Sexta-feira, 27 de junho de 2014 - 12h33
“Mandou a bola para o Hazard, invadiu, arrumou, rolou para Origi. Emendou e guardou, gooooooool da Bélgica”. Para quem estava ouvindo o jogo entre Bélgica e Rússia em uma das rádios comerciais do Rio de Janeiro, o gol solitário da vitória dos belgas foi narrado assim. Mas, os cerca de 20 deficientes visuais que sintonizavam a frequência 88,9 FM dentro do Maracanã, escutaram o gol desta forma: “a bola é trabalhada na esquerda, Hazard cruza para trás, Origi bate no alto e é gol da Bélgica. Os jogadores comemoram perto da arquibancada. Alguns câmeras que estão na linha lateral se aproximam deles. O goleiro Courtois vibra com a torcida que está atrás da outra meta e forma uma mancha vermelha no estádio”.
Felipe Santos, atleta paralímpico de goalball, era um dos que ouviam a partida através do serviço de narração audiodescritiva do estádio carioca, uma novidade no país e na história das Copas. “O legal é que temos uma cópia mais fiel do jogo, com mais riqueza de detalhes. Isso nos ajuda a montar uma imagem melhor do campo. A gente sabe que na rádio convencional às vezes o jogo está ruim e o narrador tem que dar uma emoção a mais para segurar a audiência. Então, melhorou a minha percepção”.
Percepção que tem uma dimensão diferente daquela de quem enxerga. “De cores, infelizmente eu não tenho referência suficiente da época em que eu enxergava, mas imagino. Não posso dizer que o meu azul é igual ao seu azul, mas imagino. Consigo ir desenhando aquilo na minha cabeça”, explica Santos, durante o jogo entre França e Honduras. Ele perdeu totalmente a visão aos três anos.
Quem narra o jogo se torna um “montador” de imagens. E para fornecer os elementos necessários para que o quadro fique mais completo, eles usam as mais variadas referências, evitam opinar e utilizar expressões com adjetivos como o ‘gol foi bonito’. “Usamos comparações, por exemplo, o jogador abriu os braços para os lados, como se fosse o Cristo Redentor, ou abriu os braços como a letra T, então você usa isso para ajudar”, conta Gabriel Meyr, professor de educação física e um dos narradores do Maracanã.
A tarefa é compartilhada com o jornalista Eduardo Butter, em uma das posições da tribuna de imprensa da arena. “Durante os treinamentos que tivemos, fizemos um tour pelo Maracanã com um deficiente visual. Quando passamos pelo banco de reservas, ele colocou a mão e perguntou: ‘o que é isso?’ A gente falou: ‘é o banco de reservas’. Ele sempre achou que fosse como um banco de ônibus, nunca que seria uma poltrona. Então, quando a gente fala em explicar e descrever o que está no estádio, é isso. São coisas básicas para nós, mas que o deficiente visual não sabe. Falamos do torcedor fantasiado que aparece no telão, porque as pessoas começaram a rir dele e o cego não entende porque elas estão rindo. Nossa função é realmente descrever o máximo possível, sem perder o que acontece em campo”.
Com tanta informação para ser transmitida, os colegas se revezam no microfone. “A gente vai passando a bola um para o outro, porque é muito mais intenso. A gente fala muito mais que um narrador de televisão, por exemplo. Não dá para levar os 90 minutos. Narramos dois ou três minutos e já damos a deixa para o outro entrar. Se em algum momento do jogo a bola está parada, ou os zagueiros estão trocando passes na defesa, você aproveita para explicar um pouquinho mais o lance anterior”, disse Butter.
Outra vantagem para os deficientes visuais é a de poder comemorar os gols junto com o resto do estádio. Como a transmissão da audiodescrição é direta, o sinal chega antes das demais estações de rádio. Emoção em dobro, como para o atleta paralímpico de futebol Anderson da Fonseca. “Eu fico comparando uma com a outra. No jogo da Bélgica, ouvi na audiodescrição e depois mudei para a outra rádio e o gol nem tinha saído ainda”.
Acostumado a ir ao Maracanã, Anderson tem um novo motivo para continuar frequentando o local. “Vinha sempre com o radinho, sempre gostei. Agora, há mais um incentivo. Muitas vezes, em casa, acontece um lance diferente e a gente quer saber o que aconteceu, então, pergunta para o pai, ou para a mãe. Hoje, no estádio, não tem mais essa necessidade. A gente consegue saber como foi a falta, não só que foi uma falta no Neymar, mas que o jogador tocou com a chuteira no Neymar e ele caiu no chão de costas, de braços abertos”.
O alcance da rádio se restringe ao Maracanã e ao entorno do estádio. Com um transmissor compacto, uma antena, microfones e fones, os dois narradores levam a emoção a qualquer torcedor que tenha um equipamento para sintonizá-los. Na mesa de trabalho, um monitor que transmite os replays da partida e muito material sobre os jogos. “Assisto a todas as partidas e dou uma boa estudada em casa. Bélgica e Rússia foi um jogo difícil de preparar, não só pelos nomes, mas até para identificar os jogadores no campo. Para algumas pessoas, enxerguem ou não, não faz diferença se o lateral da Rússia é o Yeschenko. Mas, tem muito cego que entende de futebol e quer saber se quem está com a bola é o Benzema ou o Matuidi, ele tem o direito de saber isso”, conta Butter.
O trabalho dos dois narradores voluntários passa por um crivo rigoroso dos ouvintes. Formulários são distribuídos para os torcedores opinarem sobre o desempenho da dupla. “Nos últimos jogos, o serviço está sendo anunciado no telão e a gente vem tendo uma média de 30 a 40 respostas, por partida, de cegos e não cegos. Temos um grupo em um aplicativo de celular que na hora do jogo eles dão umas dicas”, relata Meyr, que tem uma experiência semelhante em narrar para este público. Como treinador de uma equipe de futebol para cegos, ele descreve os lances dos jogos dos adversários para preparar melhor seu time antes dos confrontos.
“O serviço é muito novo no Brasil, é a primeira Copa com isso. Na verdade está todo mundo aprendendo um pouco. O deficiente visual está aprendendo que para ele é importante essa oportunidade e esse retorno é essencial para que a gente possa melhorar”, destaca Butter.
O serviço também está disponível em outras três arenas da Copa do Mundo, além do Maracanã. No Mineirão, em Belo Horizonte (103,3 FM), no Estádio Nacional Mané Garrincha, em Brasília (98,3 FM), e na Arena Corinthians, em São Paulo (88,7 FM).
A iniciativa é uma parceria entre a FIFA, que comprou e irá doar os equipamentos e manterá a audiodescrição por mais um tempo no Brasil, o Centro de Acesso de Futebol na Europa (Cafe), instituição que idealizou o serviço e fez o treinamento dos 16 voluntários brasileiros envolvidos no projeto, e a ONG Urece Esporte e Cultura, situada no Rio de Janeiro, e que desenvolve trabalhos com deficientes visuais.
Legado que Felipe Santos espera que seja difundido pelo país. “Eu acho que a primeira coisa é que você tira os cegos de um gueto. As pessoas dizem que o cego tem que ficar em casa, que não adianta vir para o estádio. Eu sou um dos poucos, acho, que frequentava o estádio. Muitos que conheço ficavam em casa. E um serviço como esse, chama e integra as pessoas na sociedade. O importante foi o pontapé inicial, agora é aprimorar”.
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