Domingo, 7 de julho de 2024 - 08h10
A EC (Emenda Constitucional)
132/2023 previu a substituição do ICMS, ISS, PIS e COFINS por um novo sistema
de tributação do consumo, mais simples, racional e alinhado à prática
internacional.
Nesse sistema, a tributação geral
do consumo será dual, com um Imposto (subnacional) e da Contribuição (federal)
sobre Bens e Serviços, IBS e CBS, instituídos por lei complementar e
praticamente idênticos entre si. Eles serão administrados pelo Comitê Gestor do
IBS (CG) e pelo fisco federal, cabendo aos entes federados definir suas
alíquotas padrão. Haverá, ainda, um Imposto Seletivo para desestimular consumos
prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, que coexistirá com o IPI,
mantido apenas para produtos da ZFM.
A dualidade substitui a ideia
original de um único IBS compartilhado entre os entes, que, como alertamos
desde os primórdios da PEC 45/2019[1],
seria inconstitucional, pois suprimir o ICMS (88% da arrecadação estadual) e o
ISS (43% da municipal)[2],
deixando o novo imposto a critério do Congresso Nacional, afetaria a
autonomia financeira dos entes[3].
Contudo, após a alteração,
apontamos para o risco de essa dualidade ser apenas formal, sem garantir um
nível satisfatório de autonomia aos entes[4],
o que, agora, é confirmado pelos recentes PLPs 68 e 108/2024. Afinal, segundo
os PLPs, os entes serão subalternos ao CG, que, por sua vez, ficará na
dependência da União quanto à estrutura comum do IBS/CBS. E isso os
enfraqueceri a, amesquinhando a Federação, o que é vedado.
De fato, a EC teve o propósito de
recuperar a racionalidade do sistema tributário. Assim, a dualidade do IBS/CBS
precisa ser estruturada de modo a atender à simplicidade, transparência,
justiça e cooperação (CF, art. 145, §3º). E isso implica que, além de
duais, os tributos têm de ser uniformes, tanto em seus aspectos
legais (mesmas regras de incidência) quanto administrativos, com regulamentos,
interpretações, obrigações e procedimentos harmônicos (CF, arts. 149-B, art.
156-B e 195, §16).
Consequentemente, a lei
complementar deve dispor sobre a matéria de modo a garantir suficiente
autonomia dos Estados e Municípios (dualidade), mas, ao
mesmo tempo, criar um sistema simples, racional e praticável o bastante (uniformidade)
para justificar o abandono do sistema atual, que existe há anos e que, bem
ou mal, funciona.
De fato, “a repartição de
competências e de receitas tributárias configura um dos pilares da autonomia
dos entes” (STF, RE 591033, DJ 24/02/11), pois consagra a
descentralização e“divisão de centros de poder”no País (ADI 4228, DJ
10/08/18). Por isso, nem mesmo via emenda pode o Congresso Nacional
relativiz&aac ute;-las“ ou afastá-las”, o que ofenderia “o
pacto federativo” e seria “tendente a aboli-lo”, o que é vedado(ADI
926, DJ 06/05/94).
Em nosso sistema, competência
tributária é o poder do ente para instituir seu tributo por lei própria. Ela
não se confunde com a capacidade administrativa de arrecadá-lo ou alterar-lhe a
alíquota, que é delegável, sem que isso o tornede competência de quem a exerce,
ao invés do órgão legislativo que o cria. Só há competência tributária se o
ente pode criar / modificar o tributo quando conveniente[5].
No caso, há indicativos de que
Estados e Municípios podem perder poder em matéria de consumo, pelo prisma
tanto da competencia quanto da capacidade
tributária.
A teor da EC, a instituição e a
estrutura do IBS serão definidas junto com as da CBS, por lei complementar de
iniciativa federal, editada pelo Congresso Nacional, ou seja, por
veículo e órgão legislativos da União. Assim, ela passará a de
ter competência para dispor sobre estrutura do tributo, o que, hoje, os entes
fazem por leis próprias. Segundo os idealizadores da EC, isso seria possível
por tratar-se de competência compartilhada, a permitir que tributos “distintos”
sejam criados por uma lei complementar comum, de caráter “nacional”. Todavia,
nacionais são leis complementares de normas gerais para regular a compet
encia dos entes, que a exercem por leis próprias, enquanto as que criam
tributos são leis instituidoras, mas sujeitas a rito mais rigoroso, pela
excepcionalidade do gravame (CF, art. 148 e 154, I).
Além disso, inúmeras
prerrogativas inerentes à capacidade administrativa, hoje exercidas pelos entes
sozinhos, serão centralizadas no CG. Este, por sua vez, ficará sujeito à
União, ao ter de entrar em acordo com ela, nos temas submetidos a harmonização.
Estados e Municípios, sozinhos, poderão apenas determinar suas alíquotas-padrão
e fiscalizar e lançar o IBS, mas, neste caso, sempre dentro das diretrizes do
CG.
Em âmbito infraconstitucional, os
PLPsacentuam o risco de centralização, pois, ao preverem estrutura
idêntica, evidenciaram a unicidade de fato do IBS/CBS. É dizer:
não serão dois, mas um único tributo, cuja dualidade operará não na competência
(legislativa), mas na destinação dos recursos e em frações da capacidade de
administrar o tributo.
Além disso, apesar de a
representação paritária dos Estados e Municípiossugerir certa independênciado
CG, o âmbito para atuação autônoma do órgão será estreito, pois todos os
temas comuns ao IBS e CBS dependerão de atos conjuntos com a União.
Assim, ele só agirá sozinho em relação a temas procedimentais secundários.
Essa harmonização ocorrerá,
conforme a matéria (infralegal/administrativa e/ou jurídica), nos chamados
Comitê das Administrações Tributárias e Fórum das Procuradorias. Ainda que a
União e o CG tenham 50% dos votos cada, não haverá verdadeiro equilíbrio de
forças. Afinal, o interesse da União tende a ser linear, enquanto os dos
representantes do CG não o serão, pois terá de haver representação satisfatória
dos Estados do Centro-Sul e do Norte/Nordeste, bem como dos grandes e pequenos
Municípios. Assim, a União será um bloco monolítico (50%), enquanto o CG se
apresentará como um conjunto de até quatro sub-blocos (12,5%) com interesses
conflitantes. Logo, bastará à União cooptar um desses blocos para exercer
liderança e fazer-se prevalecer nas discussões, como ela já faz outras esferas.
Para piorar, os PLPs sequer preveem o tipo de maioria a ser observada nessas
votações, o que ficou para um futuro regimento, apesar do seu impacto sobre a
Federação.
Portanto, a prevalecerem os PLPs,
a estruturação do sistema previsto na EC pode reduzir perigosamente a autonomia
dos Estados e Municípios, a ponto de redefinir, para pior, a qualidade
da Federação brasileira (retrocesso), seja porque eles perderiam o poder que
hoje possuem, seja, ainda, porque serão duplamente inferiorizados, ao ficar
abaixo de um CG central, que, por sua vez, pouco decidirá sem o amém da União.
Nesse cenário, embora ainda
não se possa afirmar que a seja inconstitucional, pode ocorrer um processo de inconstitucionalização
da reforma tributária, caso ela reduza (ao invés de manter ou aumentar) a
capacidade dos Estados e Municípios de custear suas atividades e serviços sem
dependerem da União, o que exigiria a rediscussão do modelo, com os custos daí
decorrentes para o País.
Hamilton
Dias de Souza é
sócio fundador dos escritórios Dias de Souza Advogados Associados e Advocacia
Dias de Souza, mestre e especialista em Direito Tributário pela Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo (USP).
Humberto
Ávila é
fundador do escritório Humberto Ávila Advocacia e professor-titular de Direito
Tributário na Faculdade de Direito da USP.
Ives
Gandra da Silva Martins é professor emérito das universidades Mackenzie, Unip, Unifieo,
UniFMU, do Ciee/O Estado de São Paulo, das Escolas de Comando e Estado-Maior do
Exército (Eceme), Superior de Guerra (ESG) e da Magistratura do Tribunal
Regional Federal – 1ª Região, professor honorário das Universidades Austral
(Argentina), San Martin de Porres (Peru) e Vasili Goldis (Romênia),
doutor honoris causa das Universidades de Craiova (Romênia) e
das PUCs PR e RS, catedrático da Universidade do Minho (Portugal), presidente
do Conselho Superior de Direito da Fecom ercio-SP, ex-presidente da Academia
Paulista de Letras (APL) e do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp).
Roque Antônio Carrazza é fundador do escritório Roque Carrazza
Advogados Associados e professor-titular de Direito Tributário da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo.
[1] SOUZA,
Hamilton D.; ÁVILA, Humberto B.; e CARRAZZA, Roque A. A reforma tributária que
o Basil precisa, parte 1. CONJUR, 08/11/2019.
[2] Vide dados do Tesouro Nacional
citados no parecer de admissibilidade da PEC 45/2019 apresentado pelo Dep. Fed.
João Roma à CCJ/CD.
[3] Vide, p. ex., Substitutivo do
Deputado Aguinaldo Ribeiro à PEC 45/2019, na Câmara dos Deputados (fase I).
[4] SILVA
MARTINS, Ives G.; SOUZA, Hamilton D.; ÁVILA, Humberto; e CARRAZZA, Roque.
Considerações necessárias sobre a reforma tributária. Portal Tributário,
03/07/2023.
[5] CARRAZZA, Roque Antonio. Curso
de direito constitucional tributário. São Paulo: Malheiros, 1997.
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