Segunda-feira, 13 de outubro de 2014 - 18h20
Ser médico como deve ser, exige virtudes inerentes a poucos seres humanos. Posso afirmar isso com todas as letras e com convicção porque não o faço apenas por ter ouvido falar, ter lido em muitas publicações, ter aprendido com muitos mestres. Asseguro essa assertiva embasado na vivência de 40 anos de exercício da medicina.
Ser médico dói. Sim, dói, e não é pouco. E por doer tanto, exige daqueles que optam por essa profissão que estejam preparados para vivenciar os incômodos atrelados a essa escolha; ou seja, ter limiar de dor que suporte sofrimentos a ponto de não levá-los ao desespero, que induz ao abandono, ou à apatia comportamental diante da dor alheia, que leva à insensibilidade.
O fato de alguém escolher ser médico, não atesta sua boa índole. A decisão pode ter sido motivada por pressupostos avessos aos exigidos para a correta prática da medicina. Se assim for, o resultado não será um médico, mas um espectro de médico.
Valho-me de uma lapidar citação de T.R. Harrisson, autor de um clássico compêndio sobre medicina interna, para expressar a dimensão do que é verdadeiramente ser médico: “As maiores oportunidades, responsabilidades ou obrigações que podem recair sobre um ser humano consistem em ser médico. Para tratar de um doente, ele necessita de habilidade técnica, conhecimento científico e compreensão humana. Empregando esses atributos reunidos à coragem, humanidade e prudência, ele proporcionará um serviço único aos seus semelhantes e contribuirá para a formação sólida de seu próprio caráter. O médico não deve pedir mais do que isso ao seu destino e nem se contentar com menos”.
Convenhamos que encontrar todas essas virtudes em uma pessoa não é tarefa fácil. A natureza humana, por mais desolador que seja afirmar isto, não é pródiga em gente assim.
Ao longo de minha caminhada, confesso que encontrei “colegas” indignos do título de médico que albergam. Mas, nem tudo está perdido: encontrei, também, e tive satisfação de conviver, com alguns que exerceram a medicina como sacerdócio, que não estão mais entre nós, mas há outros, sim, que continuam dando esse bom exemplo.
A dor que o médico sente – e posso falar dela porque já a senti muitas vezes – nem sequer deve ser externada para o paciente ou para os seus. Temos de sofrer calados, interrogando-nos mentalmente o tempo todo. Se expressarmos nossa dor, poderemos ser interpretados como inseguros, como se estivéssemos com peso na consciência por termos falhado. Como se sabe, sofrer calado faz a dor doer ainda mais.
A dor sentida pelo médico de verdade nem sempre decorre da dúvida em relação a sua conduta terapêutica, mas é um forte indício de que está preocupado com seu paciente, muitas vezes desde antes de ter decido tratá-lo. Diferente dos irresponsáveis, desumanos e levianos, que geralmente são protegidos por altas doses de endorfinas capazes de imunizá-los contra o sofrimento dos outros.
A dor, senhoras e senhores pacientes e seus familiares, que os médicos éticos e humanitários sentem provocada por suas angústias diante dos pacientes que tratam, geralmente resulta dos infortúnios, das limitações da ciência que praticam, da evolução inexorável de algumas doença em direção à sequela ou à morte. É isso que esses bons profissionais combatem e, por isso, sentem-se incomodados quando se julgam incapazes de mudar esse destino daqueles que assistem.
Sim, há maus médicos, pela simples razão de que médicos são humanos. Mas isso não justifica que alguém que tenha algum impasse com esse tipo de profissional lance todos os demais de sua classe na vala comum dos condenados, ação que deve ser destinada apenas aos incompetentes, imprudentes e negligentes. Quem tanto exige justiça, tem o dever de ser justo.
Uma pergunta que não deve calar: quantas vezes a mídia ou as pessoas em geral já se ocuparam de tratar destes assuntos: a humanidade dos médicos, suas angústias, suas necessidades, suas dores? O contrário é a regra: uma simples suspeita de prática de erro médico já é razão de grande exposição ofensiva, de pré-julgamentos sumários. Precisa-se de um culpado para vingar alguma suposta vítima.
Aqueles que injustamente disseminam a desconfiança generalizada em relação aos médicos estão prestando um desserviço à sociedade e a si mesmos. Porque confiar no médico tem, em algumas situações – eis um exemplo de efeito placebo! – maior poder terapêutico do que os remédios que ele prescreve e os procedimentos que executa. Ao ver o médico com desconfiança, o paciente suprime parte importante de suas possibilidades de cura. Uma reflexão sobre isso se impõe. E uma mudança de atitude, também.