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Quilombo até embaixo d´água na reserva do Guaporé - RO


Andreia Fanzeres
Se os problemas fundiários nas unidades de conservação levavam décadas para serem resolvidos, a Fundação Palmares e o Incra têm dado sinais de que estão interessados em colocar um ponto final nos conflitos em muito menos tempo.  O reconhecimento de populações quilombolas e a imediata demarcação de terras não enxerga barreiras naturais nem os mais convincentes argumentos de que, em certas áreas, o assentamento de comunidades pode ser uma tragédia para o meio ambiente.  E é exatamente isso que se passa na Reserva Biológica do Guaporé, com 600 mil hectares – uma das poucas áreas de Rondônia com ainda grandes extensões de ecossistemas preservados.
Não adiantou o Ibama apresentar justificativas técnicas que caracterizam a área da reserva biológica, criada em 1982, como de extrema importância para conservação da biodiversidade.  Depois que a comunidade de Santo Antônio do Guaporé foi reconhecida pela Fundação Palmares como remanescente de quilombola, em 2004, os estudos do Incra concluíram que eles teriam direito a 86 mil hectares da reserva.  Hoje, segundo servidores do Ibama lotados na unidade, as 17 famílias do núcleo não chegam a ocupar 200 hectares dentro da reserva biológica, pois se restringem a uma das poucas áreas de terra firme em meio à planície inundável do Guaporé.
O Ibama contestou o laudo do Incra, que prometeu entregar uma nova proposta, ainda não divulgada.  Mas de acordo com José Soares Neto, conhecido como Zeca Lula, presidente da Associação Comunitária Quilombola e Ecológica do Vale do Guaporé (Ecovale) e que se diz representante de todas as comunidades quilombolas da região, a população de Santo Antônio concordou em adquirir “apenas” 44 mil hectares da reserva biológica.
Para Zeca Lula, a explicação para tanta terra, ou melhor, tanta área alagada, é a certeza de que uma vez com o título, a população dentro da reserva vai aumentar.  “Não queremos viver com esse pouquinho de gente”, diz.  “Eu tenho o cadastro de todos os expulsos pelo Ibama na década de 80.  Quando recebermos o título, 90% deles vão retornar”, garante.  “Temos o direito sobre essa área porque é onde nossos antepassados estão enterrados e onde pescamos, colhemos açaí e buriti de canoa, por isso ainda queremos que a área seja transformada em reserva extrativista”, afirma Zeca Lula, que se diz membro da comunidade, nascido lá, mas vive na cidade de Costa Marques, onde foi eleito vereador três vezes.
Bom senso
Pelos estudos do Ibama, a comunidade a qual ele representa diz outra coisa.  “Durante as entrevistas e os trabalhos de campo que fizemos, nenhuma família declarou que caçava ou pescava nessa área alagada.  Não usavam no passado, nem no presente, muito menos no futuro de forma sustentável”, opina Sandro Alves, analista ambiental que trabalha na reserva.  Segundo ele, os moradores plantam mandioca, produzem farinha, criam animais domésticos e pescam bastante no próprio rio Guaporé, fora dos limites da unidade de conservação.
Por esse motivo, aliás, o Ibama aceitou ceder 3.500 hectares da reserva, o que inclui toda área de terra firme da região, e propôs a aquisição de áreas fora da unidade, em domínio particular, onde existem registros do uso para extração de borracha por membros da comunidade até meados da década de 80.  “Um dos mais antigos moradores da comunidade confirma que a região fora da reserva contém as principais colocações de seringa.  Mas hoje pertencem a fazendeiros, com quem o Incra não quer brigar.  É mais fácil tirar terras da União”, diz Alves.  A área sugerida pelo Ibama abarca nada menos que 56 mil hectares de terras para os quilombolas.  Mas Zeca Lula não aceitou.  “Temos o direito sobre a área que hoje é reserva porque já estávamos lá antes que ela fosse criada.  Esta é a área mais preservada da reserva porque nós moramos ali.  Em outras partes está tudo invadido por madeireiro e fazendeiro”.
Zeca Lula, que não se cansa em acusar os funcionários do Ibama de descaso na proteção na reserva, faz questão de citar algumas das atividades ecológicas de sua instituição.  “Temos termos de cooperação técnica com centros de pesquisa, não matamos veados nem antas.  Em 2006, devolvemos 72 mil filhotes de tartaruga-da-amazônia para a natureza e a nossa única caça é o tracajá, mas ele é pego ordenadamente, como o peixe”, diz.  Em 2006, o Ibama multou a Ecovale em 192 mil reais por manter em cativeiro 384 filhotes de quelônios nativos de fauna silvestre sem autorização e em condições precárias.
Pressões no Guaporé
Além disso, a reserva biológica sofre outras antigas pressões.  Na década de 50, em uma fazenda próxima à área atual da reserva, foram soltos búfalos procedentes da ilha de Marajó.  Com o passar do tempo, eles migraram para dentro da unidade de conservação e se tornaram selvagens, representando perigo a quem quer se aproxime.  De acordo com Alves, os cerca de três mil búfalos já tomaram praticamente toda área de campos naturais da reserva biológica, que não tem contato com a população quilombola.
Em 1996, a Funai causou mais um problema de ordem jurídica à Reserva Biológica do Guaporé, embora o Ibama não considere que isso tenha provocado impactos ambientais à região.  Cerca de 400 mil hectares da unidade de conservação estão sobrepostos à Terra Indígena Massaco, demarcada para proteger uma população de índios não contactados.
De acordo com o relatório de contestação do Ibama frente à proposta de demarcação de terras quilombolas pelo Incra, hoje a área efetiva da reserva biológica (livre de impactos), reduziu-se a aproximadamente 200 mil hectares.  “Isso já é insuficiente para a proteção de populações viáveis de várias espécies ameaçadas”, diz o documento.  A planície de inundação do Guaporé é reconhecidamente uma importante área de nidificação de aves aquáticas, entre as quais muitas migratórias como maçaricos e batuíras que viajam do Canadá até o Pantanal de Mato Grosso ou à Argentina.  Todas essas espécies são sensíveis a interferências humanas.  Estudos ainda revelam extrema diversidade de peixes no Guaporé e 71 espécies de herpetofauna, num ambiente frágil e de solos inférteis para agricultura nos pontos não alagados.
Demora prejudicial
A Fundação Palmares, vinculada ao Ministério da Cultura, demora entre 30 e 40 dias para analisar pedidos de reconhecimento de populações quilombolas e emitir as certidões que dão direito automático à aquisição de terras.  É o que explica Maurício Reis, sub-gerente da Diretoria de Proteção ao Patrimônio Afro-Brasileiro da Fundação Palmares.  Para isso basta uma auto-declaração.  “Não necessariamente a comunidade tem que apresentar uma peça técnica de acordo com a legislação.  Também não é exigido que ela mantenha seus hábitos tradicionais nas terras adquiridas”, diz Reis.
A garantia que os quilombolas ganharam para permanecer no interior da reserva biológica poderia ser evitada se o processo de regularização fundiária ocorresse antes do reconhecimento da população pela Fundação Palmares.  Boris Alexandre César, coordenador de regularização fundiária do Ibama (em transição para o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) explica as razões para a demora.  “De 2002 para cá posso dizer que a retirada e indenização de pequenas populações em unidades de conservação não foi a nossa prioridade.  O governo tem atentado muito mais para a solução de grandes impactos nessas áreas”, afirma.
Para Boris César, a solução do problema não deve passar pelo questionamento da legitimidade dos quilombolas, mas do território cobiçado por eles.  “Vai ter que haver uma alternativa que não desconstitua a reserva biológica e não coloque em risco o patrimônio ambiental que justificou a sua criação”, diz.  Todos sabem que isso não é fácil.  E a própria legislação atrapalha.  “Existe uma contradição da Constituição, que diz que toda terra pública em unidade de conservação não pode ter outra destinação e ao mesmo tempo contém um dispositivo que obriga a União a titular territórios quilombolas em contraposição”.
Problema multiplicado
De acordo com César, existem hoje 10 unidades de conservação espalhadas pelo país com o mesmo tipo de problema.  E, para ele, enquanto o impasse não se resolve, o melhor procedimento é negociar para que as comunidades quilombolas também reconheçam que a área está protegida por lei porque tem atributos importantes para sociedade brasileira.  E sem a providencial ajuda de interlocutores, como a ONG de Zeca Lula.  “Sob a ótica do Ibama, a questão fundiária não é um direito coletivo, por isso eu não posso ter interlocutores.  Até porque não sei se os interesses da comunidade são únicos”, explica.  “A idéia é fazer com que cada família assine um termo de compromisso, como num pacto de convivência.  Mas no caso da reserva biológica do Guaporé isso ainda não aconteceu.  As conversas não estão tão adiantadas”.
Boris César assegura que, enquanto essas etapas não forem cumpridas, não haverá possibilidade de demarcação.  “Só a partir do novo relatório do Incra é que as conversas vão começar”, diz.  Segundo ele, não apenas o Ibama tem prazo para se manifestar, mas também o Ministério da Defesa, por se tratar de área de fronteira com a Bolívia, a Funai e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), devido à existência de diversos sítios arqueológicos no local.
 
Fonte: O Eco

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