Quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009 - 14h03
Bettina Barros
O plano do governo federal de realizar concessões públicas de terras na Amazônia, como forma de segurar o desmatamento da floresta, mal nasceu e já corre o risco de se transformar em mais um projeto oficial fadado ao fracasso. Para alguns especialistas, é isso o que vai acontecer se não houver investimentos urgentes - e maciços - em treinamento profissional.
Um gargalo estimado em milhares de "conhecedores" da Amazônia se espera para os próximos anos. A escassez se concentrará em dois grupos: o de engenheiros e o de técnicos capacitados para o chamado manejo florestal, uma ferramenta complexa e detalhada para a exploração da madeira sem prejuízo à mata.
É neste manejo que o governo, na figura do Serviço Florestal Brasileiro (SFB), deposita suas esperanças para salvar a maior floresta tropical remanescente no planeta. Em pauta não está mais o isolamento sagrado da mata, mas a sua exploração sustentável, que derruba árvores selecionadas para manter o resto de pé.
Nesse novo cenário de desenvolvimento aliado à preservação, esses dois grupos de profissionais são peças-chave. O engenheiro é o cérebro por trás do manejo. É ele quem analisa o inventário da floresta, divide a propriedade em unidades de produção, define o ciclo de cortes e as chamadas árvores matrizes, que devem ser mantidas para gerar sementes e propagar espécies. O técnico, por sua vez, é o mestre-de-obra. Coordena isso tudo.
O problema, no entanto, está justamente aí. Esses dois especialistas estão em falta no mercado. Não há escolas em número suficiente para atender à demanda continental da Amazônia, e as que existem limitam-se à teoria da sala de aula. O funil, como sempre, está na vivência prática.
"As poucas escolas na Amazônia não fazem capacitação em campo", afirma Adalberto Veríssimo, da ONG ambiental Imazon, em Belém, uma das mais respeitas na região. "Os alunos de engenharia florestal e de escolas técnicas agrícolas aprendem só em sala o conceito de manejo. Raramente vão para a mata colocá-lo em prática", diz o pesquisador.
Há hoje no Brasil 17 escolas profissionalizantes para técnico florestal. Dessas, apenas cinco estão na região amazônica - duas no Pará (Marituba e Castanhal), uma no Acre (Rio Branco), uma no Amazonas (Manaus) e uma no Mato Grosso (Cáceres). Segundo os dados disponíveis mais recentes, em 2006 essas escolas formaram 245 profissionais florestais, sendo 58 na Amazônia.
Além dos cursos técnicos, há ainda 11 faculdades com curso de engenharia florestal atuando na Amazônia, sendo a mais antiga da Universidade Federal do Pará. Juntas, não formam 400 pessoas. "E isso para um área de 5 milhões de m²", admite Luiz Carlos Joels, diretor do Serviço Florestal Brasileiro, o braço do governo responsável pela gestão das florestas públicas nacionais.
O quadro é preocupante porque bate de frente com as metas de Brasília para preservação da Amazônia. As primeiras licitações de florestas públicas tiveram início no ano passado, quando foram ofertados 97 mil hectares divididos em três lotes na Floresta Nacional do Jamari, em Rondônia. Pelos critérios atuais, pessoas físicas e jurídicas podem disputar glebas para a exploração sustentável, seguindo rígidos princípios sociais e ambientais.
Até a próxima semana, o Serviço Florestal Brasileiro divulgará a próxima licitação pública, que abrangerá a área de Saraca-Taquera, na calha norte do Pará. Por determinação do Ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, o órgão deverá elevar a área de concessão na Amazônia para quatro milhões de hectares até 2010. Outros 13 milhões de hectares são passíveis de concessão nos próximos dez anos.
"Mantidas as metas de implementação de concessões nos próximos dez anos, seriam necessários pelo menos 10 mil profissionais treinados para que o manejo fosse implantado e fiscalizado de forma consistente", diz o holandês Johan Zweede, diretor-fundador do lendário Instituto Florestal Tropical (IFT). "No longo prazo, a demanda poderia chegar a 100 mil profissionais, considerando um cenário em que as concessões sejam planejadas para suprir a demanda por madeira em tora na região, estimada em 25 milhões de metros cúbicos. Infelizmente, existe na Amazônia só uma fração deste número de profissionais treinados".
Zweede é pioneiro no ensino de técnicas para a exploração de impacto reduzido na região. Mas não só por isso ele fala com propriedade. Por incrível que possa parecer, o IFT é atualmente a única escola de capacitação em manejo em toda a Amazônia.
Cravado no quinhão de selva na região de Paragominas, no leste do Pará, o acampamento da escola é também o mais perfeito termômetro do desafio do governo pela frente: aqui são formados apenas 350 alunos por ano.
"O IFT é o único que dá o curso de manejo em campo. Mas ele não é capaz de treinar milhares de pessoas. Não será fácil replicar isso", diz Veríssimo, do Imazon.
Grande parte dos alunos são engenheiros e técnicos da própria região. Em comum, eles carregam no currículo larga experiência em exploração predatória, a prática de derrubar o que estiver pela frente iniciada com a decisão do governo militar de integrar a Amazônia ao resto do país. "Há alguns que, como eu, migraram para o norte para trabalhar, mas acho que a maioria preferiu o governo ou ONGs", diz Marco Lentini, engenheiro florestal formado pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq/USP), em Piracicaba, que há uma década vive no Pará.
Lentini é o braço direito de Zweede no IFT e diz sentir na pele a dificuldade em encontrar profissionais experientes. "Se eu quiser contratar dez engenheiros para fazer o manejo florestal na Amazônia, não tem", resume.
Segundo ele, trata-se de uma especialização com enorme potencial de crescimento. Em cálculos rápidos, ele explica o porquê. A exploração manejada de 5 mil metros cúbicos de madeira em tora por mês emprega 26 pessoas e utiliza 2,5 máquinas. Na exploração convencional para igual volume de madeira são precisos 11 pessoas e 4 máquinas. "Não há engenheiro ou técnico, e na prática só existe um chefe de exploração que geralmente funciona como motorista", diz Lentini.
O governo admite o problema. "Em 2009 a capacitação será prioridade do Cenaflor", diz, de forma vaga, Natalino Silva, diretor do Serviço Florestal, referindo-se ao centro de capacitação profissional ligado ao IBAMA.
Correr atrás não será fácil, como o governo sabe. Para especialistas, sem incentivo público e investimento, a demanda potencial do manejo esmagará a oferta. O próprio IFT depende de contribuições internacionais - Caterpillar, Moore Foundation e USDA - para se manter em pé.
Mas nem tudo pode estar perdido. Para Veríssimo, do Imazon, a escassez de qualificação na Amazônia é grave, mas contornável. "Há carência de profissionais porque ainda há pouco manejo no Brasil", diz. "No momento em que começar a ter volume, o mercado acompanhará".
Somente 4% da madeira comercializada no país vem de florestas manejadas. Os ambientalistas torcem para que esse quadro mude o mais rápido possível.
Fonte: Jornal Valor Econômico
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