Sexta-feira, 28 de julho de 2006 - 15h00
O Cineoca apresenta neste domingo, dia 30, às 17 horas, no audicine do Sesc Esplanada, o premiado documentário, "O Prisioneiro da Grade de Ferro", um registro sobre o sistema carcerário brasileiro, visto de dentro, por quem mais entende dele: os detentos. A exibição do doc no cineclube de Porto Velho acontece graças a uma parceria com o Sesc e Itaú cultural, que traz ao todo quatro produções do projeto financiado pelo Instituto.
Sinopse:
Um ano antes da Casa de Detenção do Carandiru, em São Paulo, ter sido desativada, os prisioneiros aprenderam a usar câmeras de vídeo para documentar seu cotidiano no maior presídio da América Latina.
Com direção de Paulo Sacramento e 123 minutos de duração, o resultado desse registro - que teve sua primeira exibição na mostra Premiére Brasil 2003 e ganhou prêmios nos Festivais de Gramado, Rio, Tribeca, Málaga e É Tudo Verdade - mostra uma realidade humanitária e esperançosa de quem vive sonhando com uma nova chance de liberdade. A imagem negativa das rebeliões dá espaço ao companheirismo nos jogos de futebol, as rodas de samba, lutas de boxe. Homens que rabiscam desenhos no papel e no corpo, cantam no coral, cuidam da limpeza dos pavilhões e apreciam, saudosos, fotos dos familiares.
Como não poderia deixar de ser, Sacramento e os detentos mostram-se imparciais, e relatam ainda a faceta negativa dos presídios, que a mídia sempre mostrou e tornou oficial ao povo brasileiro. Com as portas de "seus quartos" abertas à produção, armas, drogas, tráfico, insurreição e ratos aos milhares - hóspedes nada bem-vindos -, mostram o contra plano à felicidade. O "fotógrafo" oficial do Carandiru, Ronaldo Fernandes Gomes - o Nal, prontuário número 122.265 -, é quem melhor personifica esse lado negro da extinta instituição correcional, com cenas verídicas de corpos dilacerados a punhaladas registradas a pedido da própria Diretoria.
Dos fervorosos cultos evangélicos aos atabaques da Umbanda, os 20 detentos escolhidos para mostrar a realidade do presídio destacam-se - cada um de sua maneira - na narrativa dos enfoques escolhidos. Mas o registro mais tocante é da dupla Joel e Marcos, que numa gravação noturna, sem a presença da equipe técnica, mostram a solidão de uma noite na cadeia. Com uma lamentação de quem não pode atravessar os altos muros e amarga a vida atrás das grades, comentam: "Lá vai o famigerado Metrô", em referência ao trem do Metrô passando rumo à estação Tietê.
Sacramento reuniu ainda o depoimento de ex-Diretores da Casa de Detenção e do Governador de São Paulo, Geraldo Alckmin. Na época da filmagem o Carandiru - implodido em 2002 - contava com 7.500 detentos. Foram capturadas 170 horas de material bruto, que despenderam dois anos de edição e finalização do material.
Além do festival É Tudo Verdade - 8º Festival Internacional de Documentários, em 2003, no qual o longa-metragem venceu a Competição Internacional e a Competição Brasileira, o doc também recebeu o Prêmio da Associação Brasileira de Documentaristas e um dos três Prêmios Estímulos do Ministério da Cultura. Em maio, o filme foi exibido na sessão de encerramento do XIII Cine Ceará - Festival Nacional de Cinema e Vídeo.
Para o júri internacional do É Tudo Verdade, "O Prisioneiro da Grade de Ferro (auto-retratos)" se impôs como uma evidência tão forte quanto à necessidade da sua existência. Segundo os jurados, é "um filme que permite aos próprios prisioneiros revelar seus corpos abafados; um trabalho onde o ponto de vista do cineasta não é a sua prioridade exclusiva. Ele é o fruto de um contrato passado entre duas necessidades. A dos presos de fabricar a sua imagem. A do diretor cineasta de revelar uma realidade".
Já para o júri brasileiro do mesmo evento, trata-se "de um filme que soube criar mecanismos cinematográficos aptos a trazer para o espectador uma dimensão até então desconhecida de uma questão especialmente dramática. O cineasta soube criar neste filme, em marcante sintonia com a equipe envolvida, um dispositivo onde a encenação ou a sinceridade produzem sentidos confluentes, revelando aspectos muito especiais (inéditos em alguns casos) sobre a situação carcerária."
Currículo do Diretor
Formado em Cinema pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Em 1992, cria a produtora independente Paraísos Artificiais, que se tornaria em 1996 a produtora Olhos de Cão.
Foi assistente de direção e produtor de finalização do longa-metragem "A Causa Secreta" (1994, direção de Sérgio Bianchi). Presidiu a Associação Brasileira de Documentaristas - Seção São Paulo (ABD-SP) ao longo do ano de 1997. Realizou a montagem dos longas-metragens "Tônica Dominante" (2000, direção Lina Chamie) e "Cronicamente Inviável" (2000, direção de Sérgio Bianchi).
Produziu e montou o longa "Amarelo Manga" (2002, direção de Cláudio Assis), vencedor de oito prêmios no Festival de Brasília em 2002, entre eles o de melhor montagem e os prêmios de melhor filme segundo o júri oficial, a crítica e o público. Recebeu ainda prêmios de melhor filme no Fórum do Novo Cinema do Festival de Berlim e no Festival de Cinema Latino-Americano de Toulouse, ambos em 2003.
Dirigiu os curtas-metragens "Ave" (1992) e Juvenília" (1994) - este último recebeu o Grande Prêmio de melhor filme nos Rencontres Henri Langlois (França), o prêmio de melhor curta no Riminicinema Mostra Internazionale (Itália) e a Medalha de Prata no Kurtzfilmfestival Goldene Câmera (Alemanha).
Montador laureado, recebeu prêmios de melhor montagem pelos curtas "Nunc et Semper ou Canal 100" (de José Roberto Torero) no Guarnicê de Cine Vídeo de São Luís; "Amor!" (de José Roberto Torero) nos festivais de Gramado e de Brasília; "Geraldo Filme" (de Carlos Cortez) no Festival de Brasília; "5 Filmes Estrangeiros" (de José Eduardo Belmonte) no Festival de Brasília; e "Tepê" (de José Eduardo Belmonte) no Festival de Gramado.
Foi também premiado pela edição de som do curta "Onde São Paulo Acaba" (de Andréa Seligmann) no Festival de Brasília.
Critica: Por Francis Vogner dos Reis
Sacramento poderia escolher imagens e ordená-las de modo que viessem legitimar "uma tese" ou sua crítica sobre o sistema penitenciário, que nesse caso é a saída mais fácil: ouvir autoridades e questioná-las, dar atenção aos presidiários e contrapor opiniões. Mas se esse método fosse empregado depois de tudo visto, falado e ouvido sobre o Carandiru (além da própria dinâmica pobre de contrapor duas "realidades", própria de alguns documentários que lidam com o "outro" sociológico) o filme já nasceria morto porque seria uma compilação de versões, opiniões e justificativas que o mau jornalismo faz tão bem (ou mal).
Após a desativação da casa esse episódio parecia superado. Então como reinstaurar a crise? Em uma trucagem brilhante a nuvem de poeira de implosão do complexo carcerário do Carandiru é vista de trás pra frente. O Carandiru então é reconstruído e o ponto de vista é invertido: a partir de uma oficina com os "reeducandos" (como se fala no universo carcerário) o diretor deixou a câmera na mão deles para que filmassem tudo o que lhes interessava. As imagens agora virão de dentro da cadeia.
Paulo Sacramento optou por um princípio que já excluiria de vez a patinação sobre este assunto tão batido e "resolvido": a busca de imagens inéditas, que não seria simplesmente mostrar o que nunca se viu mas sim estabelecer um outro tipo de relação com o que é filmado. O gosto dos prisioneiros pelas fotos de mulher pelada, os ratos no pátio, a limpeza dos pavilhões, a destilação das pingas, o uso da maconha não remetem a uma denúncia das condições oferecidas ou negadas pelo sistema penitenciário, mas sim, revela o modo que os presidiários tem de estruturar a convivialidade entre eles e dar-se a conhecer para quem, acreditam, verá o filme.
Pelo fato das imagens terem sido feitas por várias pessoas e o resultado ter se condensado em um só filme, poderia se falar na "morte do autor", mas o que interessa aqui é outra coisa: não foi somente generoso o fato do cineasta entregar a câmera aos oficinandos mas também de extrema inteligência porque seria esta a melhor maneira de filmar um mundo que até hoje só teve impressões de quem está fora, seja dos noticiários, seja do doutor Dráuzio Varela, seja dos Racionais Mcs.
Mesmo assim poderia se dizer que foi o diretor quem escolheu o que mostrar e decidiu o encadeamento do material. Sim, mas entendendo a dimensão que o projeto tomou, não poderia subjugar o documentário ao seu intelecto ou a intenções pessoais. O filme tomou vida própria independente de sua vontade, de quem estava no Carandiru ou da opinião pública. A suposta genialidade deixa de ser uma virtude iluminada pra ser um processo em que o artista consegue fazer as opções mais acertadas, sabe insuflar vida a sua criação.
Há muito tempo o cinema, principalmente documentário, tende se por em serviço de algo que acredita ser maior que ele como o presente da política (Fahrenheit 9/11 de Michael Moore) ou a uma personagem histórica (Glauber Labirinto do Brasil, de Silvio Tendler) como se fossem forças desvinculadas da arte utilizada como meio de expressão e seria então a função do artista levar o cinema a exercer um serviço nobre à sociedade, de objetivo meramente prático, cinema como mero acessório. Processos como este, não raros, resultam em obras que vem à luz com atestado de óbito. A importância revolucionária de O Prisioneiro da Grade de Ferro é que o meio (cinema) deixa de ser o instrumento de um intelectual de classe média pra ser veículo do próprio objeto do documentário.
Formidáveis também são as escolhas dos detentos de imagens que correspondem aos seus desejos e que nos remetem para fora do presídio, que criam histórias, momentos e paisagens, que dá luz a uma realidade para além daquela que vemos. Mas realidade, em ambos os casos, não deve ser entendida como reprodução fidedigna e definitiva à vida naquela instituição, mas sim representações que se adeqüem às projeções de quem as faz, sonhos para o futuro, ou o modo como gostariam que fossem vistos por nós, e até mesmo o desejo que transcende o espaço-tempo como o detento que faz pinturas dos filhos, outros que filmam as colagens das mulheres nuas (que com um zoom criaram um efeito de deformação impressionante em alguns corpos nus no papel) ou aquele rapaz que pinta paisagens, nostálgico de lugares que nunca esteve e não viu, mas espera que um dia, não sabe quando (e nem importa), possa testemunhar. Um Escape to Paradise como em O Pagamento Final de Brian de Palma.
Escape to Paradise é a visão do paraíso que Carlito Brigante protagonista da obra-prima de De Palma imagina a partir de um cartaz publicitário de turismo no fim de sua trajetória enquanto agoniza em uma maca. Ambos os filmes - tanto o de Sacramento quanto o de De Palma - fazem um inventário de imagens que nascem da destruição, que começam do fim como necessidade de voltar no tempo, para ir além da superfície das cenas que vemos no primeiro momento. A destruição (ou a morte no caso de De Palma) é o princípio gerador do olhar, a possibilidade da liberdade mais irrepreensível por almejar vida além da estória ou História. Vida não no sentido existencial-humano mas na capacidade de se afirmar como componente indispensável no mapeamento de uma iconografia contemporânea e nesse recorte específico, afirmar-se atemporais. A destruição/morte no sentido de reconstrução, de transfiguração, de lançamento de uma imagem para além dela mesma.
Por isso qualquer análise da sociedade e da geopolítica de uma época que não leve em conta a iconografia de qualquer natureza (pintura, fotografia, cartazes, filmes) é fracassada. Portanto O Prisioneiro da Grade de Ferro, toca em uma outra dimensão que vai muito além de dados, estatísticas e das opiniões correntes, sejam de esquerda, direita ou das vozes da indiferença.
Depois do último e belíssimo episódio sobre a noite em uma cela um corte para o governador de São Paulo Geraldo Alckmin citando dados do sistema penitenciário na inauguração de um novo presídio, o padre abençoa, a imprensa registra tudo. Uma solene cerimônia oficial em que as palavras das autoridades declamam mudanças substanciais em uma demonstração do esvaziamento absoluto da "palavra".
Mas o desfecho não é esse. Após a palavra oficial, clama de dentro da cadeia um profeta irreconciliável. Recita um poema que recusa a enterrar junto com os escombros o que ali aconteceu, porque sabe, a história não acabou, aquela história não acabou e continuar vivo até última instância é o que importa. O Prisioneiro da Grade de Ferro é uma ode à teimosia da vida. A maior que nosso cinema já viu.
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