Quinta-feira, 27 de dezembro de 2012 - 16h07
A utilização da literatura de cordel em sala de aula provoca o surgimento de práticas pedagógicas que irão propiciar através do lúdico uma aprendizagem significativa do educador, pois se trata de uma temática que aborda diversas áreas do conhecimento humano. O universo cordelino transpôs fronteiras e sobreviveu por entre séculos na história da humanidade. Da Europa ao nordeste brasileiro, o cordel como componente da cultura popular, tornou-se relevante instrumento educativo na escola e na sociedade.
Como advento da imigração nordestina na Amazônia, também migrou na sua forma intercultural a literatura de cordel. Neste sentido, podemos dizer que este gênero literário está presente na vida dos povos da floresta. No ambiente, escolar, por exemplo, as línguas entrelaçadas promovem de forma ética, o respeito às diferenças sócio – linguísticas no diversificado currículo escolar da região Amazônica.
Na literatura de cordel, verso, métrica e rima, são três eixos que se misturam na construção de uma estrofe. Geralmente, as estrofes mais utilizadas no cordel são as sextilhas e as sétimas. A décima, por sua vez, é muito utilizada nos desafios de cantorias, o que torna ainda mais rico e diversificado este relevante gênero literário popular.
Utilizando-se da literatura de cordel na escola pública amazônida e resgatando seus valores sociolinguísticos no sentido de construir uma interação às peculiaridades regionais dos povos da floresta, o educador tem em mãos, importante recurso didático metodológico, capaz de combater significativamente o fracasso escolar de alunos indígenas que por algum motivo deixaram a aldeia e foram matriculados em escolas públicas da cidade, e que por sua vez demonstraram possuir uma visível falta de domínio da língua portuguesa. Acrescente-se ainda a este fracasso escolar, resultante da situação de diglossia pelas diferenças sociolinguísticas, o fato desses alunos indígenas serem calados de forma arbitrária na escola devido à estigmatização sofrida por parte de colegas não-índios.
Neste caso especifico referimo-nos à nação indígena Kaxarari, que habita uma área de terra localizada parte no Sul de Lábrea, Estado do Amazonas, e parte na região da Ponta do Abunã, Estado de Rondônia. Durante esta pesquisa detectou-se um considerável número de alunos Kaxarari matriculados na escola municipal 13 de maio, localizada no distrito de Extrema. Através das línguas entrelaçadas na literatura de cordel, a escola 13 de maio desenvolve o projeto Coral do jeito da gente, uma prática pedagógica inovadora considerada relevante no combate ao preconceito sócio-linguístico-cultural detectado na escola.Através da linguagem poética na escola podemos sentir a complexa diversidade da vida que constitui e revela uma imensa riqueza de valores, tão presente e tão viva numa educação planetária multicultural revelada através da literatura de cordel num entrelaçamento de línguas. Vejamos um exemplo:
Ibabi deita na rede e pilihi
Eladorme e logo começa a sonhar
Sonhaque brincava com o kapá
Sorrindo muito com kapaká puxi
– Hapaká xibuninarú pihi
Ibabi sonhava com um quatipurú
Quecomia bastante xinarú
Okapá gostava muito de castanha
Quecom as mãos rapidamente apanha
E vai comer o côco do babaçu
Idealizei o projeto Coral do Jeito da Gente no ano de 2008 e atualmente é parte integrante do projeto político – pedagógico da escola, já aprovado pelo Conselho Municipal de Educação de Porto Velho. O coral é formado por alunos do ensino fundamental e tem como objetivo geral resgatar os valores sócio – linguístico - culturais da nação indígena Kaxarari, além de promover de forma multidisciplinar os valores da arte na escola. De acordo com o projeto as letras a serem cantadas pelo coral devem ser compostas por professores da própria escola e num segundo momento a composição das letras devem ser estendidas aos alunos. Neste sentido deverá o professor, no intuito de atribuir uma “melhor qualidade” às letras inicialmente produzidas, observar os problemas de ordem textual, estilística, sintática, morfológica, fonológica e textual.
Outroimportante objetivo do projeto “Coral do jeito da gente” é combater o preconceito linguístico, muito presente na escola, em relação aos remanescentes da tribo indígena Kaxarari. Geralmente algumas famílias indígenas “abandonam” a aldeia para residirem na comunidade de Extrema. As crianças bilíngües, por sua vez, são vitimas frequentes de preconceito contra seu povo, sua cultura e sua língua materna. A língua indígena Kaxarari é da família linguística Pano, assim como tantas outras faladas no Brasil da mesma família, tais como: Arara, katukina, Marubo, kaxinawá, Yawanawá, Nukini e outras. O povo Kaxarari habita uma área de aproximadamente 145.000 hectares, dividida entre as aldeias Pedreira, Paxiúba, Central, Barrinha e Marmelinho, e possui uma população aproximada de 450 indivíduos. A área indígena localiza-se parte no sul do Estado do Amazonas e parte na região da Ponta do Abunã, Estado de Rondônia.
O “Coral do jeito da gente" é uma importante atividade escolar que envolve de forma dinâmica professores e alunos no estabelecimento de ensino. O coral já realizou várias apresentações na escola para a comunidade escolar e realizou também outras apresentações fora da unidade de ensino em outras localidades da região da Ponta do Abunã, como por exemplo, nos distritos de Vista Alegre, Nova Califórnia e na própria aldeia indígena Kaxarari. O projeto também faz parte do "Programa mais educação" e num encontro realizado pelo citado programa no Teatro Banzeiros de Porto Velho, o coral foi considerado a maior atração do evento, que fora organizado pela Secretaria Municipal de Educação - SEMED. Na escola os alunos demonstram um gosto prazeroso pela música, pela poesia, e pela curiosidade de descobrirem o significado de diversas palavras indígenas presentes no poema. O “Coral do jeito da gente" trouxe uma grande oportunidade para que alunos e professores pudessem despertar o interesse pela aprendizagem de uma segunda língua. Considerada uma experiência escolar bem-sucedida realizada através principalmente da linguagem poética, o projeto provoca um estudo interdisciplinar na escola, uma tolerância ás diferentes diferenças, uma inovação e democratização curricular, uma forma relevante de inclusão educacional, uma valorização das nossas peculiaridades regionais e uma valiosa demonstração de continuar semeando o multiculturalismo crítico em nossas escolas.
A primeira música a ser apresentada pelo coral e por sinal uma das mais requisitadas, chama-se "Ibabi Kaxarari". Nela os versos poéticos que constituem o poema, revelam importantes laços sócio – linguísticos - culturais que fazem parte do cotidiano dos povos da floresta, conforme expresso a seguir:
Ibabi Kaxarari
Ibabi quebrou mapupahu
Ibabi quebrou mapupahu
Elacorreu de medo da inawá
Elacorreu de medo da inawá
Eusou huni! Eu sou Kaxarari
Eusou huni! Eu sou Kaxarari
Inawaka huipanikai hani
Inawaka huipanikai hani
Eusou huni! Eu sou Kaxarari
Eusou huni! Eu sou Kaxararí
O poema conta a história de Ibabi [Raia], nome que foi dado a uma criança. Ibabi mora na aldeia Marmelinho e gosta muito de manter contato com os bichos da floresta. Certo dia Ibabi percorria um longo varadouro que ligava o Rio Marmelinho a sua “aldeia” [mahy]. Sua "mãe" [ywa] tinha pedido que Ibabi fosse buscar "água" [waka] e entregou-lhe um "pote de barro" [mapupahu]. Ibabi estava muito "feliz" [xinãtsuby], quando de repente ela parou e avistou uma "onça" [inawá]. Ela levava o pote de barro na cabeça e com medo da onça, correu e quebrou o [mapupahu]. Para espantar o medo, Ibabi lembrou das palavras de seu “pai” [ypa]. O mesmo dizia que quando um dos filhos estivesse passando por qualquer problema, precisava se fazer de forte e nunca se entregar ao problema e seja ele qual fosse, naquele momento era preciso enfrentá-lo dizendo: - a mulher é valente [y shãpyka huipani]. Finalmente Ibabi conseguiu chegar em sua "casa" [xumitxa] dizendo que era uma "Kaxarari" [huni] ou [hunikuny], e assim ela disse em voz alta: - a onça é muito valente [inawaka huipanikai hani].
Outra música bastante cantada pelo "Coral do jeito da gente" é "bunapisi". Bunapisi na língua indígena Kaxarari significa tucandeira, uma formiga de ferroada muito doída. Vejamos então o poema que compus e que dá muito brilho á poesia.
Bunapisi
Bunapisi mora no toco do pau
Bunapisi mora no toco do pau
Eu sei caboclo, eu sei...
Bunapisi veio lá do seringal
Eu sei caboclo, eu sei...
Bunapisi veio lá do seringal.
Hamiski isalikai hani.
Hamiski isalikai hani.
Haxumitxaka hitxituru
Haxumitxaka hitxituru
O poema mostra que a formiga "tucandeira" [bunapisi] mora no toco do pau e vem lá do seringal. A tradução dos dois últimos versos do poema dá-se da seguinte forma:
- A ferroada dela dói muito [hamiski isalikai hani]
- A casa dela é no toco do pau [haxumitxaka hitxituru].
As crianças, principalmente, precisam ter bastante cuidado com a tucandeira, pois "elas têm um bom ferrão comprido" [utisku titica maka hatu]. Desta forma a linguagem poética na escola mostra de forma bastante atrativa para as crianças uma rica diversidade cultural que lhes é peculiar, e que, por sua vez é totalmente excluída dos livros didáticos e geralmente esta imensa riqueza multicultural é autoritariamente substituída por obras literárias tradicionais totalmente alheias ao modo de vida de uma comunidade. É esta a ideia que defendemos, de que a língua seja a expressividade viva e heterogênea de uma rica diversidade cultural sempre presente na vida dos povos da floresta, valorizando intensamente cada vida, cada identidade, respeitando e convivendo com as diferentes diferenças deste mundo planetário.
Neste sentido, podemos afirmar que a escola possui um papel decisivo no sentido de adotar práticas pedagógicas que busquem separar a ideia de uma língua homogênea e estereotipada de tudo, pois como diz a linguística Maria do Rosário Gregolin "entre a língua da escola e a língua da vida, há um fosso intransponível".
Ibabi vivia livremente em sua aldeia. A liberdade era a sua felicidade, uma alegria compartilhada de forma harmoniosa com a floresta e os animais. Ibabi corria livremente ao lado de seus animais de estimação. Era uma linda tarde de "sol" [itukat xiri] quando de repente ela avistou um lindo "veado" [kahu]. Era "o veado-roxo" [kahuka kunú]. Kahu vinha fugindo, ele estava ferido e caiu. Ibabi foi ao seu encontro e disse: - o veado-roxo é pardo [maxahu ya]. Ela percebeu que ele não podia mais correr e descobriu que o homem branco tinha atirado no veado-roxo. Ibabi leva kahu para sua "casa" [xumitxa] e consegue fazê-lo sobreviver, mas seu pai pediu para que ela não saísse, pois a sua tribo estava sendo ameaçada pelo homem branco. Infelizmente a resistência do povo Kaxarari não foi suficiente para enfrentar o despovoador e os que restaram tiveram que fugir a procura de novas terras onde pudessem viver feliz, como mostra algumas estrofes extraídas do poema Ibabi Kaxararí:
kahu caiu no toco do pau
Que para Ibabi foi uma triste tarde
Ela gostava muito de sua carne
Mas logo viu quem lhe fizera o mal
Sentiu que a vida agora é desigual
E que a caça não é apenas de huni
A caça não é somente do Kaxarari
A caça é do despovoador
Ibabi segura o kahu com amor
E diz que ele não pode mais lihi.
Ela disse que ele não pode correr
E o leva para sua xumitxa
Em sua casa, ela vai dele cuidar
E os txabta, juntos vão conviver.
Os dois, grandes amigos vão ser
Convivendo na mais pura harmonia
Ibabi e kahu a cada dia
Vão construindo uma grande amizade
Mas percebem que uma nova realidade
Está surgindo em tamanha covardia.
Ibabi com kahu quer passear
Mas os pais não deixaram ela sair
Naquele dia o povo Kaxarari
O homem branco vai ter que enfrentar
Mas o branco começa a incendiar
E a matar cruelmente aquela gente
Apesar de resistirem bravamente
Os que restaram vão á outra moradia
E por terra e rio, a cada dia
No sul de Lábrea vão plantar outra semente.
Ibabi sente-se desprotegida, só escuta dor, lamento e destruição. Percebe que não pode alçar voo livremente, aos poucos os seus amigos da floresta vão desaparecendo e a tristeza invade seu coração. Mas, ela sabe que não pode desistir, e mais uma vez lembra-se das belas lições do velho pai: - a mulher é valente. [y shãpyka huipani]. Ela então "sorriu" [kytxatu] e disse que agora queria uma "escola" [hãshu haiusitu], não queria mais ficar "triste" [xinãtsubyma'a] queria ser "feliz" [xinãtsuby], queria alegria [xinãtsuby], festa [mulutu] e dança [muluhi]. O sonho de Ibabi era estudar, não queria perder sua língua, sua cultura, sua gente, mas via na educação a única forma de conhecer outros conhecimentos da sociedade branca para que ela pudesse usar a favor da defesa do seu povo. Ibabi agora é uma "mulher" [shãpy] ela quer ter "saúde" [isalima'a], comida [tsasi], Ibabi quer “amar” [ykinui], “viver” [hyiahi] ela não que “morrer” [hytshyhi], quer banhar-se nas águas limpas do "rio" [wakalaki] e dar a seu povo o raiar de um novo "dia" [yunu], conforme relato neste poema:
Ibabi vai á luta, ela quer vencer
Ibabi tem escola e quer estudar
Ibabi ela diz que quer se formar.
Para melhor o seu povo defender.
Ibabi ela quer muito saber
Sobre as leis que regem a nação.
Ibabi quer uma constituição
E na vida realizar grandes feitos
Ibabi quer conhecer seus direitos
E combater uma história de exclusão.
Ibabi continua a luta pela vida
E sempre ao lado de kahu e de tumi
Ela diz - xanikai hani lihi
Referindo-se ali a uma corrida,
Era sua brincadeira preferida
Andar correndo sempre com kahu
O seu lindo veado-roxo kunú
A seu lado estava sempre junto.
Ela diz: - ele tem chifres e corre muito.
E sua comida preferida é o anu.
Ibabi continua amar a floresta
Quando observa o canto do xuki
O tucano encantava Ibabi
Que enfeitava aquela mais linda festa
A vida ali, jamais será desonesta
E todos cantam nos palcos florestais
O respeito alimenta os ancestrais
E a cultura continua preservada
A floresta continua sendo a amada
E dizimada por crimes ambientais.
Ibabi é a voz da preservação
E a injustiça não aceitará jamais
Ela conhece a floresta e os animais
E toda a vida que brota naquele chão
Ela não quer nenhum tipo de extinção
Que ameace a floresta brasileira
Ela será eternamente guerreira
Na defesa do povo Kaxarari
E sempre ao lado de kahu e de tumi
Defenderá a floresta a vida inteira.
O mais gratificante e compensador para todos nós educadores é que este projeto acaba de ser selecionado pela Fundação Banco do Brasil e pela Revista Fórum através do 3º concurso Aprender e ensinar – Tecnologias sociais, divulgado esta semana. Os 64 finalistas do país irão participar de um seminário sobre tecnologias sociais na educação em Brasília durante os dias 22 e 23 de fevereiro com todas as despesas pagas pelo concurso.
O que a Escola 13 De Maio almeja é que os Kaxarari continuem amando e preservando nossa floresta como sempre fizeram. O que nós educadores desejamos, juntamente com educandos, gestores e comunidade, é sempre poder ver a beleza do tucano [xuki], os passos silenciosos do tracajá [nisa], o nado sutil do jacaré [kapiti], o salto seguro do macaco [isuma] e a beleza extrema da arara [kala].
Enfim, "o Coral do Jeito da Gente", tem a missão maior de fazer da escola a casa de todos e de todas. A casa do kaxararí [xumitxa], a casa do seringueiro [tapiri] e a casa multicultural que saiba conviver com as diferenças, sem discriminar os falantes plurilinguísticos - dialetais.
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