Terça-feira, 6 de dezembro de 2016 - 18h54
Por Viriato Moura
Nascido na Cordilheira dos Andes, com o nome de Beni, lá vem ele alegre e cheio de vida, ao sabor da gravidade, acompanhado por uma banda encantada que toca charango, flauta de pã, quena, violão, bandola e tambor fazendo festa para povos castelhanos. Aos poucos, despe-se de seus agasalhos tecidos com lã de lhamas enquanto avança pela floresta da Amazônia Ocidental. Quilômetros de andanças até alcançar, majestoso, nossa Porto Velho, após juntar-se ao rio Mamoré-Guaporé, quando recebe o sugestivo nome Madeira — por levar troncos e restos de madeira em suas águas —, o rio de nossos corações.
Tristes e limitados são os povos que não têm um rio para irrigar suas vidas. Mas nós temos e muito nos devemos orgulhar de tê-lo, o décimo sétimo rio mais extenso do planeta.
Viajando mundo afora, já vi outros rios, tantos outros margeados por belíssimas cidades e deslumbrantes paisagens. Mas nosso Madeira vem de braços dados com a natureza pura e selvagem, por vezes virgem, como quem caminha na nave de uma igreja rumo às benções matrimoniais. Sua marcha nupcial apenas começa ao som dos ritmos andinos, que se calam para dar voz ao batuque e aos cânticos inebriantes de homens e mulheres da grande selva. Casado com a mãe do maior ecossistema do Terra, o vigoroso Madeira convive visceralmente com o que de melhor e essencial existe para que a vida sobreviva.
Madeira histórico, foi em tuas margens, há mais de um século, que desembarcaram homens e mulheres vindos de portos longínquos para participarem de uma epopeia — a maior do século 20 — que custou a vida de tantos deles: a construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, a mãe da nossa amada Rondônia.
Entre tantos favores que nos prestas, dadivoso rio, como via fluvial, conecta-nos com plagas distantes, nos dás frutos maravilhosos que geras em tuas entranhas férteis e que nos alimentam com deliciosos e nutritivos sabores. Mais ainda, exuberante rio, a muitos enriqueces com metais preciosos infiltrados em teu corpo, sendo o ouro o mais garimpado deles. É lamentável que, para que extraiam de ti essas benesses, a impiedade ambiciosa dos homens não relute em te envenenar com produtos tóxicos, o mercúrio em particular, que consome tua vitalidade saudável e contamina o que produzes. Inconsequentes e irresponsáveis, esquecem que estão agredindo, como filhos desnaturados, um pai a quem só devem respeito, gratidão e amor.
Como um deus, supremo Madeira, deste-nos também mais energia, mais luz — para nós e para nosso país —, fator essencial para o crescimento e o desenvolvimento dos povos, através de duas imponentes hidrelétricas.
Mas há algo em ti, encantador rio, que transcende a compreensão lógica, porém que sobrevive a séculos: tuas lendas. Quem sabe, velho amigo, não tenhas sido gerado por uma genitora lendária, a Cobra-Grande, que, num dia inspirado, preferiu afastar-se do frio das montanhas geladas para vir deflorar o solo de nossas matas ardentes e sedutoras, fazendo-lhes um rasgo largo e profundo por onde escorrem às águas de tua nascente? E o boto, um de teus filhos encantados, que, nas noites das festas beiradeiras, engravida belas caboclas? Quem sabe, ainda, rio de tantos sortilégios, se algumas toadas que emanas não ressoam de barcos míticos que levam os espíritos errantes de nossas memórias que não encontram morada em lugar algum, e buscam, angustiados, o porto seguro onde possam sobreviver ao descaso a que foram relegados?
Serves, ainda, amado Madeira, como palco para o espetáculo de esplendorosa beleza que contemplamos, nos fins de tarde do verão amazônico: um inolvidável crepúsculo enquanto o astro-rei se despede de mais um dia para se esconder por detrás do matagal de tua margem esquerda refletindo seu adeus em tuas águas barrentas que se fazem seu espelho.
És tudo isso e muito mais, grandioso Madeira de tantos significados nativos. Porque és atado a nossas vidas por inseparável cordão umbilical afetivo que nos nutre com afagos. Nem sempre, entretanto, temos sido gratos a tua poética e pragmática existência. Mesmo assim, creio que jamais nos agredistes por ímpeto vingativo, para causar danos à nossa gente — obedeces apenas as leis de tua mãe natureza, que não suporta mais dar o outro lado da face para aqueles que tanto a ofendem.
És, definitivamente, Madeira, o rio nosso de cada dia de nossa vida inteira.
Nota do Autor – A foto que ilustra este texto é de autoria do museólogo Antônio Ocampo, militante de legítimas causas nativas, que tem como hobby fotografar especialmente os belíssimos pores do sol da nossa Porto Velho.
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