado. É, portanto, a testemunha de maior credibilidade.
O fotógrafo, no exercício de sua arte, pode transitar por outras artes. Pode ”escrever” histórias, "cantar" canções, "declamar" versos através de seus retratos. Warley Tomaz dá uma dimensão poética a esse artista da imagem: “O fotógrafo é um poeta que a partir de seu olhar proclama versos eternizados nas imagens de sua arte”. Pode assemelhar-se aos grandes mestres da pintura valendo-se de tonalidades de cores, jogo de luz e sombra, perspectivas, enquadramentos. À guisa de exemplo, as fotos da norte-americana Nan Goldin, segundo alguns, remetem à luz de Caravaggio (1563-1610), pintor italiano de nomeada, e ao erotismo de Delacroix (1798-1863), um dos mais importantes pintores da fase do romantismo francês. O fotógrafo pode até ousar se aproximar dos escultores, ainda que disponha apenas de uma dimensão para se manifestar, valendo-se de contrastes que possam dar volume à imagem fotografada.
No momento de fotografar temos em nossas mãos a implícita oportunidade de fazer desse ato uma obra de arte. É, portanto, procedente a advertência de Cartier-Bresson aos que pretendem se assumir como verdadeiros fotógrafos: "É preciso fotografar sempre com o maior respeito pelo tema e por si próprio". Desde logo, portanto, devemos eximir de culpa os meios fotográficos se o objetivo de fazer arte não for alcançado. Porque, em essência, o mais nobre e edificante motivo de existir da fotografia é ser arte.
NOTA DO AUTOR – Em nosso meio existem fotógrafos talentosos a espera de melhor reconhecimento pelo seu trabalho. Concursos de fotografia seriam importantes canais para dar mais visibilidade e prestígio a esses artistas visuais. Fica a sugestão.
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