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MANGABEIRA UNGER APOSTA NA AMAZÔNIA


A Amazônia é o "grande laboratório nacional" de um projeto de reconstrução econômica e institucional do país capaz de restabelecer a fé na política e libertar um enorme contingente que chama de "nova classe média, uma classe média morena" para a construção de um modelo alternativo no país.
É o que se passa na cabeça deste professor de 60 anos, que trocou Harvard pelo cargo de ministro Extraordinário de Planejamento Estratégico, homem de português impecável mas sotaque ainda carregado devido aos longos anos vividos nos EUA. São idéias polêmicas, como a adesão ao protocolo de Kyoto, à qual há resistências em Brasília. A gênese é a Amazônia.
"Apesar de todas as dificuldades que enfrentei antes e depois da minha posse, estou entusiasmado com as perspectivas de trabalho", disse Mangabeira Unger ao Valor, após viagem a Rio Branco (AC) e Manaus (AM) na companhia de parlamentares da região para "trabalhar por um movimento que estabeleça a Amazônia como a prioridade nacional na primeira metade do século 21 - o Brasil se transformará transformando a Amazônia". Foi quatro vezes aplaudido, em Manaus, num discurso de 40 minutos.
Na primeira dificuldade, o passado encontrou Mangabeira Unger: uma declaração na qual considerava o governo Lula "o mais corrupto da história" e colocou o PT em pé de guerra. Sofisticado na formulação política, o filósofo tem dificuldades em lidar com os políticos - e isso também contribuiu para que o Congresso derrubasse a medida provisória sua pasta. No tiroteio, Mangabeira ficou com um ministério mais enxuto. O Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), que ameaçava se rebelar, acomodou-se com a nomeação de um desenvolvimentista para a sua presidência e o ministro, recepcionado com as mais comuns e eficientes armadilhas políticas de Brasília, submergiu.
O perigo ainda não passou. O próprio Mangabeira afirma não ter ilusões a respeito das dificuldades dessa tarefa. "Ela arrisca, de um lado, cair numa futurologia inconseqüente, e parecer, de outro lado, uma intromissão indevida no trabalho de todos os ministros setoriais", contou numa palestra em Goiânia, antes de viajar à Amazônia. Mangabeira, por determinação de Lula, que lhe concederá audiência amanhã, tem conversado com todos os segmentos da sociedade, das centrais sindicais aos movimentos sociais, inclusive a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil e um dos mais críticos à atual política econômica, o MST. O ministro não diz quais os colegas podem se sentir incomodados com a intromissão. "Eu trabalho com quem quer trabalhar comigo".
Outro momento difícil da chegada a Brasília refere-se a um processo que move contra a Brasil Telecom, empresa para a qual trabalhou como advogado nos Estados Unidos e que tem como principais sócios três fundos de pensão vinculados a estatais. Mangabeira não gosta de falar no assunto, ainda pendente - embora tenha sido pressionado a desistir da ação, ele não o fez. O assunto continua na Justiça.
Quando fala das dificuldades, Mangabeira costuma recorrer a um provérbio alemão: "Deus dá as nozes mas não as quebra", diz, antes de se transfigurar do ar professoral, severo e soltar uma gargalhada sonora. Uma reação recorrente, apesar da formalidade com que recebe as visitas em seu apartamento ainda por decorar, com paredes nuas, uma sala na qual se sobressaem poltronas brancas e sala de jantar com mesa de vidro. E onde mora sozinho - a mulher e os quatro filhos ficaram nos EUA, mas devem visitá-lo nos próximos dias - e despacha com assessores.
No cômputo geral, Mangabeira tem uma avaliação positiva sobre esses primeiros quatro meses de trabalho. "Sinto que o presidente está apoiando esta linha de ação de maneira decisiva", diz. "E encontro no país um número imenso de aliados potenciais. Há uma excitação subterrânea no país, um desejo, sobretudo na parte mais consciente e idealista da Nação, de construir um novo caminho".
Entre esses aliados destaca as Forças Armadas, a Igreja Católica e as outras igrejas e os cientistas. "Os atributos compartilhados por esses grupos são: identificar-se com a perspectiva nacional, ainda quando não sabem lhe dar conteúdo, e estar fora do mundo do dinheiro. Há uma base social concreta para esse trabalho. Não se trata apenas de um idealismo solto".
Para Mangabeira, uma base social possível reúne, em primeiro lugar, a classe média tradicional. "Tudo que de importante ocorreu na história de nosso país ocorreu naqueles momentos em que a classe média se separou da plutocracia de orientação colonial e passou a protagonizar em nome de todos uma outra idéia de futuro".
Os exemplos brotam com fluência: os movimentos abolicionista e republicano, a Aliança Liberal, o desenvolvimentismo dos anos 50 e o movimento Diretas já. "Foram momentos decisivos para a história do país. Hoje essa classe média tradicional está economicamente precarizada e espiritualmente desorientada", diz. "Descrente da política, ela arrisca adotar a idéia comum nos países ricos do Atlântico Norte de que a política acabou. Essa idéia, que já é perigosa para os ricos, é fatal para o nosso país. A solução de todos os nossos problemas exige política", argumenta.
Ao lado dessa classe média tradicional, Mangabeira identifica hoje no Brasil "uma classe média nova, uma pequena burguesia morena", que vem de baixo, estuda à noite nas universidades particulares, luta para abrir pequenos negócios, funda novas igrejas e associações e sobretudo inaugura no país uma nova cultura de auto ajuda e iniciativa. "É a mesma gente que quando se frustra no Brasil vai para fora, sai do país. Essa vanguarda de batalhadores e de emergentes já está no comando do imaginário popular e deve se manifestar, no futuro, num sistema representativo com traços de democracia direta e participativa".
Para Mangabeira, Getúlio Vargas fez uma revolução, em meados do século 20, aliando o Estado aos setores organizados da sociedade e da economia. Hoje, segundo acredita, a revolução brasileira seria o Estado usar os seus poderes e recursos para permitir que a maioria seguisse o exemplo dessa vanguarda. "Isso só é possível com uma agenda de inovações em nossas instituições econômicas e políticas", defende. "Não basta regular a economia de mercado. Não basta atenuar as desigualdades produzidas pelo mercado com políticas sociais compensatórias".


É preciso construir mecanismos pelos quais a floresta em pé valha mais que a floresta derrubada"



Em princípio, Mangabeira acha que as políticas de transferência de renda como o Bolsa Família, carro-chefe do governo Lula, devam ser entendidas como políticas apenas compensatórias. "Elas se destinam a garantir o mínimo econômico para tornar a cidadania possível. Ninguém pode ser agente quando está padecendo os extremos da miséria. É claramente insuficiente", diz. Mas ressalva: "Se o governo e a nação se contentassem com essas políticas de transferência, se definissem essas políticas como o horizonte derradeiro de sua ação, aí sim, seria apenas a humanização do inevitável. Eu não quero crer que devamos entender assim, devemos entender como um passo em direção a algo diferente".
Para explicar o trabalho, Mangabeira prefere, primeiro, falar sobre "a natureza geral de minha tarefa", de preferência sem interrupções. Conta que foi convocado por Lula para ajudar a "demarcar e a debater um novo programa de desenvolvimento, baseado em ampliação de oportunidades econômicas e educativas e em participação popular". Um modelo, explica, "que transforme a democratização de oportunidades no próprio programa do crescimento".
Para o ministro extraordinário, o tema básico da política brasileira nessas últimas décadas tem sido a "aceitação de um modelo econômico que importamos e a formulação de políticas sociais destinadas a atenuar os defeitos desse modelo - dourar a pílula do modelo econômico tem sido a obsessão da política brasileira". Mas acredita que o país não quer mais humanizar o inevitável. Dessas iniciativas todas, nenhuma seria mais importante do que a que se destina a "mudar o Brasil mudando a Amazônia". Um projeto de Estado que seja capaz de sobreviver aos ciclos eleitorais e ser construído com os outros países com os quais se compartilha a Amazônia. "E não pode ser um projeto que passivamente aceite a pressão do mundo sobre nós. Ao contrário, os benefícios que nosso projeto na Amazônia terá haverão de ser pagos pela humanidade toda e não só por nós".
Seu discurso impressiona os integrantes da Comissão da Amazônia, Integração Nacional e Desenvolvimento Regional, um grupo em geral insatisfeito com o que considera marginalização da região no planejamento federal, feito a partir de gabinetes com ar-refrigerado de Brasília, às vezes, por técnicos que nunca puseram o pé na Amazônia. "Ganhamos um grande, importante e imprescindível aliado", diz a presidente da comissão, deputada federal Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM). O senador Jefferson Péres (PDT-AM) chama a atenção para as tentativas de "ridicularização do ministro" e elogia sua tarefa: "No Brasil se perdeu a visão estratégica".
Busca também o apoio militar: "As Forças Armadas são muito importantes nesse projeto, mas soberania da Amazônia não depende apenas da Força Militar. Não adianta ter compromisso ambiental de um lado, e segurança de outro, se não tivermos um projeto econômico e social para a região, esse é o 'calcanhar de Aquiles'".
Mangabeira propõe, mas a decisão sobre essas iniciativas é do presidente. É hora de quebrar nozes e, na Amazônia, as nozes do filósofo parecem duras. Ele é o primeiro a reconhecer que o país vive um dilema - ou o que chama de "desnível perigoso " - entre os que defendem a intocabilidade da Amazônia, transformando-a num "parque para o deleite e benefício da humanidade", e os que acreditam que a região deve continuar sendo desmatada, aberta amplamente à agropecuária, como ocorre em Mato Grosso, por exemplo. "Se o Brasil for obrigado a escolher entre ambientalismo e desenvolvimento, escolherá desenvolvimento. Essa é uma opção da qual temos que escapar. É uma falsa opção".
Para escapar dessa armadilha, o ministro defende antes de tudo um zoneamento - e não um "exercício de cartografia" - econômico e ecológico da região. O projeto tem pressupostos. Mais nozes para quebrar: a resolução dos conflitos e das controvérsias seculares a respeito da posse da terra; a construção de marcos regulatórios e incentivos tributários que assegurem que "a floresta em pé valha mais que derrubada - é inaceitável que os incentivos tributários premiem atividades predatórias e castiguem as atividades que acrescentam valor e preservam a floresta". O terceiro pressuposto é que todos paguem pela conta - o Brasil e a humanidade. E um quarto pressuposto é uma nova matriz energética, baseada em pequenas usinas, que viabilizem o projeto econômico da Amazônia.
O projeto tem muitos aspectos, mas a linha central é o zoneamento econômico e ecológico, e estratégias econômicas distintas para as diferentes regiões definidas por esse zoneamento. Uma estratégia com três vertentes, sendo a terceira uma estratégia de futuro, a segunda relacionada à maior parte da floresta - aquela que está intacta, e que exigiria um ordenamento jurídico diferente do controle estatal, de um lado, e da propriedade privada tradicional, de outro lado. Um regime de gestão comunitária. Uma idéia: a governança da internet, "onde nós estamos avançados, inclusive no Brasil, na definição de um regime que assegure que a internet não caia sob o controle nem dos Estados nacionais nem dos interesses mercantis. A solução do problema econômico e tecnológico passa pela solução do problema institucional e jurídico".
A primeira vertente é em relação à área já desmatada. Mais nozes. É nessa área, segundo acredita, que "temos a oportunidade de construir um modelo econômico que não seja dominado pelas forças do grande dinheiro, que dê uma segunda chance àquilo que o Brasil mais quer, que são oportunidades para a multidão de empreendedores emergentes que são a força vital da nossa economia." A classe média morena.
Para Mangabeira, "o coração do sistema industrial brasileiro, radicado em São Paulo, é aquilo que os especialistas costumam chamar de "fordismo", a produção em larga escala de bens e serviços padronizados por maquinário e processos produtivos rígidos, relações de trabalho hierárquicas e especializadas e mão de obra relativamente qualificada", diz. Esse "fordismo tardio" se manteria competitivo no país às custas do "arrocho salarial". Assim, o país estaria ameaçado de "ficar imprensado no mundo entre economias de trabalho barato (Ásia) e as de produtividade alta (Estados Unidos)". O interesse nacional, portanto, é " escapar dessa prensa pelo alto, com a valorização do trabalho e escalada de produtividade, e não por baixo, com aviltamento salarial".
Como? Com a reconstrução "do modelo institucional das relações entre o capital e o trabalho, que é uma outra parte do meu esforço, e formular uma política industrial de inclusão, que tenha como seu principal objetivo dar instrumento e acesso a essa multidão de empreendedores e empreendimentos emergentes". É nesse contexto que a Amazônia desmatada, para Mangabeira, oferece uma oportunidade singular para experimentar uma política econômica que lance as grandes linhas de um outro modelo econômico nacional.
Esse modelo teria pelo menos três características: coordenação estratégica entre os Estados e os produtores (sobretudo os pequenos) privados; estímulo a práticas de concorrência cooperativa, pelas quais os pequenos produtores possam competir uns com os outros e cooperar ao mesmo tempo, com isso ganhando acesso às economias de escala e vínculos entre as vanguardas e as retaguardas da produção. Indústrias de vanguarda tecnológica, produzindo insumos e máquinas que possam ser aproveitadas pela retaguarda dos empreendimentos emergentes.
"Se experimentarmos alternativas como essa, no setor mineral, em terras que muitas vezes pertencem aos índios, teríamos que chegar a entendimento com os indígenas. A uma relação contratual que lhes permitisse participar dos benefícios dessa riqueza", diz, referindo-se a outros dois problemas - índios e minério, algumas vezes coincidentes, como entre os Cintas-Largas de Rondônia.
"Me sinto entusiasmado com esse projeto. E um projeto capaz de comover e de esclarecer o país", diz Mangabeira, sem modéstia. "Presta-se admiravelmente a uma narrativa de libertação nacional". Lembra que o Brasil ocupou o litoral no século 19, avançou para o Oeste no século 20 e no século 21 - afirma - "se reconstruirá reconstruindo a Amazônia".
FONTE: JORNAL VALOR ECONÔMICO

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