Domingo, 20 de janeiro de 2019 - 12h21
Um trem atravessou a infância
do menino. Pouco mais de sete anos de idade era o que ele tinha. Desde que fora
avisado que iria fazer aquela viagem, ele embarcou em suas esperadas sensações.
Todos os dias pareciam chegar,
menos o dia da partida. Até que a véspera chegou encontrando sua ansiedade nos
trilhos: sua noite foi quase insone. Às
quatro da madrugada não se conteve na cama. Seus avós já se movimentavam pela casa.
O dia da sonhada viagem finalmente chegou. Por volta das cinco, foram para a
estação. Às seis, o trem partiu.
O menino escolheu um assento próximo a uma janela. Ele
queria ver a paisagem passar. Ficou do lado direito, porque seu rio estava do
lado direito. Floresta, cachoeiras, corredeiras, barracos, pequenas cidades –
esse era o cenário a ser visto. A maria-fumaça, com seu som de café-com-pão-bolacha-não,
e seus silvos que acordavam o amanhecer e se anunciavam para a mata que vinha
pela frente, avançava e avançava enquanto a fumaça que expelia se fazia nuvem
passageira para quem vinha nos vagões.
De seu ponto de observação,
o menino contemplava o desfilar constante de imagens e emoções. Em sua mente
infante, o que via acordavam histórias adormecidas em seu imaginário lúdico.
O pequeno passageiro criava
enredos em profusão, como os dormentes
enfileirados lado a lado na ferrovia. Ora ele imaginava o Tarzan pendurado em
cipós de árvores frondosas soltando seu grito que assustava os bichos da
floresta. Ou bandoleiros mascarados cavalgando próximos ao trem para invadi-lo
e assaltá-lo. Ele próprio, apesar da
pouca idade e sem meios físicos para fazê-lo, sacou seu revólver imaginário e viu-se
como um super-herói impedindo que os malfeitores conseguissem seu intento, fazendo-os partir
em debandada. Teve até a sensação de que seria ovacionado quando chegasse a seu
destino, por ter salvado os passageiros da ação criminosa dos bandidos.
O trem, em marcha rítmica,
avançava imponente até sua parada para pernoite numa cidadezinha à margem da
via férrea. Ao desembarcarem, os passageiros foram para um hotel rudimentar no
meio do quase nada. O garoto e seus avós ficaram no mesmo aposento. Não havia
comodidade. O carapanãs produziam um ruído que espantava o sono. Mas o menino
continuava viajando na dimensão sem limites de sua criatividade quimérica.
Arquitetou até uma estratégia de fuga para si e para seus avós se a hospedaria
fosse atacada por índios ferozes. Mas
logo o sono o alcançou para amainar o cansaço provocado pela viagem de dia
inteiro.
Ainda era madrugada quando despertaram
para tomar o trem novamente, logo após o café da manhã. Os fatos e as emoções se repetiram. E novas histórias foram brotando
na mente do garoto que olhava pela janela do trem e as via acontecer. Depois de
muitas horas, eis que sua maria-fumaça chega ao destino onde começaria outra
aventura, dessa feita que envolveria um outro país, uma viagem de avião, a
visão fantástica da Cordilheira dos Andes, e muito mais.
No
retorno à cidade de onde partira, entre as aventuras imaginárias do garoto sonhador que se repetiram, houve um fato real: o trem que viajava descarrilou. Foi um susto,
mas ninguém se feriu. Apenas tiveram que esperar por longo tempo uma litorina,
que levou os passageiros aos seus destinos.
Muitas décadas se passaram. O menino cresceu e ganhou céus e mares em muitas direções. Visitou terras distantes mundo afora. Mas em nenhuma de suas andanças seu sonho teve a dimensão tão próxima à realidade quanto aquela sua primeira e inesquecível viagem de trem pela lendária Estrada de Ferro-Madeira Mamoré. Porque o que realmente o garoto sonhador viu passar por sua janela nessa viagem foi a alegre e venturosa infância que viveu. Sim, foi isso, eu garanto: esse menino era eu.
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