Sexta-feira, 19 de setembro de 2008 - 13h45
Entrevista: "Governo deve ser acionado a responder sobre usinas do Madeira perante corte internacional"
Bruno Calixto - Amazonia.org.br
O governo brasileiro, por meio da Advocacia Geral da União (AGU), e a Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sulamericana (IIRSA) devem ser acionados para dar respostas sobre as usinas hidrelétricas do rio Madeira em uma corte internacional, na opinião os ambientalistas Rodrigo Siqueira e Luis Carlos Maretto, da Associação Etno-Ambiental Kanindé.
A Kanindé denunciou a construção das Usinas Hidrelétricas (UHEs) de Santo Antônio e Jirau no Tribunal Latinoamericano da Água (TLA), por violação dos direitos dos povos indígenas que habitam a área de impacto das usinas. Após o julgamento, nos dias 11 e 12 de setembro, o tribunal censurou o governo brasileiro e recomendou a suspensão das licenças de instalação das usinas, concedidas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
Maretto e Siqueira atenderam ao pedido do site Amazonia.org.br e responderam algumas perguntas por e-mail, direto da Guatemala. Eles falam sobre como foram recebidos pelos povos tradicionais Mayas, explicam a decisão do TLA, o peso e a repercussão da sentença. Confira.
Como que o tribunal recebeu a denúncia de violação dos direitos indígenas?
Rodrigo Siqueira - Antes de discorrer sobre o caso brasileiro é importante contextualizar a quinta audiência do TLA, cuja temática foi a justiça hídrica em terras e territórios dos povos indígenas da América Latina. Houve a presença dos representantes indígenas de diversas etnias, provenientes da Guatemala, Panamá, El Salvador e México. Esses povos puderam apresentar suas demandas com o suporte de advogados. O tribunal demonstrou respeito pelas tradições desses povos e considerou a autoridade das lideranças comunitárias presentes. Mesmo seguindo todo o processo legal judicial, podemos dizer que a técnica e o positivismo tiveram que conviver com a cosmogonia indígena e os valores ancestrais de suas práticas milenares.
Traçado esse horizonte, é possível perceber que o TLA buscou perceber a viabilidade de traduzir para o universo jurídico os anseios da alma desses indígenas - em diferentes estágios de contato com a civilização, mas sempre preservando os instintos de respeito pela Mãe Terra e preservação das águas como o presente mais sagrado da criação. Com o caso brasileiro ocorreu o mesmo, os jurados buscaram compreender com rigor qual seriam os danos aos povos indígenas localizados nas zonas de influência das UHEs. O que fez o diferencial e foi uma agravante, é que a denúncia de violação dos direitos indígenas não pode contar com protagonistas das etnias manifestando seus interesses pelo fato de serem povos isolados.
Luis Carlos Maretto - A audiência pública foi muito organizada e com grande participação dos povos indígenas da América Central. Os povos Mayas tradicionais da Guatemala foram tratados com muito respeito e dignidade. O presidente dos jurados, o ancião guatemalteco Augusto Díaz, mencionou que os senhores de Totonicapán são as únicas autoridades legítimas do país. As seções sempre iniciavam com preces e rituais sagrados dos Mayas reverenciando as quatro direções sagradas para abrir os trabalhos. Na cosmogonia Maya a água é o elemento mais sagrado, a irmã mais antiga da criação.
A corte com dos dez jurados era muito heterogênea com representatividade de juristas e especialistas de vários países, inclusive do Brasil, e até de representante da ONU. O rito seguido foi de alto nível e com muita participação popular em cada caso. Foram audiências interativas e democráticas. Com relação ao caso das UHEs do rio Madeira no Brasil, houve muita expectativa tendo em vista a dimensão do projeto. A apresentação foi excelente, utilizamos elementos ilustrativos como imagens de satélite, mapas e fotos diversas mostrando os povos tradicionais que habitam na floresta Amazônica. Fomos muito elogiados pela platéia e os jurados ficaram impressionados com a gravidade da situação descrita.
O TLA já tomou alguma decisão? Ela foi positiva à ação?
Rodrigo Siqueira - Os veredictos dos dez casos analisados aqui na Guatemala pelo Emérito Tribunal foram divulgados na última sexta-feira (12/09). Sim, nossos pedidos tiveram acolhimento por parte da corte. O TLA recomendou que o governo federal suspenda as licenças das "mega" represas, baseado no princípio da precaução - qual seja, baseado na falta de certeza científica sobre seus danos ao meio ambiente e as populações potencialmente atingidas. Nesse sentido, recomendou que o governo faça estudos de impacto ambiental conclusivos, pois as informações do EIA/RIMA [Estudos e Relatório de Impactos Ambientais] dos empreendedores não utiliza metodologias confiáveis e nem conclusões satisfatórias.
Considerando a situação da bacia do rio madeira, como de drenagem internacional, recomendou que sejam considerados os impactos no território da Bolívia. A bacia hidrográfica é a unidade de gestão indivisível consagrada pelo Direito Internacional das Águas. Para mim, a recomendação mais embaraçosa é de que o Governo Brasileiro respeite a sua própria constituição, quanto aos direitos indígenas. O que podemos esperar de um país que desconsidera sua lei máxima para empreender seu projeto de desenvolvimento?
Luis Carlos Maretto - Considerando a questão indígena, os jurados censuraram o governo brasileiro por violar a resolução169 da OIT, o artigo 231 da CF/1988 e a política institucional da Funai [Fundação Nacional do Índio] sobre povos indígenas isolados. Um fato que mereceu censura foi a vida útil do projeto hidrelétrico ser de apenas 50 anos, os jurados pareceram um pouco chocados com essa informação. Segundos os termos do acórdão, obras de grande impacto social e ambiental como essas implicam em destruição ambiental de dimensões imprevisíveis e colocam em risco a população assentada nas zonas afetadas - milhares de pessoas.
Foi recomendado que o governo brasileiro faça estudos com a participação dos povos indígenas contactados que estejam na zona de influência das UHEs. Também, que mantenha a condição de isolamento dos povos indígenas presentes nas margens direita e esquerda do rio Madeira e garanta sua segurança. Essas ações estão previstas no plano de trabalho apresentado pela Funai para o PBA [Projeto Básico Ambiental] dos empreendedores. No entanto, não foram iniciadas e com a concessão da licença de instalação, a experiência nos faz acreditar que não acontecerão.
Qual o peso político desta decisão?
Luis Carlos Maretto - A União Federal do Brasil, por meio da AGU, e a IIRSA serão acionados no tocante as várias recomendações citadas acima. O TLA é um tribunal ético com grande respeitabilidade na América Latina, possuindo uma extensa rede de contatos, parceiros e apoiadores. Suas decisões são bem divulgadas e certamente vão repercutir como um fato político, principalmente por ter conferido ênfase na questão étnica e transfronteiriça. Acreditamos que a Bolívia vá utilizar dessa decisão para fortalecer seus protestos e o Peru pode encorajar-se a reivindicar seus direitos também.
A decisão tem um forte peso político. No âmbito internacional a IIRSA já comunicou a todas as instituições do Comitê de Coordenação Técnica e as autoridades do Comitê de Direção Executiva sobre a demanda. Da mesma maneira, agora deve proceder em relação ao veredicto. A Bolívia e o Peru sofrerão impactos ambientais advenientes dos empreendimentos brasileiros. Por questões diplomáticas, o governo brasileiro deve iniciar o processo de um regime internacional de gestão conjunta da bacia; e por ser questão de soberania nacional, cabe ao governo brasileiro dar satisfação a sociedade civil sobre o parecer do TLA nesse o caso.
Rodrigo Siqueira - No Brasil, a dimensão do fato político dependerá da atuação da sociedade civil. Tivemos notícias que a coalizão social mantém sua organização, ocorreu um grande debate no Conama [Conselho Nacional de Meio Ambiente] simultaneamente ao julgamento na Guatemala acerca do requerimento de informações ao Ibama sobre as hidrelétricas do Madeira. Os técnicos não foram capazes de responder as perguntas, demonstrando a fragilidade e incoerência dos projetos que, todavia, estão em andamento.
Embora seja um momento de descrença ao bom senso do governo federal em reconsiderar o andamento oficial que confere prioridade de implantação aos projetos, uma instância autônoma e independente dá parecer favorável as demandas da coalizão pelo rio Madeira vivo. Para aqueles que conservam uma boa leitura dos fatos, esse acórdão demonstra a insuficiência do processo participativo no âmbito do poder executivo e a falência do judiciário pátrio no julgamento de questões ambientais.
Na última entrevista, vocês disseram que tinham expectativas de que a petição no TLA pudesse levar o governo brasileiro a responder o caso em uma corte internacional. Isso pode acontecer?
Luis Carlos Maretto - O governo brasileiro não contestou a demanda perante o TLA, tendo demonstrado ser relapso - na melhor das hipóteses. Na maioria dos casos, estiveram presentes representantes estatais dos países demandados, inclusive, ocorreram sessões de mediação posteriores com êxito em quatro acordos. Os casos do Panamá também demonstraram gravidade e nós nos articulamos com as instituições desse país para começarmos o processo de preparação de ação perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA [Organização dos Estados Americanos]. Com os veredictos do TLA, fica sinalizado que as demandas têm peso jurídico para serem julgadas nessa instância.
Rodrigo Siqueira - Como havia dito na última oportunidade, considero esse caso como um marco, pois mais do que a construção de duas hidrelétricas em um contexto totalmente inapropriado, está em jogo à direção política do projeto nacional de desenvolvimento econômico. Está sendo transposta a aplicação de um modelo falido para a Amazônia. Vejamos o exemplo do cerrado, em 50 anos de expansão da fronteira agrícola resta menos de 20% de sua área original preservada. A mata atlântica está mais crítica com apenas 7%, mas é preciso considerar que foram 500 anos de exploração. Esse complexo hidrelétrico é um equívoco, irá alagar mais de 500 km quadrados de floresta; a responsabilidade dos concessionários somente corresponde aos trechos a montante dos reservatórios... é um completo disparate.
O maestro Ariosto Otero, humanista mexicano, esteve presente em Antigua para gravar um mural sobre a água na cosmogonia Maya - a convite do TLA. Tive o privilégio de estar próximo dele enquanto finalizava sua obra. Ele disse ter conhecido nosso presidente durante a época das eleições, mas considera que se tornou um megalomaníaco: líder dos biocombustíveis; futuro maior produtor de petróleo com a exploração da camada do pré-sal etc. Esse complexo hidrelétrico é mais um desses surtos. Por fim, confidenciou que encabeçará campanha internacional contra o Lula, "o maior assassino do planeta" pelo que intenta contra a biodiversidade do Brasil.
Tudo isso demonstra que argumentos ideológicos, técnicos e jurídicos são abundantes e tratando-se da floresta Amazônica, o apelo internacional é muito forte. Considero que a posição do governo federal tem sido orientada por projetos de governo - não de Estado - em privilégio de grandes protagonistas do mercado financeiro (os consórcios vencedores dos leilões são compostos por grandes empreiteiras brasileira, bancos internacionais e empresas que privatizam a água ao redor do mundo como a Suez). Isso não é certo, mas pode até lograr ser realizado. Contudo, ao menos vai contar com nossa oposição expressa. Sabemos que os interesses econômicos são deveras fortes, mas repito, pela ética vamos até o fim. Não nos importa a vitória, mas sim o bom combate. Caso o governo não corrija sua miopia, vamos recorrer em outras instâncias.
Como foi a repercussão do julgamento?
Luis Carlos Maretto - O caso causou grande impacto na platéia presente e despertou o interesse dos enviados da mídia internacional que faziam à cobertura das audiências. Uma das fotos que ilustravam os índios isolados, tirada a aproximadamente 6 meses na fronteira entre o estado do Acre e o Peru - índios nus pintados de urucum lançando flechas contra o helicóptero que fazia o sobrevôo -, despertaram reações inesperadas. Muitas pessoas nos pediram cópia da apresentação, houve um senhor que disse não imaginar que ainda existiam indígenas vivendo em um estado tão puro.
Rodrigo Siqueira - Realmente, o caso teve uma repercussão muito grande, depois da apresentação as pessoas demonstraram uma reverência pelo trabalho da Kanindé e pela nobre demanda que tivemos a missão de representar aqui na terra sagrada dos Mayas. A conceituada revista mexicana Vértigo deu cobertura à audiência e publicou uma matéria específica sobre nosso caso. Para nós esses fatos foram muito satisfatórios, pois por idealismo e compromisso com a causa custeamos a viagem com recursos particulares.
Após denunciar o governo brasileiro neste tribunal, qual será o próximo passo?
Rodrigo Siqueira - Agora temos um grande trabalho de dar publicidade ao veredicto quando retornarmos ao nosso país. Sabemos que nossos aliados já iniciaram o trabalho aí no Brasil. Como moro em Brasília, é um centro estratégico para acionar as instâncias do governo federal envolvidas nesse processo.
Temos que levantar a reflexão sobre o genuíno papel do Estado Democrático de Direito, que é assegurar a diversidade e garantir o acesso aos direitos a todos os jurisdicionados - sem distinção. Como pode ser verdadeiro o marketing político "Brasil, um país de todos" expresso nas publicidades das obras do PAC [Plano de Aceleração do Crescimento]? País de todos, menos dos indígenas isolados? É preciso considerar que esses brasileiros, segundo a política pública do próprio Estado, não devem participar do convívio social e sequer tem direito a defender pessoalmente seus direitos. É possível que a União Federal irá violá-los?
Luis Carlos Maretto - Pretendemos reforçar as articulações da sociedade civil para cobrar do Governo Federal uma resposta pública sobre o parecer do TLA. No âmbito internacional, já enviamos o acórdão a coalizão social da Bolívia contrária às obras. Estamos com sentimento de missão cumprida na Guatemala, mas sabemos que muito trabalho precisa ser dedicado no Brasil para frearmos o PAC.
Fonte: Amazonia.org.br
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