Quarta-feira, 2 de novembro de 2011 - 18h07
Em nossa Porto Velho de minha infância e juventude, as mortes eram anunciadas pelos sinos da Catedral Sagrado Coração de Jesus, orquestrados por Beleza, o sacristão de tantas décadas daquela igreja. Cada badalada ecoava longe na cidade, ainda descampada, principalmente nos dias de ventania. E enchia de pesar todos que ouviam aquele anúncio triste.
Quem morreu? Foi D. Marieta, mulher do Ernesto. Morreu de quê? De derrame cerebral. Tal como uma peste contagiosa, a notícia se disseminava rapidamente por todos os recantos. Quase sempre o morto, se não sua família ou algum parente, era conhecido. Naquele tempo, de sentimentos e amizades estreitas, nossa cidade era, por assim dizer, uma grande família onde quase todos se conheciam. Daí a preocupação e o sentimento de pesar gerados pelo repicar dos sinos que anunciavam as mortes.
Após o falecimento ocorrido em hospital, mas muitas vezes em residência, o corpo era velado sobre uma mesa posta na sala de visitas. Hoje isso é mais raro devido à existência de funerárias. As lojas maçônicas, como atualmente, também serviam para velório de maçons ou de pessoas importantes. Como a cidade ainda era pequena, e até por falta de condições apropriadas de transporte, o caixão, confeccionado sob medida, sem luxo e em cores lúgubres, era conduzido pelas alças por amigos e parentes do morto, que seguiam a pé pelas ruas em direção ao cemitério. Os falecidos cristãos eram, antes, levados até a Catedral para que o corpo fosse abençoado, por vezes com missa de corpo presente. Em seguida, o enterro descia a Gonçalves Dias, atravessava a Sete de Setembro, indo pela Rua chamada “do Cemitério”, a General Osório, que dá no portão do Cemitério dos Inocentes, único de então.
Além dos que pranteavam o falecido, havia a companhia de um padre e até de coroinhas, devidamente paramentados para essas ocasiões. Eu mesmo, que fui coroinha no tempo do padre Pio, auxiliei muitas dessas exéquias. Caso o morto fosse alguma autoridade ou pessoa muito importante em nosso meio, a banda da Guarda Territorial se fazia presente tocando marchas fúnebres.
Quando alguma tragédia acontecia, como mortes violentas, inesperadas – as ditas “mortes matadas” (as outras, de doenças, eram as “mortes morridas”) – ou em maior quantidade, a comoção acometia a todos, a ponto de o fato ser comentado com consternação durante semanas, até que o tempo ou outro acontecimento o relegasse ao esquecimento.
Mas nem todas as mortes eram anunciadas pelos sinos cristãos. Os indigentes do velho Hospital São José, ou os mendigos encontrados mortos por aí, não tinham direito a essa despedida sonora. No silêncio de suas misérias, tão logo deixavam o sofrimento terreno, tinham seus cadáveres retirados de leitos das enfermarias, das salas cirúrgicas, ou removidos de onde eram encontrados para serem expostos a insetos e à curiosidade popular na mesa do necrotério, ao lado do nosocômio. Sem o soar dos sinos, sem as benções religiosas, sem lágrimas a pranteá-los, apenas eram lançados, momentos depois, à cova rasa, no cemitério próximo, como um pedaço estragado oferecido aos vermes.
O sentido da morte mudou em nós com o passar do tempo, não apenas porque em nossa Porto Velho de hoje os sinos já não dobram para anunciá-la como dantes, mas porque diluímos os nossos sentimentos pelos muitos que somos agora, de muitas origens, miscigenados. Naquele tempo, parecíamos muito mais uns com os outros. Por isto, o badalar triste dos sinos da Catedral que anunciavam as mortes, falavam também um pouco da nossa própria morte.
Fonte: Viriato Moura / jornalista DRT-RO 1067 - viriatomoura@globo.com
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