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Meio Ambiente

Estado está ausente em região que desmata


 
O paranaense Ismael Osório Meira já derrubou árvores em toda sorte de lugares em Rondônia: reservas estaduais de mata nativa, reservas federais, áreas indígenas, propriedades de pequenos e grandes agricultores, áreas de extração legalizadas pelos órgãos ambientais. Para ele, nunca fez muita diferença de onde tirava a madeira. "Mata é mata, é tudo igual", gosta de repetir. Nunca lhe pediram - e ele nunca deu - qualquer tipo de documento das árvores que pôs abaixo. Toras entregues, dinheiro no bolso, simples assim.

Nos últimos 14 anos ele tem se embrenhado nos restos da floresta amazônica que ainda existem no Norte de Rondônia em busca das árvores que se tornaram a madeira cobiçada pelos consumidores da Europa e, principalmente, do Sul e Sudeste do Brasil. A experiência de mais de uma década percorrendo as ilhas de mata fechada quase na divisa com o Estado do Amazonas lhe ensinou a identificar com facilidade o que é um ipê, um jequitibá-rosa ou um tauari, algumas das espécies que conseguem os melhores preços nos grandes centros consumidores.

A bordo de um antigo trator equipado na dianteira com uma grande pá, Ismael passou esses anos todos abrindo pequenas "estradas" em meio à floresta até chegar onde estava a árvore que pretendia derrubar. Após transformada em toras de até cinco metros de comprimento, a árvore é puxada pelo mesmo trator até a beira da estrada, onde um caminhão aguarda para fazer o transporte à serraria que está pagando melhor pelo metro cúbico no momento.

Ismael mora em uma casa de madeira bastante simples, à margem da esburacada estrada de terra que liga os municípios de Cujubim e Machadinho do Oeste, responsáveis por quase 50% dos mais de 1 milhão de m3 de madeira extraídos em Rondônia em 2006. Essa região, que faz divisa com o Amazonas, é considerada uma das 36 áreas que mais desmataram a floresta amazônica no último ano, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, o Inpe.

Por conta disso, há mais ou menos dois meses o governo federal enviou para lá homens da Força Nacional, policiais federais e agentes do Ibama, sob a Operação Arco de Fogo, a fim de estancar o que a ex-ministra do Meio Ambiente Marina Silva classificou como a sangria desatada. Ismael, que sempre soube que muitas das árvores não podiam, legalmente, sair de onde estavam, foi indiciado por crimes ambientais. Para ele, isso nem foi o pior. Ruim mesmo foi perder o trator e o caminhão. Sem eles não há como puxar tora, diz. E sem tora não há dinheiro.

Para o governo, ambientalistas, ONGs, Ibama, Ministério Público Federal e para as leis ambientais brasileiras Ismael Meira é um criminoso. Ele mesmo sabe disso. Mas para sua companheira de mais de 25 anos, Salete Fiametti e para o filho Cristiano, é um herói. "São pessoas como ele que construíram esse Estado trabalhando duro, indo para esse mato de dia, de noite, na chuva para ganhar a vida", diz ela olhando com admiração para o marido, que mantém o olhar baixo e ensaia um sorriso quase melancólico. Inegavelmente, Ismael não vive um dos melhores momentos de sua vida. Aos 47 anos de idade, 20 deles em Rondônia, ele não sabe muito o que fazer agora sem seus instrumentos de trabalho. "Não há mais nada para fazer aqui, esse é meu trabalho e preciso esperar a poeira baixar, arrumar outro trator e voltar pra lida, não tem jeito", diz, com o olhar insistentemente voltado para o copo de café fumegante que Salete acabou de passar. 

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O paranaense Ismael Osório Meira, "toreiro" há 14 anos no Norte de Rondônia, e o filho Cristiano: "Não há mais nada para fazer aqui, esse é meu trabalho"

Para as cerca de 50 mil pessoas que vivem em Machadinho e Cujubim, Ismael não é nem criminoso nem herói. É apenas um dos muitos elos de uma cadeia produtiva que responde por quase 100% da economia local e se estende até as casas das famílias de classe média alta de cidades como Rio, São Paulo ou Frankfurt. Assim como ele, de uma forma ou de outra, quase 10% das cerca de 1,5 milhão de pessoas que vivem em Rondônia dependem diretamente da madeira. Se pessoas como Ismael não trabalham, quase ninguém trabalha em Cujubim, Machadinho ou outras tantas cidades que têm sua produção econômica baseada quase que exclusivamente na madeira.

Profissionais como Ismael, conhecidos por "toreiros", existem às dezenas nessas duas cidades que se tornaram o alvo da Operação Arco de Fogo, em Rondônia. Quase todos têm perfil muito semelhante. Migrantes, principalmente do Sul e do Sudeste do país, que foram para o Estado por conta das campanhas de colonização do governo federal nas décadas de 70 e 80. Chegaram com a obrigação de colocar abaixo 50% da floresta para começar a produzir nos lotes de 100 hectares que recebiam do Incra na época e, só então, ter o título provisório da área. Muita gente nem se preocupou com a madeira que tinha em suas terras. A lógica era colocar fogo na mata e começar a plantar o mais rápido possível.

No início da década de 80, famílias de madeireiros do Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina passaram a seguir os rumos dos pequenos agricultores, expulsos por uma produção agrícola cada vez mais mecanizada. Também apoiados pelo governo federal, foram para Rondônia, onde a matéria-prima cada vez mais escassa no Sul era abundante.

A família de Nereu Mezzomo fez esse caminho no final da década de 70. Saíram da catarinense Abelardo Luz e foram parar em Ariquemes, hoje o maior pólo madeireiro de Rondônia. "Meu Deus, como havia madeira aqui", diz Nereu, que responde alguns processos por crime ambiental, assim como quase todos os madeireiros de Rondônia. "Me lembro do pessoal colocar fogo em mogno porque a madeira estava manchada, se jogou muito dinheiro fora", relembra ele, que hoje é dono de uma das maiores madeireiras de Ariquemes.

Por quase uma década, famílias como a Mezzomo controlaram a economia de Rondônia, fortemente baseada na extração da madeira. Em 1989, menos de 20 anos atrás, 60% da produção industrial do Estado estava ligada diretamente à madeira. O número de serrarias cresceu de forma vertiginosa em menos de 30 anos. Enquanto em 1953 havia apenas quatro delas no então território do Guaporé, nos anos 80 já eram mais de mil.

Essa expansão contou com a bênção do governo federal, principalmente no fim dos anos 70 e início dos anos 80, por meio de financiamentos, doações de terra e subsídios. "A estratégia dos militares com a campanha 'Integrar para Não Entregar' criou um processo de colonização muito semelhante ao que os portugueses fizeram no Brasil nos séculos XVII e XVIII", diz Osvaldo Pittaluga, superintendente do Ibama em Rondônia.

"A lógica aqui era extrair o máximo possível e ampliar as fronteiras produtivas", diz ele, um gaúcho que se diz meio Inter meio Grêmio e ocupa uma posição política delicada. Ao mesmo tempo em que é funcionário de carreira da Secretaria de Desenvolvimento Ambiental do Estado, órgão duramente criticado pelo Ministério Público Federal e organizações ambientais, ocupa a superintendência do Ibama por indicação partidária. 

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Nereu Mezzomo, dono de uma das maiores madeireiras de Ariquemes, responde a processos por crime ambiental
O resultado dessa política de ocupação teve efeitos rápidos. Entre 1983 e 1985, a área desmatada saltou de 5,7% para 11,4% da área total do Estado. Dez anos depois, em 1996, ela já chegava a 22,5% da área total. Hoje, de acordo com dados do próprio Estado, a área desmatada já atinge mais de 31% da área total de Rondônia. Nenhum Estado na região amazônica destruiu a floresta com tanta intensidade e tão rapidamente.

Se depender de Delano Rosevelt Nantes, um agricultor de Cujubim, isso vai continuar. Dono de um lote de 22 hectares nesse município que vive exclusivamente da madeira, Delano era um dos participantes mais exaltados na reunião em que representantes do Ibama e da Polícia Federal diziam o que os soldados armados com fuzis e metralhadoras da Operação Arco de Fogo estavam fazendo de fato ali.

O encontro aconteceu no mesmo dia em que o Brasil recebia o grau de investimento pela agência Standard & Poor's. Em uma sala quente, abafada, em que o odor exalado pelos corpos suados era quase palpável, representantes do governo federal tentavam explicar as leis ambientais vigentes no país. Mais, tentavam convencer dezenas de homens e mulheres de que tudo o que vinham fazendo há duas décadas estava errado.

No turbilhão de comentários desencontrados, Delano pediu a palavra e fez uma pergunta quase inocente, quase sarcástica: "O doutor pode explicar como vamos viver da terra com as árvores em pé?". Não teve resposta. E sem resposta os agricultores chegaram a uma conclusão unânime e fatídica: "Se não puder mais tirar madeira Cujubim vai desaparecer do mapa", repetiam, um a um, aqueles que volta e meia buscavam um pouco de ar fresco sob o sol amazônico no quintal da casa que abriga a Câmara Municipal de Cujubim.

Tirando as 13 mil pessoas que vivem ali, segundo o IBGE, provavelmente pouca gente ia se dar conta se Cujubim realmente deixasse de existir. Distante quase 100 quilômetros da estrada asfaltada mais próxima, Cujubim é quase um estereótipo das profundezas do Brasil. Tem apenas uma rua calçada e meia dúzia de outras que se transformam em lamaçal quase intransponível na época de chuvas, entre setembro e março. São quatro escolas pequenas, um posto de saúde, uma dúzia de bares e cerca de 30 serrarias. Luz só por geradores. Localizada na última fronteira do desmatamento em Rondônia, já quase no Amazonas, Cujubim é uma cidade esquecida pelo Estado. O único representante do governo federal na cidade é uma franquia dos Correios, que não tem carteiros no quadro de funcionários.

Apesar das armas, das ameaças e das promessas de que agora haverá, de fato, fiscalização por ali, Delano e a maior parte dos agricultores que participaram da reunião parecem não ter se intimidado muito. Os efeitos dos primeiros dias da operação, quando a economia da cidade praticamente parou por conta da dura fiscalização, só reforçaram a determinação dos moradores de Cujubim. Como Delano, quase todos plantam café, feijão, milho e mandioca. A terra não é das melhores e não há quase nenhuma assistência técnica.

Mas a maior dificuldade mesmo é a completa falta de financiamento agrícola. Como o Incra nunca concluiu a regularização fundiária dos assentados em Rondônia, quase ninguém tem a escritura final de suas terras. E, sem ela, não há como acessar os programas de financiamento da União, como o Pronaf. A estimativa é que apenas 2% dos pequenos agricultores da região de Machadinho e Cujubim tenham a escritura definitiva dos lotes.

Sem financiamento, com terras pouco produtivas e quase nenhuma tecnologia, poucos são os agricultores que sobrevivem de suas lavouras. A saída, como vem sendo há muitos anos, é a madeira. Seja trabalhando nas muitas serrarias da cidade, seja atuando como "toreiros" ou mesmo retirando as árvores mais valiosas das áreas de reserva de suas propriedades.

Quando a coisa aperta, Delano faz isso. Contata um dos "toreiros" que conhece, informa a árvore que tem, negocia o preço e a vende. Tudo sem nota, sem autorização ambiental ou fiscalização. O "toreiro" então leva as toras à serraria e a revende por cerca de R$ 200 o metro cúbico. Uma árvore de Ipê, por exemplo, tem em média de cinco a seis metros cúbicos e cada metro cúbico é vendido aos distribuidores do Sudeste ou do exterior por cerca de US$ 900.

Para legalizar a madeira, muitas serrarias se utilizam de um complexo sistema de guias florestais autênticas, geradas de forma ilegal. Com as guias em mão e depois de serrada, a árvore, retirada de uma propriedade como a de Delano ou de reservas, se torna legal. "Depois que corta não tem mais como saber de onde veio, madeira não tem código de barras", diz um atravessador de madeira de Votuporanga (SP), que garante se chamar João Belini.

Todas as serrarias de Rondônia afirmam que só extraem madeira de áreas autorizadas pelo órgão ambiental estadual por meio dos chamados planos de manejo. Mas todas também admitem que há extração ilegal. Pelos cálculos do vice-presidente do Sindicato dos Madeireiros de Ariquemes, João Daniel Kalsing, o mais forte do Estado, cerca de 50% da madeira extraída na região é ilegal. O Ministério Público Federal acredita que só 40% é legalizada. Já o Ibama prefere não fazer uma estimativa. Somente o secretário de Desenvolvimento Ambiental de Rondônia, Cleto Muniz de Brito é enfático sobre o volume de madeira ilegal que é extraída em Rondônia: "Nós podemos garantir com a maior segurança que nem um metro cúbico de madeira ilegal sai do Estado".

Ismael, Delano e tantos outros pequenos agricultores ou simples trabalhadores da indústria madeireira não parecem preocupados com as estatísticas. O objetivo deles é simples e direto: sobreviver da melhor maneira possível. Sem alternativas econômicas viáveis, é difícil acreditar que, após a saída das forças de repressão do governo federal, eles vão deixar de buscar na floresta a renda que não vem da agricultura nem da fraca economia monotemática .

Por mais assustadora que possa parecer para qualquer pessoa com um mínimo de consciência ambiental, a teoria de Amóz Martins, madeireiro de Ariquemes, talvez traduza da melhor forma o sentimento de boa parte da população dessas cidades esquecidas no meio da Amazônia brasileira: "Agora estão querendo fazer com a árvore o que os indianos fazem com as vacas, torná-las sagradas. Mas eles a gente até entende, porque vaca dá leite e pode virar um belo churrasco. Mas árvore? O que a gente vai fazer com árvore em pé?".

Fonte: Jornal Valor Econômico - Yan Boechat

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