Segunda-feira, 11 de setembro de 2023 - 18h58
Haicai
é um pequeno poema de dezessete sílabas, originário do Japão, a partir de
manifestações poéticas chinesas antigas, composto por três versos, sendo
dois de cinco sílabas – o primeiro e o último – e um de sete, sem rima e sem
título. No Brasil, os de cinco sílabas são conhecidos por redondilhas
menores, e, os de sete, por redondilhas maiores, originárias na poesia da
Galícia (Europa Central), a partir do século XVI, e muito usadas por Luís
Vaz de Camões (1524-1580), o maior representante do Classicismo português.
Diversas
grafias já foram utilizadas (hai-kai, haikai, haiku – a
última, em outros países, exceto o Brasil) para denominar esse tipo de
terceto. Entretanto, após a supressão da letra k, pela reforma ortográfica
de 1943, os dicionários de língua portuguesa passaram a registrar a forma
aportuguesada haicai, cuja origem provém dos vocábulos japoneses hai,
que significa brincadeira, e kay, harmonia.
A
época precisa do surgimento dessa forma concisa de poesia ainda é controversa.
Sabe-se, entretanto, que sua popularização se deu no século XVII,
principalmente através da produção de Jinskikiro Matsuo Bashô (1644-1694),
simbolista inspirado nas expressões da natureza (sobretudo, nas
paisagísticas) e adepto do zen. Há quem afirme, todavia, que Bashô foi
ultrapassado, tanto em popularidade quanto em inspiração, por um poeta do
século seguinte, Yataro Kobayashi, conhecido como Issa (1763-1827).
O
haicai, em sua concepção original de conteúdo, caracteriza-se por tal
objetividade e simplicidade de exposição das ideias que dispensa a
obrigatoriedade de elaborações imagísticas mais do que qualquer outra
expressão poética. Aquele que escreve haicais (haijin), à maneira
tradicional, a partir da contemplação da natureza, descreve a fugacidade do
momento, sem explicações e sem memória. É o que se pode chamar de uma
“fotografia” literária, visto que congela o instante.
Em
1908, o haicai chegou ao Brasil com os primeiros imigrantes japoneses, que
desembarcaram no Porto de Santos. Somente em 1919, passou a ser produzido no
país, sendo seu precursor o poeta Afrânio Peixoto (1875-1947). Desde então,
vem passando por modificações polêmicas que levaram à classificação dos
haicaístas em tradicionais, aqueles obedecem rigorosamente a construção
japonesa, com linguagem simples, com métrica, sem rima e sem título; em
seguidores da produção de Guilherme de Almeida (1890-1969), que propõe que o
haicai tenha título, métrica rígida e rima, e em uma terceira corrente,
representada por muitos autores contemporâneos, que incorpora a esse gênero
de produção literária tradições brasileiras, desobrigando-o de
referências às estações do ano (kigô) e da métrica, além de
permitir temática irrestrita. Quanto à pontuação, de acordo com Reichhlod
(2002), não sendo o haicai uma sentença, seria desnecessária; entretanto, isso
não foi aceito consensualmente pelos haicaistas ocidentais: uns usam-na como
num texto qualquer; outros, ocasionalmente, e outros ainda a suprimem
completamente.
A
ocidentalização do haicai, portanto, alterou de modo importante suas
estética e temática a ponto de interferir sobre as reações sensoriais que
pode provocar, desconstruindo-o, assim, quase que em sua totalidade – os puristas,
adeptos dos haicais tradicionais, preferem considerá-los apenas poemetos. No
que refere a seu conteúdo, o haicai passou também a incitar mentes, ao invés
de acalmá-las – o que lhe agrega novos valores literários – chegando, em
alguns casos, a expressar conceitos filosóficos. Nesse contexto, apenas a
inspiração não se sustenta se não contar com o auxílio da lógica
acrescida de aguçada sensibilidade para encontrar, como quem degusta um vinho,
seus gostos e retrogostos.
Os
que consideram o haicai como uma das várias práticas zen, encontrarão nos
exemplos aqui citados apenas resquícios esporádicos dessa acepção. Tanto
que, alguns deles, mais que simples modificações estético-temáticas,
apresentam-se como verdadeiras mutações. Isso porque não pretendem, a
priori, o que preconiza o zen-budismo, escola filosófica (alguns o
consideram também religião) nascida na China, no século VI d.C., que busca o
estado extático de iluminação pessoal (satori), equivalente a um rompimento
deliberado com o pensamento lógico, alcançado por práticas de meditação
sobre o vazio, ou a reflexões que visam a absortos paradoxos e enigmas
insolúveis (koans).
Os
haicais deste autor se enquadram, portanto, na corrente mais contemporânea,
por isso, mais libertária, que promove sua desconstrução conceitual
radicular, preservando-lhe apenas a concisão dos tercetos. A rima lhe é
acrescida como um condimento lírico e rítmico, que os emoldura, ainda que
prescindível à poesia, como entenderam, por séculos na Antiguidade, poetas
gregos e romanos. Mas valoriza – e muito! – a metáfora, fundamental coluna de
sustentação das investidas poéticas. No que se refere aos títulos, tendem a
evitar explicitudes que guiariam à compreensão imediatista do leitor,
pretendem apenas intuir reverberações psíquicas que façam sentido a seu
universo vivencial, dando-lhe oportunidade a uma leitura identitária que o
faça apropriar-se de seus substratos.
CONQUISTA
A força que
talha
O guerreiro capaz
Nasce em
batalha.
PRESENÇA
A ausência
Vive fora
De onde mora.
INFANTIL
Brincar de viver
Mais risco
De se perder.
INSPIRAÇÃO
Uma formiga
Sobre a folha que
cai
Tapete de haicai.
PRIMAVERA
Um cadáver ao relento
Recebeu uma flor
Soprada pelo vento.
TRAUMA
Ao olhar
Pelo retrovisor da
vida
Vê-se uma criança
ferida.
MOTIVO
Compulsivo apego
Alimenta
Desassossego
SIGNIFICADO
Metáfora
Sua meta
Está fora.
*Viriato Moura é médico, jornalista,
artista plástico, cartunista, chargista, autor de 20 livros (prosa e verso), 3
opúsculos e participou de 9 coletâneas literárias. Recebeu diversas
condecorações a nível municipal, estadual e nacional, sendo a mais recente
delas a Comenda Moacyr Scliar – Medicina, Literatura e Arte, que lhe fora outorgada
pelo Conselho Federal de Medicina. É membro da Academia Rondoniense de Letras,
Ciências e Artes, da Academia de Letras de Rondônia e da Sociedade Brasileira
de Médicos Escritores.